sábado, 27 de agosto de 2016

Língua, civilização e cultura


* Por Celso Cunha


A língua é um conjunto de sinais que exprimem idéias, sistema de ações e meio pelo qual uma dada sociedade concebe e expressa o mundo que a cerca, é a utilização social da faculdade da linguagem. Criação da sociedade, não pode ser imutável; ao contrário, tem de viver em perpétua evolução, paralela à do organismo social que a criou.

Em sua história, o indivíduo desempenha papel modesto. É, porém, na execução individual que a língua se concretiza. E, como cada indivíduo tem em si um ideal lingüístico, procura extrair do sistema idiomático de que se serve as formas de enunciado que melhor lhe exprimam o gosto e o pensamento. Essa escolha é sempre uma operação artística. É a fala individual, o estilo, o próprio indivíduo a expressar suas alegrias e suas angústias. Alguns, melhor dotados, conseguem captar a frescura lírica ou o calor épico do quotidiano, a vibração da época, transpô-los em caracteres e fazê-los reviver pelos tempos em fora. Por isso a obra de arte é intangível.

"Contra a Arte, ó! Morte, em vão teu ódio exerces!"1 disse o poeta. Mas, por expressarem os ideais artísticos da época, soaria falso um Virgílio quinhentista ou um Camões novecentista, e, porque foram grandes e porque foram gênios, certamente eles seriam os autores, se em outros séculos vivessem, não da Eneida e de Os Lusíadas, mas de poemas muito diversos no espírito e na forma.

Além disso, o passado é sempre fragmentário. Jamais o podemos reconstituir em suas minúcias, pois, como lembra Goethe, do que foi feito ou dito, uma ínfima parte foi escrita; do que foi escrito, uma ínfima parte foi conservada.

É, assim, um erro ver o presente com os olhos do passado, como o é o inverso, examinar épocas antigas com preconceitos modernos. Ao historiador é necessária certa dose de despersonalização, deve ele seguir o conselho de Anatole France e ser, por estranho desdobramento, homem antigo e homem moderno, e viver sobre dois planos diferentes. Mas aos nossos historiadores da língua e da literatura - não há injúria em dizer-se - falta de regra esta elementar capacidade dramática: não conseguem despegar-se de velhos e cansados processos, e, temerosos da vida perigosa sobre planos distintos, procuram fundi-los, para sua comodidade, num só. É a tragicomédia do historicismo, a que se refere Leo Spitzer, "que parte para a conquista da verdade histórica 'objetiva' e traz apenas, como fruto da pilhagem, uma indigesta moles viscosa do subjetivismo do historiador, que, decapitando as épocas históricas e desconhecendo-lhes a forma mentis, relaciona tudo, exceto os a priori da própria época".

Um conhecido fato, narrado por Adolfo Mussafia, demonstra a que exageros pode chegar o historicismo inverso, que vigorou, com preponderância, em fins do século passado, quando Hermann Paul enfaticamente afirmava não haver outro estudo científico da língua senão o histórico.

Mandara Mussafia um examinando à pedra e pedira-lhe que escrevesse em francês a frase:

"O Imperador chamou Rolando."

O jovem prontamente redigiu:

"Lu emperere at apelet Rollant."

- Muito bem! - redargüiu. - Escreva agora em francês moderno.

A resposta foi também pronta.

- Ah! senhor professor, o francês moderno ainda não aprendemos...2

Em verdade, nenhuma atividade exige mais, e mais tem padecido dessa visão sincrônica dos fatos do que a filologia. Explicam-se fenômenos antigos à luz de documentação moderna, estabelecem-se relações várias, sem levar em conta as divergências de tempo e de espaço, a cronologia e a geografia do fato lingüístico-literário.

O mais grave, no entanto, o que está a matar o estudo do idioma em nossas escolas, principalmente nas primárias e médias, é que todo o ensino se faz na base do certo e do errado, do que é e do que não é vernáculo.

É natural que se evitem os erros, isto é, as formas lingüísticas que transgridem a norma coletiva ou que são inadequadas a determinada função, mas não se deve nem se pode agir no caso com demasiado rigor, pois, como salienta Frei, a maioria das incorreções servem geralmente para prevenir e reparar os déficits da linguagem correta. Melhor que os filólogos, os escritores sentem isso, e fazem até da impropriedade uso consciente, empregando-a como recurso de estilo de rara expressividade. E aqueles de linguagem predominantemente afetiva são os que mais fogem aos padrões coercitivos.

