sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Vibrações

* Por Raul Pompéia


Comme des longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se repondent.

C. BAUDELAIRE



Vibrar, viver. Vibra o abismo etéreo à música das esferas; vibra a convulsão do verme, no segredo subterrâneo dos túmulos. Vive a luz, vive o perfume, vive o som, vive a putrefação. Vivem à semelhança os ânimos.

A harpa do sentimento canta no peito, ora o entusiasmo, um hino, ora o adágio oscilante da cisma. A cada nota, uma cor, tal qual nas vibrações da luz. O conjunto é a sinfonia das paixões. Eleva-se a gradação cromática até à suprema intensidade rutilante; baixa à profunda e escura vibração das elegias.

Sonoridade, colorido: eis o sentimento.

Daí o simbolismo popular das cores.

VERDE, ESPERANÇA

A impetuosa alegria da terra, à passagem de Flora, a primavera verde, compromisso maternal do outono e da opulência.

Náufragos no mar.

Sem pão, sem rumo. Em roda, o gume afiado do horizonte, a reverberação do sol nas águas e o silêncio solene da calmaria. A vela do barco, flácida, pendente — imagem do abatimento. Ligeira viração depois; denso nevoeiro... quatro dias! sudário de brumas que envolve o barco, elimina o céu. Vão acabar assim, amortalhados na bruma. Um ramo, apenas, sobre as águas, um ramo cor da esperança. Salvos! Adivinha-se o continente salvador através da névoa e o panorama verde das florestas.

AMARELO, DESESPERO

Ouro e sol; ouro, o desespero da cobiça, sol, o desespero da contemplação: a cor dos ideais perdidos.

Sobre o leito, o cheiro mau das chagas era como uma antecipação da morte. Descamava-se a pele em crostas ásperas sobre o grude do pus. Ela morria, alcançada pelo sorteio inexorável da Peste. À porta, o anjo negro da maldição; longe, a espavorida caridade.

Ali, na parede, havia flores adornando um retrato de moço. Simples lembrança da Páscoa, flores da aleluia, colhidas numa escapada de amantes. Amor não faz quaresma... Cobertas de ouro as árvores... Ela também triunfante: ouro sobre o esplendor adorado do sexo... Agora fitava as flores secas. Junto dela, o filho, pequeno animal sem vontade, sem vida, que lhe chegava aos lábios um copo d’água.

Sobrara-lhe um filho nos desperdícios do passado, para vigiar-lhe a agonia. Ninguém mais, ninguém mais, nem Deus com ela: apenas as flores do desespero e aquele copo d’água de vez em quando, que ela sorvia como uma medicina amarga de lágrimas...

AZUL, CIÚME

Céu e oceano, a soledade sem fim. O ciúme é isolamento, queixa sem ecos do coração solitário.

Ao despertar, estava só na triste câmara. Enferma e abandonada! Calcadas aos pés as juras de ontem, como destroços de um ídolo quebrado. Fronteira ao leito, a janela parecia alargar-se mais e mais para mostrar o firmamento. Sob o reflexo azul sonhara Rosita o abandono, eles felizes numa concha de safira, levados à flor do grande lago, docemente, cantando, docemente, se a barcarola os levasse. Morreu, fechando na pálpebra a estampa diurna daquele azul fundo, deserto.
  
ROXO, TRISTEZA

Tinta tomada à palheta do ocaso e às flores da morte.

Alegre, ela. Muita luz no espaço; bailava no ar o cântico sereno da manhã; na relva os arbustos orvalhados tinham um pequenino sol em cada folha. Somente as violetas sofriam, pungidas pelo dia.

Outra manhã, tudo mudado. Na atmosfera, um torpor gélido e sombrio. Os extremos da paisagem gastam-se na cerração como as orlas de uma pintura velha: nem sol nem pássaros na relva.

Agora, órfã.

As violetas revivem, as melancólicas, desabrochando em suspiros, sob as lágrimas da chuva.

VERMELHO, GUERRA

Sangue, cólera, vingança, os hinos marciais, golpes, o incêndio, vermelho o manto dos tiranos e Marte, o astro dos combates.

