Desde as neves do Ilimani
* Por Urda Alice Klueger
(Para J. G. B. de O.)
Há gente para quem quase nada importa. Pode-se ir ao pico nevado mais lindo do mundo (que na minha sensibilidade é o Ilimani) e colher de dentre a alvura da neve uma belíssima taça de cristal da mais fina lapidação, esquecida lá há milênios por certos duendes que por ali costumam transitar mas que perderam aquela taça há tanto tempo que já nem recordam dela, e trazer com o maior dos cuidados desde aquelas alturas aquela peça preciosa e ofertá-la, dizendo:
- Vês? É tua. Vou enchê-la com o que há de melhor que conseguir achar dentro de mim.
Claro que é coisa dada; não há obrigação de que seja recebida com contentamento, nem que seja recebida. Sequer se espera que tal objeto único ganhe um lugar de destaque na mesa de centro da sala de quem a ganhou, mas acaba-se sabendo que ela acabou encostada no velho móvel de madeira escura que é herança de família, aquele móvel que costuma ficar num pouco empoeirado, lá encostado na sala interior da casa, lugar onde ficam guardadas as coisas meio esquecidas/meio lembradas, e também as esquecidas para sempre.
De qualquer forma, a taça única está lá, e pode-se ir colocando nela as mais perfeitas pérolas garimpadas no universo imenso que existe dentro de uma pessoa: a da devoção extrema, a do amor incondicional, a da ternura mais límpida e confortadora, a do apoio na hora da dúvida ou do cansaço, a que representa um ombro ou uma mão que pretendem dar segurança, a do aconchego na hora da tristeza, a dos braços abertos para abrigar inseguranças, a dos cuidados futuros na velhice ... tantas, tantas são as pérolas que uma pessoa pode garimpar no que tem de melhor dentro de si e oferecer a alguém na taça do mais lindo cristal garimpada na alvura das neves do Ilimani!
São pérolas que não tem proveito nenhum mas que estão lá, disponíveis para um futuro que a gente não sabe, pois quem sabe de alguma coisa do futuro? São lindas, leitosas, brancas, rosadas, azuladas... no meio faíscam uns tantos diamantes do mais fino lavror... é bonito aquilo, não faz mal nenhum deixar lá guardado, e lá naquele velho armário escuro elas não fazem mal a ninguém, e são como que um pequeno tesouro que alguém pode ter, mesmo que não se afeiçoe a ele, mesmo que nada transmita além de fria indiferença. É um tesouro bonito, no entanto, que no mínimo serve para se dar para algumas crianças brincarem. Crianças costumam valorizar coisas bonitas – se tiverem acesso àquela taça, talvez possam brincar de joguinhos com aquelas pérolas, talvez gostem de fazer faiscar os diamantes em jóias inventadas com linha de seda surrupiadas das caixas de bordados das suas mães...
Enfim, não há por quê jogar fora coisas assim bonitas, energias assim acumuladas em forma de pérolas coloridas e diamantes faiscantes, gratuitamente guardadas no cristal daquela taça garimpada na alvura da neve.
Há gente que não se importa com nada, no entanto. Há gente que pega coisas assim bonitas e, com indiferença, derrama pelo ralo da pia cada uma daquelas contas que são a cristalização do que havia de mais bonito dentro de uma pessoa. A rara taça trazida das neves do Ilimani vai parar num saco azul de lixo, junto com coisas como cascas de frutas, pó de café e trapos de limpar o chão. Quando o caminhão do lixo chega, a taça única é triturada junto ao grande bolo das escórias da sociedade, e seus estilhaços que um dia rebrilharam na neve mais pura agora irão jazer na podridão do chorume.
Então dói, dói demasiado. É como se cada estilhaço daqueles estivesse também navegando por nossas veias gélidas e rasgando-as continuamente, e nos sentimos todo o tempo com o gosto de sangue vertendo na boca.
Há gente para quem quase nada importa...
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
* Por Urda Alice Klueger
(Para J. G. B. de O.)
