O que dizem os inventários
* Por
Alcântara Machado
Serviço de marca à
história de São Paulo prestou o Arquivo do Estado, com a publicação dos
inventários processados de 1578 a 1700 pelo primeiro cartório de órfãos da
Capital.
Não vai exagero na afirmação.
Reduzir o estudo do
passado à biografia dos homens ilustres e à narrativa dos feitos retumbantes
seria absurdo tão desmedido como circunscrever a geografia ao estudo das
montanhas. Conflitos externos, querelas de facções, atos de governo estão longe
de constituir a verdadeira trama da vida nacional. Não passam de incidentes; e,
o que é mais, são o produto de um sem número de fatores ocultos que os
condicionam e explicam.
O conhecimento do que
o homem tem realizado no combate diuturno que desde as cavernas vem pelejando
para melhorar-se e melhorar o meio em que vive, tal o objetivo essencial da
história. Como poderemos atingi-lo se concentrarmos toda a atenção em meia
dúzia de figuras, esquecendo o esforço permanente dos humildes, a silenciosa colaboração
dos anônimos, as ideias e os sentimentos das multidões?
Não é frívola a
curiosidade que nos leva a inquirir onde moravam os nossos maiores, a maneira
por que se alimentavam e vestiam, o de que tiravam os meios de subsistência, a
concepção que tinham do destino humano. Tudo isso facilita o entendimento do
que fizeram ou deixaram de fazer. Só depois de frequentá-los na intimidade e
situá-los no cenário em que se moveram, estaremos habilitados a
compreender-lhes as atitudes.
Vazada nestes moldes,
a história perderá talvez um pouco de seu aparato. Mas ganhará de certo em
clareza e verdade.
Para essa obra de
verdade e clareza tem sido eminente a contribuição do Sr. Washington Luís.
Depois de ter divulgado, quando prefeito do município, as atas e papéis da
edilidade paulistana, pondo ao alcance de todos nós os materiais para a
reconstrução da vida administrativa da cidade colonial, materiais aproveitados
imediatamente em trabalhos judiciosos pelo Sr. Afonso de Taunay, promoveu
depois, na presidência do Estado, a reprodução dos inventários antigos,
salvando-os assim do esquecimento injusto e da destruição inevitável a que
estavam condenados.
Só os linhagistas,
gente de paciência e tenacidade insignes, se atreviam a exumá-los do limbo dos
cartórios, afrontando a poeira e a fauna dos arquivos. Parecia mesmo que para
outra cousa não serviam os autos centenários, senão para a formação das árvores
genealógicas do nosso patriciado.
Redondo engano. A
documentação reunida nos vinte e sete volumes editados encerra subsídios
inestimáveis para a determinação da época, do roteiro e da composição de muitas
“entradas”; e por isso acudiram logo a forrageá-la, com perspicácia e
diligência, vários estudiosos. Constitui também generoso manancial de notícias
relativas à organização da família, vida íntima, economia e cultura dos
povoadores e seus descendentes imediatos; e é o que pretendemos demonstrar.
Tudo isso, porque os
inventários coloniais em nada se assemelham aos da atualidade.
Estes serão de
préstimo diminuto para os investigadores futuros. Faz-se pela rama a descrição
dos bens. Há muita cousa que não figura no monte, porque a inclusão repugna à
sensibilidade contemporânea. São poucos os testamentos. Neles não se descobre
uma nesga sequer do coração do testador. Limitam-se à distribuição dos haveres.
Têm a aridez e a frieza de um balanço. O estilo obedece ao figurino horrível
dos formulários.
Como são diferentes os
inventários antigos!
Em quase todos se
encontram disposições de última vontade. Nas letras com que se despedem do
mundo os testadores não se preocupam apenas com o destino dos bens temporais.
Descarregam a consciência, dizem-no com verdade; e sinceramente, lealmente,
ingenuamente, desnudam a alma.
Não é só. Debaixo de
juramento aos Santos Evangelhos, posta a mão direita sobre um livro deles, e,
na falta, sobre um missal ou sobre a cruz da vara, insígnia da judicatura, o
cabeça de casal se compromete a declarar tudo quanto ficou por morte e
falecimento do defunto: “bens e fazenda... assim móvel como de raiz, dinheiro,
ouro, prata, peças escravas, encomendas e seus procedidos, açúcares e outros
quaisquer bens que por qualquer via ou maneira a este inventário pertençam,
dívidas que ao defunto se devam ou pelo conseguinte ele a outrem for devedor,
conhecimentos, papéis, sentenças ou qualquer cousa que haja de fazer monte”.
