Semeiem flores à
memória de Prudêncio
* Por Eduardo Murta
Os odores invadindo a manhã assim insossa de terça-feira despertam Prudêncio. Não o remetiam a outro estado que não o de puro asco. O estômago embrulhando à miscelânea de fragrâncias adocicadas. Pesquisassem, e se revelaria que flores figuravam entre os dez artigos que mais odiava – por cheiro, aspecto e significado. E alguém, maldito fosse, o houvera descoberto.
Que esperasse, porque do ódio daquele homem não escaparia. Um passo atrás no tempo vai resumir em que cenário sua alma se forjara. Ele, pernas finas ainda, aos 9 anos, adentrando a praça. Causando alvoroço. Traz Calígula à coleira. Num segundo estarão Prudêncio e o animal solitários ao centro. É das frestas das portas e janelas que a gente segue os movimentos do jacaré do papo amarelo devorando um sem-número de rolinhas capturadas em arapuca dia anterior.
Respeitara ao menos os canários de Vô Nicácio. Simulara, afinal. Namorava os limites das gaiolas, embora, no fundo, contasse as horas para que passassem dessa para melhor. A morte se confirmando, ensaiava funeral misericordioso. Preparava a covinha entre as azaleias e o conjunto de girassóis. Mero teatro. A família se recolhendo em luto, juntava em segredo frigideira, alho e óleo para o pequeno banquete.
E, semanas à frente, era o netinho pondo seus joelhos à terra em memória à alma leve do pássaro. Seria crédito para que, noutro mês, os avós defendessem sua honra diante do delegado. Não!!! Definitivamente, não era ele!!! Como um menino tão sensível se prestaria àquilo?! Sairiam com aura de santos, para depois testemunharem a cada noite o misterioso espetáculo em que gatos cruzavam a cidade em disparada. Os rabos empinados, embebidos em gasolina, imitando tochas errantes ruelas afora.
Veio em seguida a fase do isolamento. Em que, incompreendido, Prudêncio se aninhava ao limite das montanhas do lugar. Dava de observar, paciente, o balé de carcarás em busca de presas. Descobriu por lá segredos do vento e da morte. Decidiu cunhar sua personalidade àqueles tons – ora ares de monge tibetano, ora os de dragões em batalha. Tolerou, estoico, as aulinhas na retreta municipal. Até num acesso, madrugada encobrindo, incendiar partituras, instrumentos, fazendo a tolerância virar cinzas.
Virou as costas aos sons melosos, mas amaria mesmo de longe os acordes secos vindos da lona esfarrapada do circo. A primeira delegação estrangeira a aportar por lá. Se enxergou ali. Ele à linha do tiro ao alvo executando patinhos de metal. Em êxtase. Aquela imagem lhe visitaria anos mais tarde, azeitando o gatilho e ajustando a mira para as tocaias de encomenda. Inovara, quebrara códigos. Era pistoleiro único que permitira mulheres, padres e crianças na lista.
Agora, ligava para o nada. Sequer da família escondia a condição de matador. E, em eras de calmaria, invadia velórios, casamentos, batizados e missas rigorosamente para soltar peidos estrondosos no salão. Valentões reagindo, chamava logo para o duelo. Enriquecera só das comissões estratégicas pagas pela funerária. Reinava absoluto, até aquela tática das flores lhe desarmar. Chegaram rosas a princípio. Depois, margaridas, begônias, copos de leite. Cravos!!! Fora, pois eram ornamentação de defuntos!!!
Zangou-se de vez com os bichinhos em miniatura e aquele ramo de margaridas incrustado ao cano da espingarda. Heresias ao cubo. Ruminou iras. Prometeu descarregar a cartucheira nos próximos alvos contratados. Belica e Zazá – sequer lhe interessava a motivação – 3 anos mal completados. Seria em plena feira de domingo. Engatilhou a arma, esperou o clarão entre o povaréu e fez o primeiro disparo. Mascou. Veio o segundo. Daí espocaram pétalas amarelas.
Prudêncio embranqueceu, avexado. Se recolheu. Dormiu, contam, abraçado ao urso de pelúcia. E, boca miúda, que chorou. Chorou copiosamente naquela noite. Que mudara de destino e de profissão. Agora se convertera em jardineiro. De cemitérios. Porque os diálogos com a morte, é verdade, podiam lhe chegar em formas mais suaves, mas, definitivamente, não lhe podiam faltar.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
* Por Eduardo Murta
Os odores invadindo a manhã assim insossa de terça-feira despertam Prudêncio. Não o remetiam a outro estado que não o de puro asco. O estômago embrulhando à miscelânea de fragrâncias adocicadas. Pesquisassem, e se revelaria que flores figuravam entre os dez artigos que mais odiava – por cheiro, aspecto e significado. E alguém, maldito fosse, o houvera descoberto.
