sábado, 27 de agosto de 2016

O telefone


* Por Celamar Maione



Sofia estava na frente do espelho se arrumando havia mais de uma hora. Antes, tinha tomado um banho com sais, espumas, cremes, essências. Dava o último retoque na maquiagem. O cabelo impecável. Havia feito no cabeleireiro que freqüentava há anos. No salão, enquanto fazia as unhas, conversava com a manicure:
- Sabe Genésia, dessa vez ele fica comigo pra sempre. Vamos finalmente viver como marido e mulher. Estamos juntos há 20 anos. Vi a filha dele crescer, se formar. Agora que as crianças estão com a vida encaminhada, finalmente ficaremos juntos.

Genésia, com a sabedoria das pessoas humildes, ainda duvidou:
- Mas será mesmo Sofia que dessa vez ele abandona a esposa? Se em 20 anos não fez isso, vai fazer agora?
- Ah vai sim. Eu dei uma prensa nele, estou com 40 anos, ainda quero ter filhos e ele me prometeu que levaria a mulher para a fazenda deles em Campos do Jordão, contaria sobre nós dois, e hoje mesmo, por volta das 10 da noite, estará chegando definitivamente para os meus braços.

Enquanto pensava no papo que teve com a manicure pela manhã, Sofia resolveu dar uma olhada no forno. Foi verificar se o frango estava no ponto. Ainda não.
O ar frio da noite dava um tom melancólico à cidade. Choveu durante toda a manhã e fazia frio àquela hora, Sofia fechou as janelas, pegou um copo de vinho, sentou-se no sofá e ficou a recordar.

Sofia e Rodrigo se conheceram quando ela ainda estava na faculdade. Ele era seu professor. Se apaixonaram e ela resolveu assumir seu romance com um homem casado. Abriu mão de tudo. Dos amigos, da família e até mesmo da vida profissional. Ele lhe deu o apartamento onde morava e ela se trancou ali, sempre esperando pelos poucos encontros que tinham. Muitas vezes se angustiava, chorava agarrada aos travesseiros, mas tinha certeza que se conseguisse se comportar como uma boa moça, seu esforço seria recompensado.

Nas noites solitárias, muitas vezes ia dormir a base de Lexotan. Nos natais estava sempre sozinha. Mas agüentou como mulher firme que espera pelo homem amado. Quando resolveu dar um basta na situação, ele então disse que iria se separar. Era só uma questão de colocar os pingos nos is com a esposa. Contaria tudo para ela agora que os filhos estavam crescidos e viveria com ela como marido e mulher.

Tinham combinado que assim que ele voltasse de Campos do Jordão iria pra casa dela. Caso não chegasse até 11 da noite, é porque a esposa havia esperneado, tentado se matar e ele então não poderia abandonar tudo e daria mais um tempo. Mas antes, ligaria avisando sobre qualquer contratempo. Sofia ainda retrucou:
- Mas, e se você não ligar?
Rodrigo insistiu:
- Se eu não ligar é porque deu algum problema e teremos que adiar nossos planos. Mas eu tenho certeza...
Ela nem deixou ele acabar de falar:
-Adiar nossos planos? Eu não agüento mais, adiei 20 anos da minha vida e não consigo adiar mais um dia.

Os dois começaram uma discussão. E ele foi taxativo:
- Me espere. Se até 10 horas eu não chegar, por volta de 11 da noite eu ligo para dar uma satisfação.
Ela sorriu e brincou:
- Olha lá hein!  Se você não aparecer e nem me ligar até 11 da noite, eu acabo com a minha vida.
Ele riu, bateu no móvel três vezes e disse:
-O que é isso mulher? Quero você vivinha para podermos aproveitar juntos a vida.

Sofia foi tirada dos seus pensamentos pelo cheiro forte do frango no forno. Correu para a cozinha. Colocou o frango em cima da mesa, arrumou a mesa, verificou a sobremesa, quase 10 da noite, acendeu as velas, pegou mais um copo de vinho e começou a andar de um lado para o outro, nervosa, estalando os dedos. 10 da noite. Nem sinal de Rodrigo. Começou a ficar nervosa. 20 anos esperando por aquele momento. Tinha pressa. Não suportava mais esperar nenhum dia.

Tomou mais um copo de vinho, abriu as janelas. O ar frio da noite penetrou em todo o seu corpo e ela começou a tremer. Pegou a garrafa de vinho e começou a beber alucinadamente.
Onze da noite. Nenhum sinal. Nenhum telefonema. Resolveu ligar para a casa dele em São Paulo. Ninguém atendeu. Ligou para Campos do Jordão. Nada. Celular na Caixa Postal. Quando o relógio bateu meia-noite Sofia já estava completamente bêbada.

Foi até a janela. Morava no décimo andar. Na rua os carros passando tranqüilamente de um lado para o outro. Ninguém parecia saber do problema dela. Teve vontade de gritar, sair correndo. Uma pressão enorme tomava sua cabeça. Olhava para a rua, veio a vontade de pular.

Não via mais nada, não queria saber de mais nada. Quase uma da manhã.
Sofia tirou os sapatos, subiu no parapeito da janela e se atirou. Caiu no chão feito uma boneca de pano, braço para um lado, perna para o outro. Imediatamente, a rua se encheu de gente. No apartamento vazio o barulho ensurdecedor do telefone cortava o silêncio da noite!


* Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da  Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing,  atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos. É autora do livro de contos “Só as feias são fieis” (Editora Multifoco).

Um comentário:

  1. Pois é, Rodrigo não acreditou mas aconteceu. Muitas Sofias sofrem silenciosamente. Parabéns Celamar, adore a sua crônica.

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