Certos juízes se não contentam com essa enumeração fastidiosa. Enxertam-lhe os
cobres, as carregações, as encomendas que tivesse mandado para fora de que
esperasse retorno, as pérolas, os aljofres e pedras preciosas.
Nos inventários do
sertão, no arrolamento do que deixam os bandeirantes mortos em campanha, a
fórmula sofre as modificações impostas pelas circunstâncias. O que o
capitão-mor Antônio Raposo Tavares exige de um camarada de Pascoal Neto,
falecido da visita presente em Jesus Maria de Ibiricaraíba, sertão dos Araxás,
é a declaração de “toda e qualquer fazenda e armas que ficou do dito defunto,
fato e ferramenta e pólvora e chumbo e toda a mais fazenda e peças que lhe
ficassem”.
Ninguém se atreve a
romper o juramento. Mas quando não bastasse, para impedir as sonegações, o
temor de penas espirituais e temporais de perjúrio, aí estaria, para intimar o
inventariante ao cumprimento exato do dever, a cobiça vigilante dos herdeiros.
Que o diga Pedro Nunes, convidado a carregar ou dar à partilha a cama em que
dorme e o único fato de seu vestir. Defende-se ele em termos saborosos: “a
cama... vossa mercê ma deixou para dormir, que não é bem que durma no chão... e
no que toca ao fato...vossa mercê veja se é razão e justiça que fique em nu”.
Em longo despacho repulsa o juiz a desumana investida, isentando o viúvo de
trazer a monte o colchão de lã e o vestido roxo, composto de capa, calções e
roupeta, pois os trabalhou e suou.
Diante disso é natural
que nada escape ao arrolamento, por mínimo que seja o valor. De Lourenço
Fernandes Sanches vemos avaliado em oitenta réis um castiçal velho de arame
velho quebrado; de Paula Fernandes um espelho desmanchado ou desgrudado; de
Francisco Ribeiro, por dois vinténs, um espelho velho. Mesmo que se trate de
bens extraviados, não se furta a mencioná-los o inventariante, arrolando aqui
um touro que fugiu das vacas, e ali um novilho que anda fora.
São por vezes
ninharias tão microscópicas que os louvadores se recusam a apreçá-las. Nos
autos de Catarina de Pontes, não se avaliaram uns chapins de Valença já velhos,
cortados de traça, por estarem muito desbaratados. O fato se repete, no
inventário de Pero Leme, a propósito de um caldeirão e dois ralos.
Só mais tarde, nas
vizinhanças do século XVIII, quando é outra a situação econômica, desdenham os
herdeiros as pouquidades ou miudezas de pouca entidade e permitem os juízes
fique de fora a limpeza e uso da casa, o limitado uso da viúva e órfãos. Mas,
ainda assim,de quando em quando se dá valor englobado aos badulaques ou
muidezas da casa.
Tudo quanto o cabeça
de casal nomeia com escrúpulo vai descrito com fidelidade pelos avaliadores.
É de uma rês que se
trata? Os louvados não se limitam a dizer que a vaca é vermelha, fusca,
barroca, sabaúna, alvasã (ou albaiã), ou que o cavalo é ruão, alazão ou
castanho. Identificam a alimária com o maior cuidado: um cavalo morzelo,
caminhador; um cavalo sendeiro; uma vaca preta, com a barriga branca por baixo,
com um filho macho preto; um boi vermelho de barriga branca e a ponta do rabo
branca; uma vaca de papo inchado pintada com uma filha pintada.
É um fato que está em
causa? Mencionam os avaliadores o feitio, a variedade e a cor do tecido, a
espécie e o matiz do pano, os enfeites que o alindam, o estado de conservação.
Sirvam de amostra aquele vestido de picotilho de mulher, saia e saio, com suas
guarnições,com seu debrum de veludo roxo, forrado de bocaxim, e o saio seus
frocos, e o forro de tafetá pardo, com que Madalena Holsquor, esposa de Manuel
Vandala, deslumbrava as paulistanas de então; aquele gibão de bombazina listada
de amarelo, forrado de pano de algodão com botões roxos, de Cristóvão Girão;
aquele capote de barregana azul, forrado de baeta encarnada, com alguns buracos
de bicho grilo, descoberto no acervo de Estêvão Garcia.