Há gente para quem quase nada importa. Pode-se ir ao pico nevado mais lindo do mundo (que na minha sensibilidade é o Ilimani) e colher de dentre a alvura da neve uma belíssima taça de cristal da mais fina lapidação, esquecida lá há milênios por certos duendes que por ali costumam transitar mas que perderam aquela taça há tanto tempo que já nem recordam dela, e trazer com o maior dos cuidados desde aquelas alturas aquela peça preciosa e ofertá-la, dizendo:
- Vês? É tua. Vou enchê-la com o que há de melhor que conseguir achar dentro de mim.
Claro que é coisa dada; não há obrigação de que seja recebida com contentamento, nem que seja recebida. Sequer se espera que tal objeto único ganhe um lugar de destaque na mesa de centro da sala de quem a ganhou, mas acaba-se sabendo que ela acabou encostada no velho móvel de madeira escura que é herança de família, aquele móvel que costuma ficar num pouco empoeirado, lá encostado na sala interior da casa, lugar onde ficam guardadas as coisas meio esquecidas/meio lembradas, e também as esquecidas para sempre.
De qualquer forma, a taça única está lá, e pode-se ir colocando nela as mais perfeitas pérolas garimpadas no universo imenso que existe dentro de uma pessoa: a da devoção extrema, a do amor incondicional, a da ternura mais límpida e confortadora, a do apoio na hora da dúvida ou do cansaço, a que representa um ombro ou uma mão que pretendem dar segurança, a do aconchego na hora da tristeza, a dos braços abertos para abrigar inseguranças, a dos cuidados futuros na velhice ... tantas, tantas são as pérolas que uma pessoa pode garimpar no que tem de melhor dentro de si e oferecer a alguém na taça do mais lindo cristal garimpada na alvura das neves do Ilimani!
São pérolas que não tem proveito nenhum mas que estão lá, disponíveis para um futuro que a gente não sabe, pois quem sabe de alguma coisa do futuro? São lindas, leitosas, brancas, rosadas, azuladas... no meio faíscam uns tantos diamantes do mais fino lavror... é bonito aquilo, não faz mal nenhum deixar lá guardado, e lá naquele velho armário escuro elas não fazem mal a ninguém, e são como que um pequeno tesouro que alguém pode ter, mesmo que não se afeiçoe a ele, mesmo que nada transmita além de fria indiferença. É um tesouro bonito, no entanto, que no mínimo serve para se dar para algumas crianças brincarem. Crianças costumam valorizar coisas bonitas – se tiverem acesso àquela taça, talvez possam brincar de joguinhos com aquelas pérolas, talvez gostem de fazer faiscar os diamantes em jóias inventadas com linha de seda surrupiadas das caixas de bordados das suas mães...
Enfim, não há por quê jogar fora coisas assim bonitas, energias assim acumuladas em forma de pérolas coloridas e diamantes faiscantes, gratuitamente guardadas no cristal daquela taça garimpada na alvura da neve.
Há gente que não se importa com nada, no entanto. Há gente que pega coisas assim bonitas e, com indiferença, derrama pelo ralo da pia cada uma daquelas contas que são a cristalização do que havia de mais bonito dentro de uma pessoa. A rara taça trazida das neves do Ilimani vai parar num saco azul de lixo, junto com coisas como cascas de frutas, pó de café e trapos de limpar o chão. Quando o caminhão do lixo chega, a taça única é triturada junto ao grande bolo das escórias da sociedade, e seus estilhaços que um dia rebrilharam na neve mais pura agora irão jazer na podridão do chorume.
Então dói, dói demasiado. É como se cada estilhaço daqueles estivesse também navegando por nossas veias gélidas e rasgando-as continuamente, e nos sentimos todo o tempo com o gosto de sangue vertendo na boca.
Há gente para quem quase nada importa...
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
Quando somos vítimas do desprezo, é quase quando somos vítimas da injustiça: dói, sangra, mas tem um lado bom: gerar um texto maravilhoso como este. Parabéns, Urda! Vou divulgá-lo.
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