sábado, 20 de agosto de 2016

Teoria da falsidade

* Por José Honório Rodrigues


Precisamos saber o que é a falsificação, para depois sabermos como suspeitarmos que uma fonte foi falsificada. Princípios jurídicos e de crítica histórica bastam-nos para defini-la. A noção de falsificação não pode ser obtida a menos que se decomponha o fenômeno, isolando-o tanto quanto possível. Para isto é preciso estudar: a) o objeto da falsificação, isto é, o que se falsifica; b) o sujeito ativo autor da falsificação (quem falsifica); c) o sujeito passivo (destinatário) da falsificação; d) a causa da falsificação ou por que se falsifica; e) o modo da falsificação, ou como se falsifica; f) o meio da falsificação, ou com que se falsifica; g) o uso da falsificação, ou o que se faz com ela; h) o efeito da falsificação, ou o que dela se obtém.

O objeto da falsificação é provar alguma coisa. Trata-se de fornecer uma razão e formar um juízo para provar um fato como verdadeiro. O sujeito é sempre um impostor que tem capacidade não só técnica, mas funcional para procurar legitimar o falso. Daí a atenção especial que se deve dar aos empregados oficiais ou públicos, às partes judiciais, aos comerciantes desonestos, etc. A falsa prova pode determinar o falso juízo; quando ela é feita com este fim transforma-se em engano. Mas o engano não é falso juízo, isto é, erro, mas atividade dirigida a gerá-lo. Por isso, falsificação e engano são duas etapas da estrada que leva ao erro.

O engano, na terminologia civilista, chama-se dolo; esta palavra significa, em primeiro lugar, a intenção de provocar dano; um segundo significado é o do comportamento dirigido a gerar erro.

Os motivos da forjicação abrangem toda a escala dos instintos e emoções humanas, desde o amor ao ganho até o desejo de vingança, doações para assegurar privilégios ou imunidades, contratos para proteger títulos ou propriedades, cartas para obter vantagens pessoais ou frustrar oposição, anedotas e contos para exaltar ou danar reputações.

Do ponto de vista jurídico, as três causas principais da falsificação são: intenção de enganar (dolo ou causa decipiendi), a intenção do dano (causa nocendi), e a intenção de fraudar (causa fraudandi). As várias espécies de falsificação são: por supressão, alteração, ou contrafação. Estas são as falsificações externas ou materiais. Há ainda a considerar a falsificação interna, ideológica, a mentira, calúnia, injúria, ou sejam, alterações da verdade, problemas da crítica interna ou da fidedignidade. São as falsificações internas ou ideológicas.

Há, assim, que distinguir entre a falsidade externa e a falsidade interna, entre o verdadeiro externa e internamente, exprimindo-se o primeiro pelo adjetivo verídico e pelo substantivo veracidade, e o segundo pelo adjetivo genuíno e pelo substantivo genuinidade. O resultado da falsidade, que é usada para enganar, é o erro. Engano e erro estão em relação de causa e efeito. Conduzindo ao erro, a falsidade conduz também ao dano, ao abuso da credibilidade particular ou pública, à injúria, à trapaça, à fraude. Assim, pela sua capacidade em determinar o engano e a fraude, a falsidade adquire relevância jurídica e histórica, como um dano não só econômico, mas também moral, como um perigo social. O efeito jurídico da falsidade é a pena.

Pelo Código Filipino, de acordo com as disposições contidas nos títulos 52-54, eram punidas as falsificações de selos, escrituras e testemunhos falsos. No Código Criminal Brasileiro, de l6 de dezembro de 1830, tratava-se da falsidade no título IV, seção VI, cap. II, punindo-se a fabricação de qualquer escritura, papel ou assento falso, ou a introdução em qualquer escritura ou papel verdadeiro de alterações das quais resulte modificação do seu sentido. Punido era também o uso de escritura ou papel falso ou falsificado como se verdadeiro fosse, sabendo-se que não o era. Crime era também o fato de concorrer para a falsidade, ou como testemunha ou por qualquer outro modo. No capítulo III, tratava-se do perjúrio ou falso juramento em juízo. Pelo Código Penal de 1890, era também punida a falsificação de documentos - ou seja, sob o ponto de vista da proteção penal, de todo escrito juridicamente relevante - ou o seu uso. Para a configuração da figura delituosa era necessário, entretanto, que tivesse sido produzido um dano econômico. Foi só depois das cartas falsas atribuídas ao Sr. Artur Bernardes, com o decreto n. 4.780, de 1923 (cujos dispositivos ficaram depois como parte integrante da Consolidação das Leis Penais), que se passou a considerar o dano moral como caracterizando também a falsidade documental. Eram também punidos como modalidades de falsidade em juízo o falso testemunho, a falsa perícia e a denunciação caluniosa. Pelo Código Penal de 1940, as falsificações de que estamos tratando aqui são incluídas no título X, “Dos crimes contra a fé pública”, que é dividido em quatro capítulos, com as seguintes epígrafes: “Da moeda falsa”, “Da falsidade de títulos e outros papéis públicos”, “Da falsidade documental” e “De outras falsidades”. Os crimes de testemunho falso e denunciação caluniosa figuram entre os crimes contra a administração da justiça. O Código Penal de 1940 pune entre os crimes contra a fé publica os de falsificação de moeda (arts. 289-292), o da falsidade de títulos ou outros papéis públicos (arts. 293-295), o da falsidade documental (arts. 296-305) e o de outras falsidades (arts. 306-377).