Evitem-se os erros, os erros verdadeiros. Mas para isso só há o remédio já preconizado por Jespersen: "Nada de listas nem de regras, repita-se o bom muitas e muitas vezes."3

Convenhamos, porém, nesta preliminar: o "bom" só pode ser assim considerado se for sentido como tal, e só pode ser sentido dentro de uma norma exeqüível, ou seja, de que participe o locutor.

Abandonemos, pois, esse ensino inoperante de regras e exceções. Estudemos a língua. Que não se repita em nosso ensino o que se conta de um professor dinamarquês, que, tendo perguntado a um aluno qual o gênero do substantivo francês mort - e acrescentando, em seguida, por quê? -, obteve a resposta: "porque vem do latim mors, que é feminino"; com o que não se satisfez e corrigiu assim: "nada disso, é porque é exceção".4

Sejamos mais clementes com os estrangerismos, mesmo porque não podemos evitá-los, pois nos vêm com os progressos da civilização - a palavra a acompanhar a coisa, indicando-lhe a origem.

Com relação ao exagerado purismo, devemos ter presentes algumas advertências de Ortega y Gasset, que bem merecem um comentário particular.

Em suas meditações sobre a língua e o estilo, Ortega que, com Unamuno e toda a geração espanhola de 98, combateu o casticismo esclerosante, coloca a questão em seu justo lugar:

"Escritor casticista", diz ele, "significa em meu léxico uma forma de desonra literária, quero dizer, é uma das muitas maneiras, das infinitas maneiras entre as que um poeta pode escolher para não sê-lo."5

E acrescenta:

"Um eu poderoso não perde tempo em temores de ser absorvido por outro; antes, pelo contrário, está seguro de ser ele o absorvente. Dotado de forte apetite, acode aonde haja alguma matéria assimilável. Deste modo aumenta sem cessar, transforma-se e se enriquece."

Investindo contra a ininterrupta tradição do imperativo casticista, encarecido por muitos como elemento mantenedor da própria espiritualidade nacional, adverte:

"Preocupar-se tanto com a própria personalidade equivale a reconhecer que esta não é suficiente, que não se basta a si própria, que pelo menos necessita de tutela.

Mas o casticismo é o gesto fanfarrão que a debilidade faz para não ser conhecida."

E justifica: "O castiço, precisamente porque significa o espontâneo, a profunda e inapreensível substância de uma raça, não pode converter-se em uma norma. As normas são sempre abstrações, rígidas fórmulas provisórias que não podem aspirar a incluir as ilimitadas possibilidades do ser. Por amor à Espanha (leia-se Brasil e Portugal) de hoje e de amanhã, não nos queiram reduzir à Espanha (leia-se Brasil e Portugal) de um século ou de dois séculos que passaram! A psicologia de uma raça deve entender-se como uma fluência dinâmica sempre variável, jamais conclusa."

"Um escritor purista é, pois, um escritor que se atém a formas de poesia inventadas por outros artistas de seu país; o que quer dizer que é um imitador, não um poeta."

Em outra ocasião, ao falar da pusilanimidade do tradutor que, em vez de descumprir os dogmas gramaticais, encerra o escritor traduzido na prisão da linguagem convencional, diz:

"Escrever bem consiste em fazer continuamente pequenas erosões na gramática, no uso estabelecido, na norma vigente da língua. É um ato de rebeldia permanente contra o contorno social, uma subversão. Escrever bem implica certo denodo radical."6

Há, porém, outro aspecto no purismo, e aí para Ortega está o seu maior perigo: o casticismo é arcaizante. O espírito é força, vida, invenção, criação, e a memória é inércia, peso da alma, matéria espiritual. Por isso, conclui:

"O arcaísmo é a forma de produção literária e científica que escolhe um povo quando sua vida decai e se orienta para a morte. É certo que do passado, canteiro maternal, hão de extrair-se os materiais para o novo, mas o arcaísmo consistir precisamente em reter o passado galvanizando-o, dotando-o de uma falsa atualidade e vigência."7

"O homem inatural que caminha pela existência graças a um impulso que fica atrás dele não pode ter tampouco sensibilidade para a atualidade circundante. É um espectro para quem tudo é espectro."

