Uma visão de cultura
* Por
Rubem Costa
Coevo, coetâneo,
equevo. Palavras que em seu étimo são sinônimas de um verbete mais familiar —
contemporâneo. Termo que o Aurélio assim consigna: — que é do mesmo tempo, que
vive na mesma época, que é do tempo em que vivemos. Dessa definição
dicionarizada, retiro uma conclusão lógica sobre mim mesmo.
Como nasci em 1919 e
ainda estou por aqui, circunstancialmente perambulando por este mundo de Deus,
justo é admitir que, desde o dia em que surgi na rua José Paulino, esquina de
Marechal Deodoro, bem no centro da cidade, sou coevo, coetâneo, equevo de tudo
quanto aconteceu — e acontece agora — nesta urbe de Carlos Gomes e Guilherme de
Almeida. Arrogo-me pois o direito de proclamar que o livro Vida Cultural em
Campinas (1920-1932) — que o historiador Duílio Batisttoni Filho acaba de
lançar, representa uma imensurável contribuição para conhecimento da história
contemporânea da cidade.
Professor aposentado
da PUC-Campinas, onde desenvolveu magnífico magistério na área de sua
especialidade, o autor, em percuciente trabalho de pesquisa — a título de
definir o movimento estético e intelectivo do segundo decênio do século vencido
— desenvolve uma busca beneditina que transcende as fronteiras do período
prenunciado, para oferecer uma clara visão das causas e efeitos da agitação do
pensamento, pós 1918, resultante da primeira guerra mundial; um movimento que
na sua projeção revolucionária alterou profundamente a paisagem cultural do
planeta, particularmente no mundo ocidental.
Assentado na convicção
de que a evolução do pensamento é função da transformação histórica das
sociedades e de que o passado exerce poderosa influência sobre a cultura em
geral, o autor divide o livro numa didática de seis capítulos que abrangem
respectivamente a vida literária, o panorama cultural, o ciclo cinematográfico,
as artes plásticas, o desenvolvimento musical e aspecto educacional. Tomando
por referência o decênio arrolado — 1920-1932 — transborda à ré, em marcha
descendente, até os primeiros momentos que iriam demarcar no século um ideário
político-social de profunda repercussão na forma de sentir e de pensar. Configuração
que se alastrando na nação chegou à província.
Nesse prisma
panorâmico, o livro arrecada nos lindes campinenses momentos emocionantes que
marcaram indelevelmente os fastos da cidade. Assim, por exemplo, registra duas
ocorrências citadinas coincidentes que, de forma indireta, deram impulso à
credibilidade devotada ao Correio Popular como o mais importante órgão da
imprensa interiorana do Brasil. Vejam como Duílio Batisttoni descreve o
episódio: “A 4 de setembro de 1927, desligando-se do Diário do Povo, Álvaro
Ribeiro fundava o Correio Popular — primeiro jornal a apresentar máquinas
linotipo e prelo rotativo, substituindo os tipos móveis até então usados. Esse
dia coincidiu com a chegada na cidade do aviador João Ribeiro de Barros e de
seus co-pilotos Newton Braga e Vasco Cineguini, que acabavam de fazer o vôo
Gênova-Santos a bordo do hidroavião “Jaú”, proeza largamente celebrada em todo
o país. Os três desembarcaram na estação da Companhia Paulista e desceram a pé
a rua 13 de Maio, aplaudidos por uma enorme multidão. O novo jornal começava,
assim, com uma grande reportagem. Suas portas permaneceram abertas durante todo
o dia, para que os visitantes pudessem ver de perto as novas máquinas de
composição. As pessoas que visitavam o jornal se encantavam com a pesada
rotativa Marinoni que imprimia e jorrava, a uma velocidade nuca vista antes, as
dezesseis páginas da primeira edição do jornal”.
Pois é, senhores, eis
aí, na convergência dos tempos, um episódio que para mim é contemporâneo,
porque dele fui coevo, nos dois celebrados momentos. Aos oito anos, como aluno
do grupo escolar, compareci uniformizado, em fila, na recepção aos aviadores
que se deu em frente à antiga Escola Industrial “Bento Quirino”, na rua Culto à
Ciência, mesmo prédio onde hoje se encontra instalada a escola de grau médio
mantida pela Unicamp e vulgarmente conhecida como “Bentinho”. De bandeirinha na
mão, saudei o “Jaú” como glória nacional. No período da tarde, fui com meu pai
até a redação e oficina do jornal para conhecer a grande novidade, a linotipo,
equipamento provido de teclado semelhante à máquina datilográfica que escrevia
em chumbo quente as palavras numa linha inteira para impressão, diferente do
secular processo de composição manual, letra por letra, efetivada num utensílio
arcaico chamado componedor, onde o tipógrafo recolhia, um a um, os tipos para
formar o texto. Coisa do arco da velha.
Meu pai, bestificado
com o progresso, foi apertar a mão de Álvaro Ribeiro, seu amigo. Sinal dos
tempos. Agora, na era da informática, os jovens que as faculdades de jornalismo
formam todos os anos, talvez, sequer possuam noção do que tenha sido uma
linotipo. É essa dimensão histórica que dá o encantamento que prende o leitor
ao livro, sugerindo-lhe uma indagação permanente sobre o que foi e o que é como
fator válido na vida de uma cidade.
Assim, na abundância
dos registros, vamos encontrar no ciclo cinematográfico uma ocorrência
inusitada que agitou a sociedade campineira: a chegada do cinema sonoro em
Campinas, com a exibição pela primeira vez na cidade de um filme falado,
ocorrida no Cine São Carlos, situado na rua César Bierrembach, logo abaixo da
Lusitana. Foi no dia 28 de janeiro de 1930. Como testemunha ocular, no meio da
multidão, também estive lá, levado por minha irmã, já que menor de idade não
podia entrar desacompanhado. A Gazeta destaca o acontecimento como a maravilha
do século, um acontecimento que jamais nos foi dado imaginar.
A riqueza de
informações que o livro oferece é imensa. No capítulo dos divertimentos,
encontra-se analítica dissertação sobre o Carnaval com destaque para corso,
desfile de automóveis de capota de lona baixada com lindas mulheres cantando.
Folguedo que se realizava nos três dias de Momo, tendo por via principal a
Barão de Jaguara. No carnaval de 37, ano trágico para mim, eu estava condenado
à morte. Adolescente, tinha apanhado tuberculose. Fui assistir pensando na
doença, supus que seria a última vez que presenciaria o desfile. Chorei.
Ignorava, então, que o destino irônico havia de me fazer sarar, me reservando
ainda para ser coevo daquele que foi último corso na cidade. Calhambeques com
mulheres e adolescentes a cantar. Lança-perfume, confete e serpentina. Cortejo
de sonhos e fantasia, brisa de paz, olor de poesia.
*
Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras
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