Maria sem tempo
* Por
Domício da Gama
Era magra, pequena,
escura. Tinha a extrema humildade dos que vivem longos anos sob o céu
destruidor, sem pensar ao menos em resistir à sorte, com a passividade inerte
da folha que o vento rola pelos caminhos. Era assim mirrada e seca e sombria,
como se tivesse perdido a seiva ao ardor dos estios, como se guardasse das
noites sem estrelas o negrume cada vez mais denso.
Era louca, porque só
tinha uma idéia, e a criatura humana pode não ter idéias, mas não pode ter uma
só. A sua era o angustioso desassossego das maternidades malogradas. Perdera um
filho e o procurava. Andava pelos caminhos para buscá-lo e só levantava a voz
para chamá-lo, ansiosamente, carinhosamente: “Luciano! Meu filho!...” E
escutava longo tempo por trás nas cercas, no aceiro dos matos, à entrada dos
terreiros das fazendas, nos desertos e nos povoados, onde quer que a levasse a
sua dolorosa esperança. Aquela figura miserável, toda feita num gesto
indagador, com a mão abrigando os olhos, à espreita, ou levantando o xale que
lhe encobria a cabeça de cabelos hirtos, para ouvir melhor a resposta ideal,
aquela encarnação de um desejo sempre iludido enturvava o esplendor do mais
radioso meio-dia.
Gente compassiva,
donas de casa a quem se apertava o coração ouvindo ecoar pelas estradas o seu
reclamo desolador, quiseram retê-la, dar-lhe amparo e agasalho: “Aonde vai,
Sinhá Maria? Fique com a gente, mulher! Por estes sóis que matam, assim ao
desabrigo do tempo, o que faz uma criatura de Deus? Descanse uns dias e vá
então...” Mas a louca se escusava resolutamente: “Não tenho tempo, minha
senhora. Vou ao encontro do meu Luciano, que me disse que havia de voltar. Como
não tenho mais casa, preciso de estar no caminho. Não vá ele passar enquanto
aqui estou...” E se precipitava para fora exalando o seu grito: “Luciano! Meu
filho Luciano!...”
E Maria sem Tempo não
era uma lição, nem um castigo, nem um exemplo. Se alguma coisa ela provava, era
que há sofrimentos que nada provam e que nada justifica, que são, pela razão
obscura daquilo que tem de ser. A sua miséria nem mesmo era trágica, porque não
exclamava, não lutava, não indagava. O céu rigoroso era-lhe como um senhor
cruel, que a pobre escrava não entendia e sob cujos golpes se encolhia apenas.
Vivera para ser mãe: sofria disso, como disso outras jubilam.
Quem a encontrava
pelos desertos, longe de todo o amparo, às horas tristes do dia, pensava logo
com piedade na solidão da sua alma. Mas se iam falar-lhe, ela se não mostrava
agradecida à sociedade que lhe queriam dar: recaía logo no seu silêncio
absorto, tão ocupado pelo seu sentimento.
O meu Luciano! dizer
estas palavras era para ela o mesmo que sentir-se viva. Dizia-as alto,
gritando, clamando, enchendo as grotas e os recantos das florestas com o seu
alarido de araponga louca; dizia-as baixinho, suspirando, fundindo o coração
num ajoelhamento de prece, na prostração suprema do supremo amor. E às vezes,
caminhando horas ao longo da praia, com os cabelos sacudidos pelo vento do
largo, vacilando sobre a areia branca e infirme que entontece, ela cantava ao
mar em fúria a canção monotonamente sublime da sua pena sem fim.
Eles eram dois
humildes e mansos e os soberbos e violentos lá de longe fizeram uma guerra para
mal deles, uma guerra de tantos anos durando já que os cabelos da mulata
tiveram tempo de embranquecer. E o seu Luciano sempre por lá, longe da sua
velha, que só tinha a ele no mundo, e que não pudera opor-se a que partisse,
porque com o poder de homens, que o vieram buscar naquela noite, tinha-se
juntado todo o poder celeste, estrondando numa trovoada de arrasar o mundo.