Não é outro o pensamento de Dámaso Alonso, quando escreve:

"Para conhecer a sensibilidade de um homem pergunto-lhe primeiro pela arte que se está criando em volta dele. Porque creio que quem não participa da compreensão da arte de sua época dificilmente compreenderá a antiga. Quer isto dizer que duvido muito de um crítico literário (e de um filólogo, acrescentamos nós) se o vejo dar as costas à poesia viva, manante."8

Presenciamos hoje, no Brasil, uma arte nova desenvolver-se em torno de nós, vemos consolidar-se a idéia dos iluminados de 1922 - a antecipação do verdadeiro artista à sua época -, vemos tudo isso e sentimos o contraste entre uns poucos que procuram utilizar os recursos intocados do idioma e a massa opressiva dos que saem dos nossos colégios sabedores de uma língua que não funciona, prisioneiros de uma gramática que é um código de impedimentos ao uso dos meios expressivos de que nos servimos na fala corrente. E o curso médio é, por excelência, um curso de formação e, como tal, deve formar o aluno para a vida que vai realmente viver.

E não é só a língua que nos ensinam para bem falar e escrever que se apresenta assim dissociada da realidade do tempo. A chamada gramática histórica, que a muitos, no 2o ciclo do ginásio e nas Faculdades de Filosofia, serve de enganosa erudição, de regra nada traz de história, de conteúdo cultural de outras épocas. Não passa em geral de fatos desconexos, de leis evolutivas inexoráveis.

É, pois, imprescindível mudar tal estado de coisas e juntar nossas vozes àquelas que clamam contra este ensino inútil.

Preliminarmente, cumpre-nos mostrar que a literatura brasileira atual é extremamente rica e talvez tenha, como em nenhuma outra época, possibilidades de projeção universal. É sobre os seus textos que se deve fundar o ensino do idioma no curso médio, principalmente nas primeiras séries.

"Nenhuma época se equivoca esteticamente." Os gramáticos em geral e os nossos em particular infelizmente não entendem assim, e procuram contrariar uma das características da espécie que tem "uma constituição futurista", que caminha para a frente, não contra a tradição, mas incorporando-se, para seguir além dela.

Com essas considerações, não pretendemos, como poderá parecer a espíritos desavisados, propor a anarquia lingüística, mas sim aconselhar que se resguarde a unidade substancial da língua, estudando-a como ela é, e não como alguns supõem ou desejam que deva ser. Por isso, não vemos razão para um teorismo abusivo, fundado em conceitos duvidosos, nem tampouco para uma prática, baseada em processos analíticos, que decompõem a tal ponto a expressão sintética que a fazem irreconhecível, qual a Mosca azul do conhecido poema de Machado de Assis.

Seu refulgir mais parecia um sonho; dissecada pelo poleá, perdeu, no entanto, aquela

"Visão fantástica e sutil,"

e sucumbiu

"Rota, baixa, nojenta, vil."

Examinemos tão-somente a expressão realizada. Não queiramos repor o que os autores desejaram omitir. Não completemos aquilo a que nada falta, o que está perfeito e concluso.

A língua de nossos dias reflete a civilização atual, rápida no enunciado, em virtude da própria rapidez vertiginosa do desenvolvimento material, científico e técnico: processos acrossêmicos, reduções às iniciais de longos títulos, interferências de vocabulários técnicos, intercomunicação de linguagens especiais, tudo vulgarizado imediatamente pelo jornal, pelo rádio, pela televisão. Impossível ao estudioso do idioma manter a quimera do purismo lingüístico, querer forçar a jovens, que pertencem aos mais diversos grupos sociais, um padrão idiomático dissociado da vida, mosaico de formas e construções de épocas várias, encanecidas ou mortas pelo tempo.

A petrificação lingüística é a morte do idioma. A linguagem é, por excelência, uma atividade do espírito, e a vida espiritual consiste em um progresso constante.