Assim completos e
minudenciosos, os inventários constituem depoimentos incomparáveis do teor da
vida e da feição das almas na sociedade colonial.
À luz que se irradia
dessas laudas amarelecidas pelos anos e rendadas pelas traças, vemo-las
surgirem vagarosamente do fundo indeciso do passado e fixarem-se nas encostas
vermelhas da colina fundamental, as casas primitivas de taipa de mão e de
pilão. Recompõe-se por encanto o mobiliário que as guarnece. Sobre as mesas se
dispõem as baixelas de prata suntuosa ou de estanho plebeu. Mãos invisíveis
abrem as arcas e arejam as alfaias domésticas e o fato de vestir. As paredes se
enfeitam de espelhos, armas ou painéis. Logo, porém, as cores empalidecem, as
linhas se dissolvem, a miragem se desmancha; e no horizonte alargado outro
cenário emerge pouco a pouco e ganha forma e colorido. É o sítio da roça, que
aparece, com o casarão solarengo, posto a meia encosta, protegido do vento sul;
as palhoças de agregados e escravos; os algodoais pintalgados de branco; o
verde anêmico dos canaviais, em contraste com o verde robusto e lustroso da
mata convizinha; e, arranhando o silêncio, cantiga monótona de um moinho moente
e corrente.
Pelas vielas do
povoado, ou através das lavouras, deslizam sombras. Rebanhos trágicos de negros
da terra ou da Guiné. Mamelucos madraços e atrevidos. Potentados de grande
séquito, cheios de rudeza e gravidade, que passam e de repente desaparecem,
tragados pelo sertão. Desses fantasmas, humildes ou altaneiros, não
distinguimos a fisionomia, tão largo é o espaço que nos separa. Mas, apesar da
distância, ouvimos o que dizem e sabemos o que sentem.
Viver alguns instantes
com os mortos de que vimos, entre as cousas que os cercavam, é a volúpia a que nos
convidam essas folhas rebarbativas, desmanchadas em poeira ou mosqueadas de
bolor.
Dos vinte e sete
volumes publicados, onde se trasladam cerca de quatrocentos e cinquenta
processos, nada transparece em abono daquela página arroubada, em que Oliveira Viana
empresta à sociedade paulista dos dois séculos primeiros o luzimento e o
donaire de um salão de Versalhes engastado na bruteza da floresta virgem:
homens muito grossos de haveres e muito finos de maneiras, opulentos e cultos,
vivendo à lei da nobreza numa atmosfera de elegância e fausto.
Será assim a
aristocracia nordestina dos senhores de engenho, para quem tomar à letra as
palavras inchadas de ênfase, e por isso mesmo passíveis de quarentena, com que
Frei Manuel Calado retraça o ambiente de Pernambuco. Em S. Paulo só a fantasia
delirante de um deus seria capaz desse disparate esplêndido.
Data de pouco tempo a
escalada do planalto pelos litorâneos. Bem próximo é o dia em que a rebelião
das tribos confederadas esteve a pique de assassinar a povoação erguida pelos
jesuítas à beira do sertão bravio. Ainda em 1590 a iminência de novo ataque de
aborígenes sobressalta e compele os moradores a providências de defesa. Em
ambiente carregado de tantos sustos e incertezas a prosperidade é impossível.
Afinal, com o recuo, a
submissão e o extermínio do gentio vizinho, mais folgada se torna a condição
dos paulistanos e começa o aproveitamento regular do chão.
Deste, somente deste,
podem os colonos tirar sustento e cabedais. É nulo ou quase nulo o capital com
que iniciam a vida. Entre eles não há representantes das grandes casas
peninsulares, nem da burguesia dinheirosa. Certo que alguns se aparentam com a
pequena nobreza do reino. Mas, se emigram para província tão áspera e distante,
é exatamente porque a sorte lhes foi madrasta na terra natal. Outros, a imensa
maioria, são homens do campo, mercadores de recursos limitados, artífices
aventureiros de toda a casta, seduzidos pelas promessas dos donatários ou pelas
possibilidades com que lhe acena o continente novo.