Que esperasse, porque do ódio daquele homem não escaparia. Um passo atrás no tempo vai resumir em que cenário sua alma se forjara. Ele, pernas finas ainda, aos 9 anos, adentrando a praça. Causando alvoroço. Traz Calígula à coleira. Num segundo estarão Prudêncio e o animal solitários ao centro. É das frestas das portas e janelas que a gente segue os movimentos do jacaré do papo amarelo devorando um sem-número de rolinhas capturadas em arapuca dia anterior.
Respeitara ao menos os canários de Vô Nicácio. Simulara, afinal. Namorava os limites das gaiolas, embora, no fundo, contasse as horas para que passassem dessa para melhor. A morte se confirmando, ensaiava funeral misericordioso. Preparava a covinha entre as azaleias e o conjunto de girassóis. Mero teatro. A família se recolhendo em luto, juntava em segredo frigideira, alho e óleo para o pequeno banquete.
E, semanas à frente, era o netinho pondo seus joelhos à terra em memória à alma leve do pássaro. Seria crédito para que, noutro mês, os avós defendessem sua honra diante do delegado. Não!!! Definitivamente, não era ele!!! Como um menino tão sensível se prestaria àquilo?! Sairiam com aura de santos, para depois testemunharem a cada noite o misterioso espetáculo em que gatos cruzavam a cidade em disparada. Os rabos empinados, embebidos em gasolina, imitando tochas errantes ruelas afora.
Veio em seguida a fase do isolamento. Em que, incompreendido, Prudêncio se aninhava ao limite das montanhas do lugar. Dava de observar, paciente, o balé de carcarás em busca de presas. Descobriu por lá segredos do vento e da morte. Decidiu cunhar sua personalidade àqueles tons – ora ares de monge tibetano, ora os de dragões em batalha. Tolerou, estoico, as aulinhas na retreta municipal. Até num acesso, madrugada encobrindo, incendiar partituras, instrumentos, fazendo a tolerância virar cinzas.
Virou as costas aos sons melosos, mas amaria mesmo de longe os acordes secos vindos da lona esfarrapada do circo. A primeira delegação estrangeira a aportar por lá. Se enxergou ali. Ele à linha do tiro ao alvo executando patinhos de metal. Em êxtase. Aquela imagem lhe visitaria anos mais tarde, azeitando o gatilho e ajustando a mira para as tocaias de encomenda. Inovara, quebrara códigos. Era pistoleiro único que permitira mulheres, padres e crianças na lista.
Agora, ligava para o nada. Sequer da família escondia a condição de matador. E, em eras de calmaria, invadia velórios, casamentos, batizados e missas rigorosamente para soltar peidos estrondosos no salão. Valentões reagindo, chamava logo para o duelo. Enriquecera só das comissões estratégicas pagas pela funerária. Reinava absoluto, até aquela tática das flores lhe desarmar. Chegaram rosas a princípio. Depois, margaridas, begônias, copos de leite. Cravos!!! Fora, pois eram ornamentação de defuntos!!!
Zangou-se de vez com os bichinhos em miniatura e aquele ramo de margaridas incrustado ao cano da espingarda. Heresias ao cubo. Ruminou iras. Prometeu descarregar a cartucheira nos próximos alvos contratados. Belica e Zazá – sequer lhe interessava a motivação – 3 anos mal completados. Seria em plena feira de domingo. Engatilhou a arma, esperou o clarão entre o povaréu e fez o primeiro disparo. Mascou. Veio o segundo. Daí espocaram pétalas amarelas.
Prudêncio embranqueceu, avexado. Se recolheu. Dormiu, contam, abraçado ao urso de pelúcia. E, boca miúda, que chorou. Chorou copiosamente naquela noite. Que mudara de destino e de profissão. Agora se convertera em jardineiro. De cemitérios. Porque os diálogos com a morte, é verdade, podiam lhe chegar em formas mais suaves, mas, definitivamente, não lhe podiam faltar.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Acredito que para resgatar uma alma
ResponderExcluirtão empedernida, só nascendo de novo.
Ótimo texto.
Abraços
Li quase sem respirar. Difícil acreditar em mudança tão radical, mas, assim como não houve explicação para o mal, também se pode dispensar o motivo da conversão.
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