O petróleo e a democracia
* Por
Assis Chateaubriand
Foi a vitória ontem
conquistada pela jovem democracia alemã um triunfo de portland. Não exagero
afirmando que o sr. Adenauer, do qual Churchill já disse que era o maior,
dentro do Reich, depois de Bismarck, alcançou um trunfo tendo por base o
aumento da maior fraternidade com o mundo livre.
Trará essa vitória da
guerra civil em que o Antigo Continente vive engolfado, desde 1914? Se a
Alemanha não mergulhou no ódio intratável, no desentendimento fatal, com as
democracias ocidentais, isto se deve tanto ao liberal, de nobre e rija estirpe,
que apareceu para conduzir o IV Reich, como à diplomacia de homens como o Sr.
Truman, Attlee, Churchill e Schuman.
A decisão que nas
urnas livres deu o povo alemão é uma sentença favorável à paz. Encontrou a
Alemanha, na aliança com os Estados Unidos e a Inglaterra, como no apoio que
essas duas democracias lhe trouxeram, após derrota do hitlerismo, uma garantia
para o seu desenvolvimento pacífico, no quadro das instituições republicanas.
Se as democracias
ocidentais renunciarem agora ao que não houve coragem nem inteligência para
fazer em 1919, isto é, ao pensamento de que a Alemanha, conduzida pelos
liberais, é sempre a Alemanha prussiana, dos junkers, podemos ter a esperança
da constituição de um rijo bloco de paz na bacia atlântica. A atitude de uma
larga maioria do povo germânico assim o leva a crer. Nem pode haver mensagem
mais auspiciosa que a maioria esmagadora de votos que ganhou a política de
aproximação com o Ocidente do Chanceler Adenauer.
A Alemanha se
incorpora, hoje muito mais do que ontem, ao que se convencionou chamar
civilização ocidental. Ela faz de novo essa escolha, pela segunda vez após a
derrota, constituindo, para larga maioria, um governo de estrita legalidade.
Renunciou ao nacionalismo e ao societismo, para ir gravitar no sistema europeu,
de soberania limitada e de transferência de vários direitos dessa soberania a
uma superestrutura interna.
Pelos resultados das
eleições de domingo, a Alemanha é engajada em uma atitude que ela desconhece
sua história contemporânea: uma colaboração ativa, militante, para defesa das
principais democracias do mundo. Em 1919, 20, 21 e 22, desgraçadamente, a
Europa que batera o militarismo germânico no Marne e na linha siegfrield,
insistia em desconhecer o acontecimento de Weimar. Era aquela república uma
sentinela da liberdade ocidental, no Reno, contra os junkers e o militarismo, e
no Oder, contra os soviéticos. suas oportunidades de sobreviver dependiam menos
dela que da condescendência dos aliados em face dos primeiros passos de uma
criança que entrava a engatinhar. O ato do nascimento da democracia alemã foi
uma derrota, no campo de batalha. Viu-se o orgulho nacional de um grande povo
severamente abalado pela débâcle militar em 1918. Urgia dispensar-lhe esse
misto de cuidado e de paciência que se dá a uma criança e a um enfermo. As
instituições livres constituíam ali uma nova experiência. E uma experiência
feita em seguida a uma derrocada, produzida por uma guerra de nações. Termos
cordiais e amistosos ainda seriam poucos para tratar o segundo Reich
democrático, filho da derrota e do sofrimento.
Aconteceu, porém, que
as instituições republicanas alemãs se encontraram entre dois fogos: no plano
interno, a atitude nos nacionalistas da extrema direita, que tudo envidaram
para demoli-las. No plano externo, a desconfiança dos antigos adversários, que
volta e meia apareciam com métodos agressivos, comprometedores da estabilidade
e segurança da República. Estive eu em Berlim quase todo o ano de 1920: a
probabilidade de os dois grandes povos se compreenderem, se apreciarem,
marchando juntos, com essa república instalada no coração da Alemanha,
cruelmente atacada pelos militares e rearmamentistas dos seus círculos internos,
inspirava confiança aos adversários da véspera. Franqueza, coragem, espírito de
sacrifício, não eram suficientes que os trouxessem os republicanos todos os
dias à luz da ribalta. O assassinato de mais trezentos e cinqüenta republicanos
em dois anos, em tocaias e emboscadas preparadas pelos nacionalistas ainda era
pouco. O novo estado de alma de largar seções do povo alemão, sua firmeza,
posta na luta civil contra o nacionalismo ainda não eram capital para tratar
com os aliados. O peso de reparações insuportáveis não foi aliviado, no momento
em que o seu espectro, desaparecido, do cenário político e econômico do Reich,
seria a concessão à República de um voto de confiança nos seus bons propósitos.