Ora, a fortuna que vem
da agricultura e da pecuária é lenta e difícil. Aos povoadores de Piratininga o
clima recusa o açúcar naquela fartura que enriquece os cultivadores do
nordeste. Entre as lavouras e o mar se levanta, dificultando transporte, a serra
tumultuosa. E, embora entrevisto desde 1597 em Jaguamimbaba, Jaraguá,
Biraçoiaba, Vuturana, só nos últimos anos do século XVII e na alvorada do
século seguinte, o metal fabuloso se deixará surpreender em Cataguases por
Manuel de Borba Gato, Carlos Pedroso da Silveira, Bartolomeu Bueno de Siqueira,
Antônio Rodrigues de Arzão; em Cuiabá por Pascoal Moreira Cabral Leme, Fernando
Dias Falcão e irmãos Leme e Sutil e Maciel; em Goiás por Bartolomeu Bueno, pai
e filho.
Aí estão outros tantos
indícios de que não tem fundamento o que por aí se afirma das fortunas
coloniais. A prova direta e cabal, encontramo-la nos inventários trazidos a
público, testemunhos fidedignos da modéstia dos espólios.
Certo que não devemos
tomar à risca as avaliações.
Tenhamos em conta,
primeiramente, a diferença de poder aquisitivo da moeda, naquele tempo e em
nossos dias. Diferença enorme. Quem deseje ter ideia aproximada da importância
dos acervos deverá centuplicar as quantias declaradas.
Acresce que nem sempre
se computam na estimação do monte duas verbas consideráveis.
Assim, as terras e
chãos. Os inventariantes não deixam de carregá-las. Mas em regra só as
benfeitorias são avaliadas. Como exemplo, o inventário de Antônia de Chaves: aí
se mencionam uma carta de datas de terras, uma légua em quadra, em Guarumimi
caminho velho do sertão; outra carta de terras, meia légua, na barra de
Juquiri; mais duzentas e cinquenta braças que possui por título de compra, onde
tem o seu sítio e fazenda; ainda dois pedaços de chãos, em Parnaíba, dos quais
está de posse por autoridade da justiça, dados pelos oficiais da Câmara; e
finalmente cento e cinquenta braças por título de herança de seu pai. Nada
disso é objeto de alvidramento: nem as terras havidas por herança, nem as
adquiridas por compra, nem as concedidas pela municipalidade.
Será porque, no
sistema das cartas régias que instituíram no Brasil as capitanias hereditárias,
a propriedade fundiária tem caráter acentuadamente feudal? Da essência do
feudalismo, sabe-o toda gente, é a coexistência de dois direitos perpétuos e
paralelos sobre a terra: o do suserano, domínio eminente, e o do feudatário,
domínio útil. Pode o feudatário explorar, alienar, transmitir aos herdeiros a
terra enfeudada. Mas é o suserano que, em troca de certas obrigações pessoais,
lhe concede a disponibilidade e o usufruto da terra. Assim nenhum deles enfeixa
em suas mãos a totalidade dos poderes que entram no conceito atual da
propriedade.
Daí, o silêncio das
avaliações? Daí, o fato de serem alvidradas somente as construções, plantações
e mais benfeitorias, com exclusão do solo? Tudo estaria explicado, se não
encontrássemos com relativa frequência o alvidramento de terras e chãos. Ainda
mais: ao lado de terras alvidradas, figuram outras que não o são. Dar-se-á que,
a par dos feudos, tenha havido terras livres ou alodiais?
Afinal bem pode ser
que não passem de bolhas de sabão todas essas conjeturas complicadas. A chave
do enigma estará talvez nestas palavras do inventário de Francisco V. Morais:
“Lança-se mais dezoito braças de chãos nos campos de S. Francisco o Velho, que
não se avalia por estar fora de mão”. E aquilo que há pouco aventuramos
consequência de uma organização feudal da propriedade é apenas consequência de
serem os caminhos ásperos e de muitas águas e do comodismo dos avaliadores.
Avaliadas ou não, as
terras se não partilham: místicas, em ser, em comum, ficam em conformidade para
os herdeiros, ou correndo por conta da viúva e dos mais herdeiros conteúdos na
herança, que lavrarão nelas igualmente e a todo tempo se comporão.
Outra parcela
considerável que, no período de 1601 a 1675, não aparece no ativo, é
representada pelas peças de serviço, gente forra, gente do Brasil, gente de
obrigação, peças forras serviçais, serviçais obrigatórios, almas de administração,
administrados. Tais os nomes por que são designados os índios reduzidos
fraudulentamente ao cativeiro, que constituem a imensa maioria da população
servil. Em reverência às determinações de Sua Majestade, não permitem os
juízes, antes do último quartel do século XVII, sejam as peças de serviço
avaliadas à maneira dos outros bens do espólio, o que, aliás, não impede que as
descreva o cabeça do casal e as partilhe entre os herdeiros a justiça.
