sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O petróleo e a democracia

* Por Assis Chateaubriand


Foi a vitória ontem conquistada pela jovem democracia alemã um triunfo de portland. Não exagero afirmando que o sr. Adenauer, do qual Churchill já disse que era o maior, dentro do Reich, depois de Bismarck, alcançou um trunfo tendo por base o aumento da maior fraternidade com o mundo livre.

Trará essa vitória da guerra civil em que o Antigo Continente vive engolfado, desde 1914? Se a Alemanha não mergulhou no ódio intratável, no desentendimento fatal, com as democracias ocidentais, isto se deve tanto ao liberal, de nobre e rija estirpe, que apareceu para conduzir o IV Reich, como à diplomacia de homens como o Sr. Truman, Attlee, Churchill e Schuman.

A decisão que nas urnas livres deu o povo alemão é uma sentença favorável à paz. Encontrou a Alemanha, na aliança com os Estados Unidos e a Inglaterra, como no apoio que essas duas democracias lhe trouxeram, após derrota do hitlerismo, uma garantia para o seu desenvolvimento pacífico, no quadro das instituições republicanas.

Se as democracias ocidentais renunciarem agora ao que não houve coragem nem inteligência para fazer em 1919, isto é, ao pensamento de que a Alemanha, conduzida pelos liberais, é sempre a Alemanha prussiana, dos junkers, podemos ter a esperança da constituição de um rijo bloco de paz na bacia atlântica. A atitude de uma larga maioria do povo germânico assim o leva a crer. Nem pode haver mensagem mais auspiciosa que a maioria esmagadora de votos que ganhou a política de aproximação com o Ocidente do Chanceler Adenauer.

A Alemanha se incorpora, hoje muito mais do que ontem, ao que se convencionou chamar civilização ocidental. Ela faz de novo essa escolha, pela segunda vez após a derrota, constituindo, para larga maioria, um governo de estrita legalidade. Renunciou ao nacionalismo e ao societismo, para ir gravitar no sistema europeu, de soberania limitada e de transferência de vários direitos dessa soberania a uma superestrutura interna.

Pelos resultados das eleições de domingo, a Alemanha é engajada em uma atitude que ela desconhece sua história contemporânea: uma colaboração ativa, militante, para defesa das principais democracias do mundo. Em 1919, 20, 21 e 22, desgraçadamente, a Europa que batera o militarismo germânico no Marne e na linha siegfrield, insistia em desconhecer o acontecimento de Weimar. Era aquela república uma sentinela da liberdade ocidental, no Reno, contra os junkers e o militarismo, e no Oder, contra os soviéticos. suas oportunidades de sobreviver dependiam menos dela que da condescendência dos aliados em face dos primeiros passos de uma criança que entrava a engatinhar. O ato do nascimento da democracia alemã foi uma derrota, no campo de batalha. Viu-se o orgulho nacional de um grande povo severamente abalado pela débâcle militar em 1918. Urgia dispensar-lhe esse misto de cuidado e de paciência que se dá a uma criança e a um enfermo. As instituições livres constituíam ali uma nova experiência. E uma experiência feita em seguida a uma derrocada, produzida por uma guerra de nações. Termos cordiais e amistosos ainda seriam poucos para tratar o segundo Reich democrático, filho da derrota e do sofrimento.

Aconteceu, porém, que as instituições republicanas alemãs se encontraram entre dois fogos: no plano interno, a atitude nos nacionalistas da extrema direita, que tudo envidaram para demoli-las. No plano externo, a desconfiança dos antigos adversários, que volta e meia apareciam com métodos agressivos, comprometedores da estabilidade e segurança da República. Estive eu em Berlim quase todo o ano de 1920: a probabilidade de os dois grandes povos se compreenderem, se apreciarem, marchando juntos, com essa república instalada no coração da Alemanha, cruelmente atacada pelos militares e rearmamentistas dos seus círculos internos, inspirava confiança aos adversários da véspera. Franqueza, coragem, espírito de sacrifício, não eram suficientes que os trouxessem os republicanos todos os dias à luz da ribalta. O assassinato de mais trezentos e cinqüenta republicanos em dois anos, em tocaias e emboscadas preparadas pelos nacionalistas ainda era pouco. O novo estado de alma de largar seções do povo alemão, sua firmeza, posta na luta civil contra o nacionalismo ainda não eram capital para tratar com os aliados. O peso de reparações insuportáveis não foi aliviado, no momento em que o seu espectro, desaparecido, do cenário político e econômico do Reich, seria a concessão à República de um voto de confiança nos seus bons propósitos.