Na Exposição de Motivos que justificou o novo Código Penal, Francisco Campos escrevia que “para dirimir as incertezas que atualmente oferece a identificação da falsidade ideológica” foi adotada uma fórmula suficientemente ampla e explícita: Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou inserir ou fazer inserir nele declarações falsas ou diversas das que deviam ser escritas, com o fim de prejudicar um direito, criar uma obrigação, ou alterar a verdade dos fatos juridicamente relevantes.

A falsidade ideológica ou a mentira, por omissão ou reticência, por alteração ou por invenção se refere à narração do fato, com a qual se perturba tanto o processo jurídico, como o processo histórico e, consequentemente, a história.

A luta do direito e da história contra a falsidade resolve-se pela eliminação desta, pela confiscação da prova falsa e pela retificação do documento falso, pela restituição do documento à sua genuinidade.

A falsidade classifica-se em testemunhal e documental, ambas de estreito interesse histórico. Mas é a figura do falso documento que tem sofrido a mais profunda elaboração científica, e por isso apresenta na lei os contornos mais claros. No conceito de documento falso não se podem incluir apenas os escritos, mas os documentos artísticos, fotográficos, cinematográficos e fonográficos, capazes também de surpreendentes falsificações.

Todas estas formas de falsidade interessam igualmente ao historiador, que vê como os próprios documentos públicos, que têm por si a presunção de autênticos, podem ser falsos. É o exame crítico que decide o grau de genuinidade, como determina a fidelidade, em etapa posterior.

Por isso, documentos de origem jurídica não podem ser qualificados de autênticos ou fidedignos, antes de um severo exame crítico. Só a prova crítica decide e determina a nossa confiança e fé.

Como se chega a suspeitar da falsificação de uma fonte? É uma operação delicada, que exige engenhosidade e clarividência, que têm faltado a muitos historiadores. Desde que houve documentos públicos e falsários que os contrafizeram, diz João Pedro Ribeiro, não podia deixar de buscar-se meios para conhecer a mesma falsidade e demonstrá-la, por isso que ela cedia em prejuízo de alguém. Embora seja moderno o sistema que reduziu a um corpo as regras para distinguir os verdadeiros dos falsos documentos, sempre foram conhecidas mais ou menos as mesmas regras. E para não buscarmos exemplos mais remotos, bastará lembrarmo-nos de que a Igreja, desde a sua origem, usou certos princípios para distinguir as verdadeiras das falsas obras dos Apóstolos e dos padres; por eles se conheceram e foram proscritas outras, castigando os imperadores romanos os seus autores. Algumas dessas regras foram incluídas no Corpo dos Decretais, nos títulos de Fide instrumentorum e de Crimine falsi.

É preciso, assim, em primeiro lugar, considerar-se certas características do documento, como a matéria empregada, examinando se coincide a elaboração da fonte com a época e o lugar de sua elaboração. Frequentemente são as observações externas, tais como a letra, a particularidade ou multiplicidade das abreviaturas, o caráter da escrita, os ornamentos - detalhes que sabemos por intermédio da paleografia -, a natureza do papel, a substância da tinta, que nos indicam a pista. O estudo da linguagem de uma fonte pode também fornecer-nos luzes acerca de sua autenticidade ou falsidade. Devemos, ainda, examinar as características que se referem a contradições de conteúdo, que se encontram em oposição à época de que se quer fazer proceder a fonte, o lugar de que parece proceder, ou a pessoa que parece ser o seu autor.

Na maioria das vezes, com a descoberta dessas contradições só se tem um meio para suspeitar da autenticidade da fonte. Mas para se chegar à compreensão definitiva de que se trata realmente de uma falsificação é necessário traçar a história da fonte falsificada, esclarecer a personalidade de seu autor e verificar a finalidade da falsificação.

De modo geral, pode-se dizer que a descoberta das falsificações segue o mesmo caminho da criminalística.


* Professor, historiador e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras.

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