Da casinha à beira-mar, olhos em febre, a velha mãe arguia a distância. Lá, mergulhara o vapor que lhe roubava o filho para a guerra. A tarde passa e a noite; a velha, imóvel, marmorizada na dor, como uma escultura do Stabat Mater. E vem a aurora, uma aurora brutal de chama e sangue. A mãe do soldado caiu como morta.

Ouvira, das bandas da aurora, um grito de morte e a voz perdida do agonizante era a voz do filho.

BRANCO, PAZ

Arminho imaculado e virginais capelas, o sagrado leito das mães, o rosto calmo dos mortos, os tranquilos fantasmas.

“Terminada a luta, minha boa Irene. Torno a ver-te enfim e aos queridinhos. Ver-me-ás também. Como se fica velho neste ambiente de pólvora queimada!         “

Dizia assim a carta, datada do acampamento. Irene ergueu os olhos para a tarde, os olhos rasos de pranto. Expirava o crepúsculo na ditosa agonia dos patriarcas, lenta e mansa; errava no ocidente a neblina lúcida da última hora, saudade apenas no dia extinto. A estrela plácida das tardes parecia olhar a terra; em frente alava-se a lua e o luar noctâmbulo ia, pelos caminhos, semeando a difusão suavíssima da paz.

Irene abandonou-se ao êxtase contemplativo, gozando o crepúsculo, como se lhe invadisse o sentimento a letargia edênica do anoitecer.

NEGRO, MORTE

O contraste da luz é a noite negra.

Sente-se na epiderme a carícia do calafrio; envolve-nos um clima glacial; estranha brisa penetra-nos, feita de agulhas de gelo. Em vão flameja o sol a pino. Sente-se dentro na altura a noite negra, invernosa, polar; sofre-se o contato da Sombra. Tudo trevas, sinistramente trevas. O dia, resplandecente na alvura dos edifícios, produz o efeito da prata nos catafalcos. Vemos as flores, o prado. Monstros! Reclamam a carne do pé que os pisa; o verme sôfrego espreita-nos através da terra... Rir?! Mas o riso tem a cruel vantagem de acentuar, sob a pele, a caveira...

Há destas escuras noites no espírito.

ROSA, AMOR

O sorrir das virgens, e o adorável pudor, e a primeira luz da manhã.

Esta criança pensativa. Acompanha com a vista o revoar dos pombos; escuta o misterioso segredo dos casais pousados. Vive-lhe ainda no semblante a candura da infância e nos formosos cabelos o cálido aroma do berço. Súbito, duas pombas partem. Vão. Longe, são como pontos brancos no azul; o bater das asas imita cintilações: vão, espaço a fora, estrelas enamoradas.

A cismadora criança experimenta a vertigem do azul e a alma escapa, sedenta de amplidão, e voa ao encalço das estrelas.

Há noites de pavor nas almas, há belos dias igualmente e gratas expansões matinais, auroras de rosa como em Homero.

Há também nas almas o incolor diáfano do vidro.

Dinheiro, amor, honraria, sucesso, nada me falta. O programa das ambições tracei, realizei. Tive a meu serviço a inteligência estudiosa do Ocidente e a sensualidade amestrada do Levante. Tive por mim as mulheres como deusas e os homens como cães. Nada me falta e disto padeço. Todos dizem: aspiração! e eu não aspiro. Todos sentem a música do universo e a harmonia colorida dos aspectos. Para mim só, vítima da saciedade! tudo é vazio, escancarado, nulo como um bocejo.

E os dias passam, que vou contando lento, lento torturado pela implacável cor de vidro que me persegue.

Há, enfim, a coloração indistinta dos sentimentos, nas almas deformadas.

Veio de longe, muito longe, mísero! Teve outrora um céu, uma pátria, muitas afeições, a cabana da aldeia. Agora só tem o ódio. O ódio mora-lhe no peito, como um tigre na furna. Tiraram-lhe a pátria, a companheira, votaram-lhe à morte os filhos, as filhas à torpeza; deram-lhe em compensação... Mostrava a face preta, o sangue a correr. Quem são os teus algozes?

— Os homens brancos.

Ela odeia os homens brancos; odeia a torre aguda, ao longe, como um punhal voltado contra os céus: odeia o trem medonho de fogo e ferro, que muge e passa, troando, escândalo do ermo.

(Canções sem metro, 1900)


* Jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.

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