"Toda a verdadeira intuição ou representação", lembra Croce, "é em suma expressão. Aquilo que não se objetiva em uma expressão não é intuição ou representação, mas sensação e naturalidade. O espírito só intui fazendo, formando, exprimindo."9

É claro que se podem opor - e têm sido opostos - argumentos sérios ao paralelismo da linguagem e do pensamento, concebido de forma absoluta por que fazem alguns, como Humboldt, Steinthal, Wundt, Cassirer e Vossler, que, afirmando a perfeita adequação entre a forma fonética da linguagem e o pensamento, ambicionam reconstituir todas as oposições psíquicas sobre a expressão lingüística. Mas o fato é que não podemos tirar as nossas ilações senão da expressão. Não podemos sair, em nossas análises críticas, dos limites da expressão. Neste sentido, exagera Bertoni, "pode-se afirmar que a língua é o próprio pensamento: isto é, o corpo, não a veste do pensamento".10

Há por aí uma geração nova, desiludida dos falsos profetas, dos "archissuppôts de la langue", dos que se comprazem em fabricar palavras que não vivem, dos que procuram evitar a entrada de vocábulos das línguas de civilização atuais - e, em nome de um purismo soi-disant eterno, só admitem a pilhagem ao latim e ao grego.

Ela um dia terá a sua hora. E, porque acreditamos nos destinos do Brasil, estamos certo de que a verdade científica predominará ao fim.

Dia virá em que os diversos aspectos do nosso opulento e harmonioso idioma serão examinados de forma concreta, em que questões de fato venham a ser estudadas como tais e em que disporemos de meios para isso.

O estudo da língua considerada como fato puro e objeto de análise descritiva, realizado à base de métodos rigorosos e com a ajuda de um instrumental que é hoje complexíssimo e que, por si só, já constitui uma especialização, ou mesmo um largo campo de especializações, conduz ao atesouramento de uma riqueza nunca para desprezar, bem que julguem muitos o contrário.

E também aqui reveste a filologia, pelos fins que demanda, uma importância que não é puramente lingüística. Trabalhando sobre amostras da língua escrita ou da língua oral, analisando a expressão de grupos metropolitanos ou de populações campesinas, o objeto do filólogo está em descrever, analisar e caracterizar não somente a língua, mas o fato cultural de que ela é a expressão.

Desde Schuchardt e Meringèr, com a doutrina das Wörter und Sachen, aos mais modernos atlas lingüísticos, aspira a filologia ao conhecimento do homem, que estuda em sua expressão, reconstituindo-o em seu meio, em seu tempo, em seu mundo psíquico, em suas ações.

O mesmo para as atividades relativas à língua escrita: a edição de textos, por exemplo, que a tantos entre nós tem parecido - por força do que infelizmente se vê de nossa realidade - obra mecânica e de exigências puramente materiais é das tarefas mais graves da filologia.

[...]

1. Augusto dos Anjos, Eu, 1912, pág. 66.

2. Citado por Serafim da Silva Neto, Manual de filologia portuguesa, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1957, pág. XIII.

3. Cf. Otto Jespersen, How to Teach a Foreign Language, translated from the Danish original by Sophia Yhlen-Oslen Bertelsen, M. A., twelfth Impression, 1961, pág. 124. Depois de criticar os diversos conceitos de correto e incorreto, do ponto de vista lingüístico, Jespersen chega à conclusão de que é correto o exigido pela comunidade lingüística a que se pertence. Ou, como diz em outra obra: "falar correto significa o falar que a comunidade espera, e erro na linguagem equivale a desvios desta norma, sem relação alguma com o valor interno das palavras ou formas" (Humanidad, nación, individuo desde el punto de vista lingüístico, traduzido por Fernando Vela, Buenos Aires, 1947, pág. 178).

4. Referido por Jespersen (cf. How to Teach a Foreign Language, pág. 125).

5. El Espectador, Madrid, 1950, pág. 250 e segs.

6. Miseria y esplendor de la traducción, in "Obras Completas", I, 4ª ed., Madrid, 1958, pág. 434.

7. Problemas culturales, in "Obras Completas," I, 4ª ed., Madrid, 1957, pág. 550.

8. In Dámaso Alonso y José M. Blecua, Antología de la poesía española. Poesía de tipo tradicional, Madrid, 1956, pág. IX.

9. Estetica come scienza dell'espressione e linguistica generale, sesta edizione riveduta, Bari, 1928, pág. 11.

10. Giulio Bertoni, Introduzione alla filologia, Modena, 1941, pág. 10. Quanto ao pensamento lingüístico de Bertoni, leia-se a análise crítica de Giovanni Nencioni, Idealismo e realismo nella scienza del linguaggio, Firenze, 1946, especialmente págs. 17-26.

(Uma política do idioma, 1965).


* Professor, filólogo e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras.

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