Ora, nenhum colono
existe, por muito miserável, que não explore uma criatura do gentio. Mostram-no
os autos referentes a Susana Rodrigues. Disse o viúvo que não possuía bens
móveis, nem de raiz... e não tinha de seu mais que um negro do gentio do
Brasil, já velho; e, em consequência, mandou o juiz que fosse o dito negro
servindo aos ditos órfãos e a seu pai, visto não ser cousa que se possa
avaliar. De mais não precisa o reinol para honradamente sustentar a família, na
frase conceituosa de Gandavo. Com dois ou três negros tem a vida assegurada: um
lhe pesca, outro lhe caça, outro lhe granjeia as roças.
Diante disso, é fácil
de imaginar como falseia a estimativa judicial do acervo o fato de não ser
computada a gente forra, proclamada com justiça por um contemporâneo a
propriedade mais proveitosa que há nesta terra.
Feitos os devidos
descontos, permitem os inventários ideia mais ou menos justa do que têm os
paulistas do tempo.
Dentre todos os
espólios o que mais avulta é o de Mateus Rodrigues da Silva, morto em 1710, e
possuidor de bens alvidrados em 12:72$157. Deixemo-lo de parte. Só nos
interessam os dois séculos anteriores, porque a eles se referem de preferência
os documentos em estudo. Deixemos também de lado o de Fernando Raposo Tavares,
homem branco, natural de S. Paulo, Estados do Brasil, mas falecido em
Ribeira-Grande, ilha de Santiago de Cabo Verde, onde era estante, residente e
casado. Aí tinha ele quase todos os haveres no valor de 2:354$800. Em São Paulo
se descreveram somente seis peças forras e algumas dívidas passivas.
No século XVI vem à
frente Maria Gonçalves, mulher de Clemente Álvares. Anda toda a fazenda,
inclusive nove escravos avaliados em 374$350.
A partir de 1601 vai
melhorando paulatinamente a situação econômica dos paulistas. Na primeira
metade da centúria três acervos se registram superiores a um conto de réis. São
em 1629 o de Gaspar Barreto, que, afora a gente forra, constante de oito peças
e três pecinhas de tenra idade, atinge a quantia de 1:298$000; em 1637 o de
Catarina de Siqueira, mulher de João Barroso, que importa em 1:194$880 sem
contar trinta e cinco serviços; e em 1641 o de Manuel João Branco, estimado em
1:190$568.
Já na segunda metade o
número dos espólios acima de um conto sobe a dezessete. Mas é nas vizinhanças
de século XVIII que a riqueza se manifesta. Ao falecer por volta de 1693,
Catarina da Silva tem haveres computados em 6:636$700, em que entra a
alvidração de nove peças da terra e algumas crias de peito. Segue-a de perto
Antônio de Azevedo Sá, estabelecido com loja de fazendas e armarinho na Rua
Direita da Misericórdia para S. Antônio, morto da doença que Deus lhe deu no
ano de 1681: sobe a 4:131$490 o monte mor, incluso o valor dos serviços de
vários mulatos e negros da terra. Outro, que figura em plano pouco inferior, é
Pedro Vaz de Barros, cujos bens alcançam a alvidração de 3:319$985.
Daí se conclui quanto
se distanciam da realidade os que se fiam cegamente na palavra dos linhagistas.
Dos quatrocentos inventários seiscentistas, há apenas vinte que delatam alguma
abastança. Cinco por cento.
A imensa maioria das
avaliações denuncia a carência de cabedais apreciáveis. Sabem quanto recebem a
viúva e os filhos do capitão Belchior Carneiro, sertanista ilustre, companheiro
de Antônio Raposo, êmulo de Borba Gato e Fernão Dias no descobrimento de Minas
Gerais? Duzentos mil e oitocentos e cinquenta réis.
Mesmo entre os
fidalgos a abundância não é muita. O inventário de D. Maria Bueno, casada com
dom João Mateus Rendon de Quebedo, revela um passivo bem superior ao ativo do
casal. Para dourar de novo os seus brasões, dom João desposa em segundas
núpcias d. Catarina de Góis, viúva abastada do capitão Valentim de Barros.
(Vida e morte do
bandeirante, 1929).
*
Advogado, político e historiador, membro da Academia Brasileira de Letras.
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