terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Agnes


* Por Assionara Souza


Agnes é mulher.

Ovula. Dá esporro. Sofre. Esquece. E de novo. E dá esporro. Ovula. Chora e sorri misturadamente. Considera algumas palavras dificílimas de serem pronunciadas. Na hora do gozo, escandaliza o nome de Deus repetidas vezes. Inventa meios.

Ontem, às nove horas da noite. Voltou para casa com um buraco enorme no peito. O coração é um músculo muito desenhado por crianças e adolescentes. Agnes tem exatamente trinta e três anos e sente como uma cachorra perdida. Por isso, ontem, às nove horas da noite. Os pés doíam. E a casa era longe. O caminho deserto. Voltar pra casa é sempre longe. Mulheres compram roupas e calçados. As lojas gostam de mulheres. Os homens menos. Se as mulheres sentem isso: mais roupa; mais calçados. O que quer que sirva ao corpo. Se o amor não servir. Agnes não escolhe. Pega e leva pra casa. Homens e roupas. Os pés gritam.

Segundo pesquisa, Agnes distingue-se para melhor. Distingue-se para melhor, dizia a matéria: de quase 70% das mulheres. A maioria das mulheres não consegue sentir. Na revista, ao virar da página. Lá estava. A maioria das mulheres. Ler esse texto na sala de espera do dentista faz algumas mulheres descolar um sorriso nos lábios. Aproximadamente 30% das mulheres sorriem quando lêem. Outras, 40%, não conhecem alguns sentidos. E mais 30% suspeitam de que as que sentem não sabem muito o que sentem.

Agnes tem estado mal como uma cachorra perdida. As cachorras fogem de buzinadas de carro. Pendem o corpo. Um correr indeciso. E farejam sem critério. Mal põem na boca, percebem na língua a frustração. Tarde demais. E lambuzam-se com ódio. Recolhem o corpo e prosseguem. Vadia esperança canina. Agnes é uma estatística. Antes que mandem, baba-se toda à espera.

Agnes acredita que há um número finito de variações de desgraças. Assim como as letras do alfabeto. Combinadas, os padrões são infinitos. Algumas categorias são invariáveis. O triângulo. Figura que se distingue. O triângulo causa um círculo vicioso. Em alguns casos, faz o sol nascer quadrado. Último vértice, depois do Verbo e do Espírito: a Carne. O homem atinge o centro do triângulo com sua lança pontiaguda. Humano e Divino. E golpeia em nome de Deus repetidas vezes.

Aos dezessete anos, a presença de Deus provocava em Agnes um forte regozijo. Então compreendeu as coisas da carne. Deus era o amante secreto e confidente de inquietações. Exibir, após orar, o corpo nu marcado. Quarto encerrado. Velas acesas. Nudez e fé. Confessar ao pai. Confessar sobre os pecados da mãe. Igualmente canina. Deixou que mão alheia roçasse o entrepernas. Na noite em que foi entregue à paixão. Atingir fundo a umidade. Diante do pai e de Agnes, negar tudo. Era outra. Era outra mulher que Agnes vira. Uma outra mulher. Agnes compreendia o amor em sangue e febre. Outra mulher. Por isso sangrar pela mãe. Dor e prazer. Por isso também ser uma outra. Pacto. O pai lhes suspeitava. Sendo, em ordem de vértice, segunda amante e confidente de Agnes. A coisa nem nomeada. A coisa sentida. Em nome de Deus.

Na sexta-feira, a cachorra perdida lançou seu olhar para a vida. Esperou, o osso veio suculento. Arfando uma trama de encontro em beco certo. Rabo entre as pernas. Língua estirada.  Vida da boca de outro para a boca dela. No escuro: o molhado. Sexta-feira e para sempre. Cara que olha cara e quer às escâncaras. Olho. Pele. Entrega-se a presa às pressas. Dá-se desdobradamente. Peso e movimento. Onde o corpo suportasse. Falentrasse. Singrasse. Sangrasse. O bom cheiro mal do corpo. Uivo e desejo cão. Até que a morte.

Agora um pedaço podre de desgraça. Na manhã do Terceiro Dia. Lavar-se mil vezes. Imundície do mundo nos ossos. Limpar-se mil vezes. Imundície do mundo no espírito. Voltar ao sábado. Um buraco no meio do peito. Ao domingo: vida morte ressurreição.

Chegar à casa do pai carregando na pele a memória da noite. Os médicos de branco espalhados pela casa. Os que curam as doenças do corpo. E também o padre para bem encaminhar o espírito. Vestido de negro. Ignóbil. Vontade de coçar as partes na frente de todos. Grunhindo. "Eu sei de tantas verdades, meu pai!". Chamaram-na. "A mãe tem sede, Agnes". Preparar a água. Deixar escorrer pela mão. Água benzida do que viveu o corpo na calada noite. Despejar no copo. A língua da mãe esperava. Para a mesma boca entregar seu corpo. Agora nesta agreste hora da morte.

Mais tarde demais. Voltar pra casa com um buraco no peito. O dia inteiro com a mãe. O amor nunca. E a morte na madrugada. Pés doídos do caminho. Peso do passo em falso. Para quem o seu quente humor? Segundo as estatísticas, 30% das mulheres são cadelas vadias. Corpo silencioso golpeado. Brutalidade afiada em centro perfeito. Ímpia solidão. A mãe morrendo na madrugada. Buraco no peito. Atravessar a noite. Portas e janelas abertas. Nenhuma cortina. A noite da salvação. O nome de Deus habitava sua pele e sentidos. A cova aberta onde o corpo morto. Rezem, senhores. Ela espalhou vinho por toda a casa dentro da madrugada. Ela bebeu da mesma água sagrada. Corpo dentro da terra. Enterrando-se dentro da terra. Rezem, em nome de Deus. Em nome do pai. Em nome do filho. Em nome de todas as cadelas parideiras. Rezem todos.

Eco infernal.

De volta para o ventre de Agnes. Renascer. Agnes prenhe da serpente a lhe sibilar palavras. O ser e o sim. No ventre da mãe flutuar. Líquido florir. Inteira ágil e calma. Pernas e braços. Carne e osso. Frutos flores raiz. Ao último ancestral. Ciclo eterno. Depois. Longe dali.

* Assionara Souza nasceu em Caicó (RN), em 1969. Mora em Curitiba. Leciona Literatura Brasileira e Produção Textual. É mestranda em Estudos Literários pela UFPR e estuda trânsitos entre literatura e artes plásticas na obra de Osman Lins. Em 2005, publicou o livro de contos Cecília Não é um Cachimbo, pela editora 7Letras.

    

Nenhum comentário:

Postar um comentário