Locarno já veio tarde. Muita substância inflamável fora derramada pelo caminho. Da ocupação do Reno ficara não uma cicatriz, mas uma chaga aberta.

O vizinho que pretender criar a paz com o que lhe é contíguo terá de praticar atos de boa vizinhança, que são os atos de cordialidade e de entendimento recíprocos. Fora preciso que, desde a primeira hora, a Europa se integrasse com fé na sorte das instituições de Weimar. Para prestigiá-las, para fortificá-las, para reconhecê-las como o fruto de uma revisão interna, vinda da alma mesma da grande parte respeitável da nação germânica, então em luta aberta contra os instintos e interesses da casta militar e política do Estado prusso-germânico, em vital apoio externo à política reformuladora dos sociais-democratas, do centro e dos partidos liberais. A integridade republicana da Alemanha deveria ser um sagrado tabu para a França e a Inglaterra, porque somente uma república forte, poderosa, poderia ser o árbitro dos destinos da Alemanha subjugada pelo ódio pietista da oligarquia, derrotada na guerra.

Não se pode contestar que a Europa acabou concedendo à Alemanha republicana, quase tudo aquilo a que ela aspirava. Tornou-se Aristides Briand o campeão de uma política de apaziguamento do Reich. Os termos dessa política foram os mais altos. Somente quando ela chegou, antes de lograr abrir caminho entre os alemães, as vagas da depressão de 1929 haviam de tal forma excitado os líderes nacionalistas que a causa da paz franco-germânica encontrava-se já comprometida.

Hitler ganhou, em 1930, o terreno que havia perdido, nos braços da miséria e do infortúnio que desabara sobre o Ocidente.

O ensinamento da outra guerra não se perdeu nesta. Não há nenhuma dúvida de que em 47 a Alemanha republicana encontrou aberto para transitar no mundo o “sinal verde”. Este há de ser para ela o duplo caminho: o da liberdade e o da prosperidade. De nada valeu a guerra fria. Pouco adiantara as intrigas bolchevistas e ultranacionalistas para que ela não adotasse o caminho da reconciliação e do entendimento, da eliminação das desconfianças recíprocas e dos antagonismos históricos.

A Alemanha não tem um terreno fértil para o nascimento das figuras potentes da flexibilidade e do universalismo do sr. Adenauer. A presença no poder de um fuehrer como o Chanceler Adenauer envolve um desafio àquela tese de que a raça germânica, fecunda em condutores militares, de primeira grandeza, vê frustrados os seus esforços toda vez que tenta valorizar um líder político.

Afirma a Alemanha, hoje, quando não tem uma Wehrmacht, Luftwaffe nem marinha de guerra, uma personalidade muito mais indomável e original do que quando a sua vocação militar e os seus recursos econômicos a tornaram o Estado mais poderoso da Europa Continental. Ela retoma a liderança do continente, para se revelar um dos dois países industriais mais fortes do Ocidente europeu (sendo o outro a Grã-Bretanha). Ressurge o Reich do bombardeio das suas cidades, da invasão e da ocupação de seu território, economicamente mais poderosa que antes. Suas manufaturas estão adiantadas como nunca. Sua agricultura, florescente como jamais esteve.

O conflito que terminou no mundo de 45 é um duelo de tipos de governos como em nenhum período da sua existência a humanidade viu nada parecido. Concedem os vencedores larga assistência aos vencidos. As concessões feitas pelos Estados Unidos e Império Britânico aos países derrotados são desconhecidas na política mais humana de vencedores para com vencidos.

Quem imagina - sobretudo aqueles que conhecem os Estados Unidos na última guerra, dominados pelo ódio furibundo, pelo rancor insopitável contra o Japão e os japoneses, guerra que vinha sendo consolidada, no fundamento desses dois povos, através de quarenta ou cinqüenta anos de rivalidade no Pacífico - que os americanos oferecessem ao povo nipônico o edificante instrumento de amizade, fraternidade e cooperação que foi o pacto que pôs fim à luta armada entre os dois países?

A História desconhece guerras que tenham tido pactos de paz feitos com a elevação e a serenidade dos que as democracias do Ocidente assinaram com os seus adversários entre 1945 e 46.

(Discurso proferido no dia 9 de Setembro de 1953. In: Aquarela do Brasil, 1956).


*  Jornalista, empresário, mecenas e político, membro da Academia Brasileira de Letras.

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