Locarno já veio tarde.
Muita substância inflamável fora derramada pelo caminho. Da ocupação do Reno
ficara não uma cicatriz, mas uma chaga aberta.
O vizinho que
pretender criar a paz com o que lhe é contíguo terá de praticar atos de boa
vizinhança, que são os atos de cordialidade e de entendimento recíprocos. Fora
preciso que, desde a primeira hora, a Europa se integrasse com fé na sorte das
instituições de Weimar. Para prestigiá-las, para fortificá-las, para
reconhecê-las como o fruto de uma revisão interna, vinda da alma mesma da
grande parte respeitável da nação germânica, então em luta aberta contra os
instintos e interesses da casta militar e política do Estado prusso-germânico,
em vital apoio externo à política reformuladora dos sociais-democratas, do
centro e dos partidos liberais. A integridade republicana da Alemanha deveria
ser um sagrado tabu para a França e a Inglaterra, porque somente uma república
forte, poderosa, poderia ser o árbitro dos destinos da Alemanha subjugada pelo
ódio pietista da oligarquia, derrotada na guerra.
Não se pode contestar
que a Europa acabou concedendo à Alemanha republicana, quase tudo aquilo a que
ela aspirava. Tornou-se Aristides Briand o campeão de uma política de
apaziguamento do Reich. Os termos dessa política foram os mais altos. Somente
quando ela chegou, antes de lograr abrir caminho entre os alemães, as vagas da
depressão de 1929 haviam de tal forma excitado os líderes nacionalistas que a
causa da paz franco-germânica encontrava-se já comprometida.
Hitler ganhou, em
1930, o terreno que havia perdido, nos braços da miséria e do infortúnio que
desabara sobre o Ocidente.
O ensinamento da outra
guerra não se perdeu nesta. Não há nenhuma dúvida de que em 47 a Alemanha
republicana encontrou aberto para transitar no mundo o “sinal verde”. Este há
de ser para ela o duplo caminho: o da liberdade e o da prosperidade. De nada
valeu a guerra fria. Pouco adiantara as intrigas bolchevistas e
ultranacionalistas para que ela não adotasse o caminho da reconciliação e do
entendimento, da eliminação das desconfianças recíprocas e dos antagonismos
históricos.
A Alemanha não tem um
terreno fértil para o nascimento das figuras potentes da flexibilidade e do
universalismo do sr. Adenauer. A presença no poder de um fuehrer como o
Chanceler Adenauer envolve um desafio àquela tese de que a raça germânica,
fecunda em condutores militares, de primeira grandeza, vê frustrados os seus
esforços toda vez que tenta valorizar um líder político.
Afirma a Alemanha,
hoje, quando não tem uma Wehrmacht, Luftwaffe nem marinha de guerra, uma
personalidade muito mais indomável e original do que quando a sua vocação
militar e os seus recursos econômicos a tornaram o Estado mais poderoso da
Europa Continental. Ela retoma a liderança do continente, para se revelar um dos
dois países industriais mais fortes do Ocidente europeu (sendo o outro a
Grã-Bretanha). Ressurge o Reich do bombardeio das suas cidades, da invasão e da
ocupação de seu território, economicamente mais poderosa que antes. Suas
manufaturas estão adiantadas como nunca. Sua agricultura, florescente como
jamais esteve.
O conflito que
terminou no mundo de 45 é um duelo de tipos de governos como em nenhum período
da sua existência a humanidade viu nada parecido. Concedem os vencedores larga
assistência aos vencidos. As concessões feitas pelos Estados Unidos e Império
Britânico aos países derrotados são desconhecidas na política mais humana de
vencedores para com vencidos.
Quem imagina -
sobretudo aqueles que conhecem os Estados Unidos na última guerra, dominados
pelo ódio furibundo, pelo rancor insopitável contra o Japão e os japoneses,
guerra que vinha sendo consolidada, no fundamento desses dois povos, através de
quarenta ou cinqüenta anos de rivalidade no Pacífico - que os americanos
oferecessem ao povo nipônico o edificante instrumento de amizade, fraternidade
e cooperação que foi o pacto que pôs fim à luta armada entre os dois países?
A História desconhece
guerras que tenham tido pactos de paz feitos com a elevação e a serenidade dos
que as democracias do Ocidente assinaram com os seus adversários entre 1945 e
46.
(Discurso proferido no
dia 9 de Setembro de 1953. In: Aquarela do Brasil, 1956).
*
Jornalista, empresário, mecenas e
político, membro da Academia Brasileira de Letras.
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