O Melo-merendismo e o caramujo africano
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Exmo. Sr. Governador
do Estado do Amazonas
Dr. José Melo Merenda
(PROS, vixe, vixe)
Saudações
Escrevo esta carta
para cumprimentá-lo pelo fato de que o melo-merendismo transbordou as
fronteiras do Amazonas e está sintonizado com a vanguarda do atraso. O governador
de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB, vixe, vixe), o futuro Ministro da Ciência
e Tecnologia, Marcos Pereira (PRB vixe,
vixe), que é bispo da Igreja Universal, e até o candidato a presidente dos
Estados Unidos, Donald Trump (PR, pish, pish) endossaram a declaração de V.
Excia. feita em outubro passado de que não se deve financiar pesquisas sobre o
caramujo africano.
- A FAPESP não
financiará mais "pesquisas fora da realidade, sem utilidade prática"
- declarou Alckmin, cujo governo também está envolvido com desvio de merenda
escolar. Dessa forma, São Paulo adota a visão melo-merendista de que nós só
devemos estudar "o que é nosso", entendendo por "caramujo
africano" tudo aquilo que vem de fora. Embora o dito c(aram)ujo já
infiltrado na região prejudique a saúde dos amazonenses, ele é estrangeiro e
quem deve estudá-lo não somos nós, mas as negas dele.
Senhor governador, sob
pretexto de advogar uma política em defesa dos genuínos interesses da cultura
amazonense, sua fala retrógrada ferra a população. Quando o pesquisador estuda
o caramujo africano e localiza focos de infecção até mesmo em Manaus, ali no
igarapé do Mindu, por trás do conjunto Tiradentes, como foi feito, isso ajuda a
combatê-lo, evitando assim os estragos que faz, provocando cólicas abdominais,
dor de cabeça, anorexia e até problemas neurológicos como a meningite
encefálica. O caramujo já é afroamazônico. E ninguém tasca!
Os amazonenses,
inclusive seus eleitores, sofrerão com o "pesquisicídio". Perde a
ciência e perde o Amazonas com essa visão epistemologicamente indigente, que
desconhece tanto a natureza do conhecimento científico quanto o conceito
antropológico de cultura, ignora a relação entre esses dois campos e opõe um ao
outro como se excludentes fossem. É burrice pensar que financiar estudo sobre o
"afrocaramujo" tira a merenda da boca das crianças. O que tirou a merenda - V. Excia e Alckmin
sabem mais do que ninguém desde 1996 - não foi bem o cara mujo, mas o cara
careca.
Newton caboco
Trata-se de falso
dilema, como observou Theodor Berchem, reitor de uma universidade alemã, em
conferência no IX Congresso da Associação Internacional de Universidades. Para
ele, a universidade deve ser fiel a dois compromissos: um com a ciência, que é
universal, o outro com a cultura, que é particular. A lei da gravidade, por
exemplo, funciona em qualquer lugar, mas a cultura amazonense só existe aqui.
Se V. Exa. fosse o Newton caboco, do alto cairia não uma maçã, mas uma jaca ou
um tucumã que, embora rachando sua excelentíssima careca, confirmaria a lei da
gravidade.
Sua declaração
demagógica e intelectualmente falaciosa sobre o caramujo, que pretexta defender
a cultura para negar a ciência, foi feita no contexto da implosão da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), com o desmonte no início
do seu governo da extinta Secretaria de Ciência e Tecnologia (SECT). V. Excia.
é o coveiro de um corpo que está vivo, de uma instituição reconhecida em todo o
Brasil que se destacou como a quarta do país, como lembrou Odenildo Sena,
ex-diretor presidente da instituição.
O melo-merendismo
ataca a política de concessão de bolsas e ameaça os pesquisadores que estudam
"caramujos africanos" e temas afins. Além disso, muitos dos atuais
6.644 bolsistas em diferentes níveis de formação correm o risco de perder as
bolsas, porque V. Excia. suspeita de que entre eles existem
"fantasmas", isto é, residem em outras localidades fora do Amazonas e
recebem o benefício sem realizar qualquer pesquisa, conforme denúncia feita por
V. Excia. na cerimônia de entrega da medalha "Colar Mérito de Contas"
no Tribunal de Contas do Estado (TCE).
Essa acusação, que é
tão grave como desviar para o próprio bolso recursos da merenda escolar, atinge
seu antecessor, Omar Aziz, agora senador, que tem responsabilidade se no
governo dele houve alguma mutreta ou fraude nos critérios de seleção dos
bolsistas.
Merendando
Os bolsistas de
mestrado e doutorado passam por uma prova de fogo, enfrentam processo de
seleção e uma vez aprovados são obrigados a comprovar sua matrícula na
instituição que o acolhe e a trabalhar duro. Depois, a FAPEAM acompanha de
perto o desempenho do bolsista, através de relatórios mensais que o beneficiado
é obrigado a enviar, com a chancela do seu orientador, até o fim da bolsa. A
acusação joga todo esse processo na lata do lixo e "desqualifica e
desacredita a instituição", como afirmou Sena.
A proposta de
auditoria na FAPEAM para identificar "fantasmas" é, na realidade, um
pretexto para justificar o atraso de pagamento dos bolsistas, conforme se deduz
das declarações de V. Excia:
"A gente tem
notícia de que há pessoas recebendo que não são bolsistas. Aqueles que ficarem
depois do pente fino receberão no tempo certo".
De onde veio tal
notícia? Qual sua origem? Quem foi o autor dela? Mistério tão insondável como
saber o que aconteceu há vinte anos com duas toneladas de merenda escolar, o
equivalente a 215 caminhões carregados de alimento, que foram desviados e
desapareceram.
O certo é que se o
físico amazonense de renome internacional, Alberto Santoro, dependesse da
concepção melo-merendista de pesquisa, não teria feito doutorado na Université
Paris VII, não teria pesquisado nos Estados Unidos como cientista convidado do
FERMILAB e nem lideraria grupo de pesquisadores no Grande Colisor de Hádrons
(LHC), na fronteira da Suíça com a França, que averigua a existência do bóson
de Higgs, a partícula primordial que deu origem a tudo o que existe no
universo. Enfim, é esse "caramujo africano" que o melomerendismo quer
jogar na lata do lixo.
Nesta quarta-feira
(04/05), no Rio de Janeiro, em cerimônia realizada na Escola Naval da Marinha
do Brasil, a ministra em exercício da Ciência e Tecnologia, Emilia Ribeiro, e o
presidente do CNPq, Hernan Chaimovich entregaram o Prêmio Almirante Álvaro
Alberto a Paulo Artaxo, um pesquisador da USP que trabalhou na NASA, nos
Estados Unidos, e aplica a física em questões ambientais, especialmente nas
mudanças climáticas e no bioma da Amazônia. Em seu discurso, Artaxo defendeu a
ciência como uma estratégia para o desenvolvimento sustentável, num caminho inverso
ao proposto pela teoria - digamos assim - do melo-merendismo.
*
Jornalista e historiador.
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