O tempo está em
nós
A infância ocupa em nossas lembranças
(pelo menos nas da maioria das pessoas) um lugar especial. Ganha projeção,
adquire destaque, permanece indelével, mesmo que tenha sido amarga, dolorosa,
abandonada e frustrante. Ao que se deve esse comportamento? Possivelmente, à
fraqueza da memória. Para preencher um vazio de lembranças, inventa-se uma
fantasia qualquer e passa-se a acreditar nela. Todos com quem converso, com
maior ou menor ênfase, falam desse período como de uma era dourada em que eram
"felizes e não sabiam". Do que temos saudade, na verdade, não é de
fatos e acontecimentos específicos dessa fase, mas de nós mesmos. Da inocência
perdida, dos sonhos deixados para trás, dos ideais esfacelados pelo caminho.
Rubem Braga, o guru de todos os cronistas, tem uma passagem reveladora a
respeito.
Afirma, em determinado trecho da
crônica "O sino de ouro", publicada no livro "A Borboleta
Amarela": "...Cada um de nós quando criança tem dentro da alma seu
sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrupção, vai
virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra e lama e podridão". É a
isso que chamo de perda da inocência. Mas seria ruim essa transformação? Não
seria mais seguro, prudente e racional pisar o solo da realidade, enfrentar
cara-a-cara, de peito aberto, os perigos e as frustrações, correr atrás somente
do que seja factível, desenvolver nosso potencial até seu real limite, sem
extrapolar além das nossas possibilidades? Entendo que sim.
Particularmente,
amo e valorizo toda a minha vida. Se fosse possível, gostaria de ser eterno,
com todos os problemas que essa eternidade viesse eventualmente a trazer.
Porém, tivesse que eleger determinada fase como a melhor, escolheria não a
infância, mas a plena maturidade. Se não soube aproveitar determinadas
oportunidades que apareceram nesse período, foi pela minha própria cegueira.
Ademais, é preciso olhar sempre para a frente, mesmo sabendo que lá, em algum
lugar do futuro (que pode ser o próximo segundo, quem sabe) está a nossa
extinção. Mas pode estar, também, o sucesso, aquele êxito que perseguimos desde
crianças e que, se obtido, nos tornará imortais no coração dos semelhantes.
Pode estar o amor se ainda estiver ausente da nossa vida. Pode estar a
felicidade identificável (pois na maioria das vezes somos felizes em
determinados momentos ou períodos e não conseguimos nos dar conta disso).
Entre dar cordas à memória, em busca do
que passou, e projetar um amanhã, que pode nem mesmo existir, prefiro, por uma
questão de postura e formação, o segundo. O tempo é meu capital. Não posso
desperdiçar nem um instante com lembranças inúteis. Quando não houver forma de
fugir das recordações, que elas sejam usadas como matérias-primas de contos,
crônicas ou poesias. Cyro dos Anjos escreve, no livro "Dois
Romances": "Inútil tentativa de viajar o passado, penetrar no mundo
que já morreu e que, ai de nós, se nos tornou interdito, desde que deixou de
existir, como presente, e se arremessou para trás". Uso, sem dúvida, as experiências
que adquiri. Mas para cumprir meu papel. Para deixar a obra a que me propus.
Para evitar de repetir os mesmos erros que cometi. Para não tropeçar nos mesmos
buracos e nem despencar nos mesmos abismos. Uso, sim, o que passou,
principalmente a lembrança de quem já se foi, para fazer justiça com os que
foram bons, gentis, amáveis e amigos, perpetuando alguns de seus atos e
virtudes em textos.
André Maurois, em "Vozes da
França", atribui essa aura de magia que conferimos à infância ao fato de
nesse período não tomarmos ciência da real dimensão da maldade humana, por
causa da proteção e abrigo que nossos pais nos garantem. Isto, contudo, podia
ser verdade em seu país e em seu tempo e não no Brasil de 2016. Há meninos a
dar com pau pelas ruas com dois, quatro, dez ou mais homicídios nas costas.
Há bandidos mirins muito mais escolados e experientes na arte de espoliar
bens alheios do que assaltantes adultos, com várias penas cumpridas. Há
crianças que são privadas da infância desde o nascimento, dada a fragilidade, a
ignorância, a ingenuidade ou a irresponsabilidade de pais que não têm condições
de cuidar sequer de si, quanto mais de pôr filhos no mundo. Será que elas vão
encarar essa fase como "tempos mágicos"? Deixo para reflexão outra
citação de Cyro dos Anjos: "Na verdade as coisas estão é no tempo e o
tempo está é dentro de nós". Para não se extinguir comigo é que registro a
sua passagem.
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Interessantes considerações. E como o tempo nos confunde. Ontem mesmo achei um caderno de anotações de 30 anos atrás. E quantas surpresas!
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