terça-feira, 23 de agosto de 2016

Uma visão de cultura


* Por Rubem Costa


Coevo, coetâneo, equevo. Palavras que em seu étimo são sinônimas de um verbete mais familiar — contemporâneo. Termo que o Aurélio assim consigna: — que é do mesmo tempo, que vive na mesma época, que é do tempo em que vivemos. Dessa definição dicionarizada, retiro uma conclusão lógica sobre mim mesmo.

Como nasci em 1919 e ainda estou por aqui, circunstancialmente perambulando por este mundo de Deus, justo é admitir que, desde o dia em que surgi na rua José Paulino, esquina de Marechal Deodoro, bem no centro da cidade, sou coevo, coetâneo, equevo de tudo quanto aconteceu — e acontece agora — nesta urbe de Carlos Gomes e Guilherme de Almeida. Arrogo-me pois o direito de proclamar que o livro Vida Cultural em Campinas (1920-1932) — que o historiador Duílio Batisttoni Filho acaba de lançar, representa uma imensurável contribuição para conhecimento da história contemporânea da cidade.

Professor aposentado da PUC-Campinas, onde desenvolveu magnífico magistério na área de sua especialidade, o autor, em percuciente trabalho de pesquisa — a título de definir o movimento estético e intelectivo do segundo decênio do século vencido — desenvolve uma busca beneditina que transcende as fronteiras do período prenunciado, para oferecer uma clara visão das causas e efeitos da agitação do pensamento, pós 1918, resultante da primeira guerra mundial; um movimento que na sua projeção revolucionária alterou profundamente a paisagem cultural do planeta, particularmente no mundo ocidental.

Assentado na convicção de que a evolução do pensamento é função da transformação histórica das sociedades e de que o passado exerce poderosa influência sobre a cultura em geral, o autor divide o livro numa didática de seis capítulos que abrangem respectivamente a vida literária, o panorama cultural, o ciclo cinematográfico, as artes plásticas, o desenvolvimento musical e aspecto educacional. Tomando por referência o decênio arrolado — 1920-1932 — transborda à ré, em marcha descendente, até os primeiros momentos que iriam demarcar no século um ideário político-social de profunda repercussão na forma de sentir e de pensar. Configuração que se alastrando na nação chegou à província.

Nesse prisma panorâmico, o livro arrecada nos lindes campinenses momentos emocionantes que marcaram indelevelmente os fastos da cidade. Assim, por exemplo, registra duas ocorrências citadinas coincidentes que, de forma indireta, deram impulso à credibilidade devotada ao Correio Popular como o mais importante órgão da imprensa interiorana do Brasil. Vejam como Duílio Batisttoni descreve o episódio: “A 4 de setembro de 1927, desligando-se do Diário do Povo, Álvaro Ribeiro fundava o Correio Popular — primeiro jornal a apresentar máquinas linotipo e prelo rotativo, substituindo os tipos móveis até então usados. Esse dia coincidiu com a chegada na cidade do aviador João Ribeiro de Barros e de seus co-pilotos Newton Braga e Vasco Cineguini, que acabavam de fazer o vôo Gênova-Santos a bordo do hidroavião “Jaú”, proeza largamente celebrada em todo o país. Os três desembarcaram na estação da Companhia Paulista e desceram a pé a rua 13 de Maio, aplaudidos por uma enorme multidão. O novo jornal começava, assim, com uma grande reportagem. Suas portas permaneceram abertas durante todo o dia, para que os visitantes pudessem ver de perto as novas máquinas de composição. As pessoas que visitavam o jornal se encantavam com a pesada rotativa Marinoni que imprimia e jorrava, a uma velocidade nuca vista antes, as dezesseis páginas da primeira edição do jornal”.

Pois é, senhores, eis aí, na convergência dos tempos, um episódio que para mim é contemporâneo, porque dele fui coevo, nos dois celebrados momentos. Aos oito anos, como aluno do grupo escolar, compareci uniformizado, em fila, na recepção aos aviadores que se deu em frente à antiga Escola Industrial “Bento Quirino”, na rua Culto à Ciência, mesmo prédio onde hoje se encontra instalada a escola de grau médio mantida pela Unicamp e vulgarmente conhecida como “Bentinho”. De bandeirinha na mão, saudei o “Jaú” como glória nacional. No período da tarde, fui com meu pai até a redação e oficina do jornal para conhecer a grande novidade, a linotipo, equipamento provido de teclado semelhante à máquina datilográfica que escrevia em chumbo quente as palavras numa linha inteira para impressão, diferente do secular processo de composição manual, letra por letra, efetivada num utensílio arcaico chamado componedor, onde o tipógrafo recolhia, um a um, os tipos para formar o texto. Coisa do arco da velha.

Meu pai, bestificado com o progresso, foi apertar a mão de Álvaro Ribeiro, seu amigo. Sinal dos tempos. Agora, na era da informática, os jovens que as faculdades de jornalismo formam todos os anos, talvez, sequer possuam noção do que tenha sido uma linotipo. É essa dimensão histórica que dá o encantamento que prende o leitor ao livro, sugerindo-lhe uma indagação permanente sobre o que foi e o que é como fator válido na vida de uma cidade.

Assim, na abundância dos registros, vamos encontrar no ciclo cinematográfico uma ocorrência inusitada que agitou a sociedade campineira: a chegada do cinema sonoro em Campinas, com a exibição pela primeira vez na cidade de um filme falado, ocorrida no Cine São Carlos, situado na rua César Bierrembach, logo abaixo da Lusitana. Foi no dia 28 de janeiro de 1930. Como testemunha ocular, no meio da multidão, também estive lá, levado por minha irmã, já que menor de idade não podia entrar desacompanhado. A Gazeta destaca o acontecimento como a maravilha do século, um acontecimento que jamais nos foi dado imaginar.

A riqueza de informações que o livro oferece é imensa. No capítulo dos divertimentos, encontra-se analítica dissertação sobre o Carnaval com destaque para corso, desfile de automóveis de capota de lona baixada com lindas mulheres cantando. Folguedo que se realizava nos três dias de Momo, tendo por via principal a Barão de Jaguara. No carnaval de 37, ano trágico para mim, eu estava condenado à morte. Adolescente, tinha apanhado tuberculose. Fui assistir pensando na doença, supus que seria a última vez que presenciaria o desfile. Chorei. Ignorava, então, que o destino irônico havia de me fazer sarar, me reservando ainda para ser coevo daquele que foi último corso na cidade. Calhambeques com mulheres e adolescentes a cantar. Lança-perfume, confete e serpentina. Cortejo de sonhos e fantasia, brisa de paz, olor de poesia.

* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras


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