sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O poder da palavra no ouro olímpico

* Por Urariano Mota


A medalha de ouro para a magnífica atleta Rafaela Silva, vencedora dos limites da sua condição de classe, raça e gênero, guarda muitas explicações. Delas, a mais elementar destaca o seu poder de guerreira, de talento e resistência na funda pobreza. Essa é a versão dos que procuram super-heróis ou apoio em leituras de autoajuda, que é sempre refrigério no desespero ou sofrimento.

Outros, com justa razão, lembram o que a grande mídia esconde: Rafaela é uma das atletas abrigadas na Bolsa Pódio, criada em 2011 no governo da presidenta Dilma Rousseff. O objetivo da bolsa, de valor máximo de quinze mil reais, é apoiar atletas com chances de disputar finais e medalhas olímpicas e paraolímpicas. Na campanha presidencial de 2014, Rafaela chegou a gravar um vídeo manifestando apoio a Dilma e citando o apoio estatal. “Ela incentivou bastante o apoio a nossos atletas. A gente tem o bolsa atleta e para mim e meus companheiros ela fez muita diferença para a gente buscar nossos sonhos”, disse na ocasião.

Mas nesta hora de superação, quando o Brasil inteiro se comove com as lágrimas da atleta negra e se vê levantado na bela mulher do alto do pódio, mais me fere um momento da sua vida. Em 2012, ela foi desclassificada nas olimpíadas de Londres, e a partir dali a suja e racista parcela do zoológico brasileiro lhe dirigiu as piores mensagens, Disseram-lhe que era uma vergonha para a família, e que “macaca devia estar na jaula”. Além da derrota, feriam-lhe o valor intrínseco de humanidade. Rafaela afundou numa desesperança sem remédio, e queria abandonar o judô, porque afinal um esporte de gente não servia para ela.

Então deprimida, quando se encontrava  como no soneto Só, de Cruz e Sousa:

“Muito embora as estrelas do Infinito
Lá de cima me acenem carinhosas
E desça das esferas luminosas
A doce graça de um clarão bendito;

Embora o mar, como um revel proscrito,
Chame por mim nas vagas ondulosas
E o vento venha em cóleras medrosas
O meu destino proclamar num grito,

Neste mundo tão trágico, tamanho,
Como eu me sinto fundamente estranho
E o amor e tudo para mim avaro...

Ah! como eu sinto compungidamente,
Por entre tanto horror indiferente,
Um frio sepulcral de desamparo!”

Então surgiu a palavra que a salvou. Para convencer a judoca a continuar na luta em mais de um sentido, bastou uma pergunta da psicóloga Nell Salgado. A psicóloga perguntou a Rafaela se em dois anos ela se imaginava fora do judô. E Rafaela refletiu: “Mas o judô era a minha vida. Aí caiu a minha ficha e eu voltei a treinar”.

Esse momento me encanta mais em particular. O instante em que a palavra é fundamental, insubstituível. Diferente do que se divulga em uma amputação medíocre de Shakespeare, de que palavras são palavras e que pelo ouvido jamais o coração será atingido, elas, pelo contrário, podem ser anúncio de ação, de mudança. Elas devem e têm que existir no espaço que seria vazio como o universo sem o homem.  Quantas vezes nos omitimos por vergonha de parecer fraco, por pudor ou por covardia mesmo, quando deveríamos falar ou escrever? Quantas vezes deixamos de anunciar a palavra que falta, e ela nos corrói por dentro, nos adoece e mata, porque o mundo não pode existir sem nomes?

Rafaela Silva no alto do ódio, depois das agressões do zoo do Brasil, concretizou a palavra necessária. Quem diria? O Brasil que nos orgulha é mulher, tem nome de mulher. A palavra é de ouro.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.




Um comentário:

  1. A palavra é de ouro, mas para histórias assim não há palavras, só aplausos.

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