Quando chegaram os homens malditos, ela estava com o filho rezando o
Magnificat, à claridade da vela benta em frente ao registro da advogada contra
o raio. A voz dele tinha uma toada grave e cheia de fervor, que lhe quebrava a
ela a friúra do medo no coração. Ai! não era dos raios e coriscos do céu que a
pobre mulata devia recear! Num silêncio entre dois refegões de vento, bateram
de repente à porta. Luciano foi abrir e logo um homem entrando, antes de dizer
uma palavra, lhe foi deitando a mão. O rapaz deu um pulo, esquivando-se, mas o
outro gritou e a casa se encheu de gente armada, soldados, que subjugaram o seu
filho e o amarraram. Ela conhecia um dos homens, o que tinha entrado primeiro: de
joelhos, como tinha ficado diante da santa, arrastou-se aos pés dele. “Seu
Capitão, não me tire o meu filho, que não cometeu crime. Tenha piedade de uma
pobre mãe...” O Capitão, meio embaraçado, sem convicção, resmungou umas frases,
falou em defesa da pátria, em honra nacional ofendida, dever de todo brasileiro
e não sei que mais. Mas a mulher não lhe deu ouvidos; viu que lhe tiravam o
filho para a matança nos campos do Sul e desatinou de todo, a pedir, a
suplicar, de rastos pelo chão, beijando os pés e abraçando pelos joelhos os
seus carrascos, sem poder mais chegar ao filho das suas entranhas. O Capitão
começou a se incomodar com a cena e deu ordem de partir, apesar da tempestade
no seu auge. Então Maria se endireitou, arquejante sobre os joelhos, e viu, enquadrado
pela porta aberta sobre a noite negra cortada de relâmpagos, o seu belo rapaz,
que, sem chapéu, de roupas rotas mostrando o peito nu, levantava para ela as
mãos algemadas, num gesto de adeus, e lhe dizia com voz trêmula e sentida: “Não
se desconsole, Mãe, que ainda hei de voltar...” Nesse instante um fuzil cegou-a
e o estampido imediato de um trovão derrubou-a por terra. Quando tornou a si
estava sozinha no meio da noite escura. Parece que esta lhe entrou deveras pela
mente, e lhe apagou as últimas claridades que lá luziam. Ela se desinteressou
de tudo o que ocupa as vidas mais humildes, desprendeu-se por uma inatenção
absoluta dos fatos que podem servir de marca aos dias, perdeu a noção do tempo,
perdeu as suas afeições menores, enclausurou-se, absorveu-se no seu único
sentimento transformado em culto, endoideceu.
Como sempre fora uma pobre inteligência, a sua
loucura não se caracterizou senão por uma teimosia especial, passiva, mas
inflexível, uma recusa absoluta a ceder aos argumentos dos que queriam
convencê-la de que o filho não andava por aquelas bandas e que não era gritando
pelos caminhos que ela havia de o recuperar. Ele lhe dissera que havia de
voltar... Essa promessa lhe não deixava lugar no espírito nem para a idéia da
morte. Quando lhe disseram que Luciano morrera num combate, que um voluntário,
que voltava ferido, o tinha visto cair ao seu lado no campo e ao seu lado
morrer no hospital de sangue, ela sacudiu a cabeça, incrédula. A força da ideia
fixa venceu-lhe a timidez natural e lhe tirou todos os escrúpulos e receios que
a pudessem deter no cumprimento do seu fadário. Na abstração poética é assim um
caráter heróico.
Os sinais físicos de
loucura estavam nos seus olhos perdidos como os de um cão de caça, desatentos
ou muito atentos, mas sem simpatia, e nos cabelos hirtos, eriçados, como num
perene arrepio de pavor. O resto, mãos e pés de nômade selvagem, miséria
profunda do corpo desprezado, fizera-o o ascetismo inconsciente da sua
existência errante. A voz cantante, plangente antes, arrastava-se apoiando
demais em certas sílabas, como quem chama. E falando baixo tinha umas inflexões
escuras, vindas mais de dentro, o tom reflexivo de quem pensa em voz alta.
Sonhava muito, quando
dormia, e prolongava o seu sonho, sempre o mesmo, pela vigília. Era com o dia
da volta dele que sonhava, com a hora em que, avistando-o, lhe dissesse:
“Bendito seja Deus, meu filho, que te torno a ver!” Ele abaixaria os olhos
diante do seu olhar carinhoso, com os seus modos tão bonitos de bom filho e
depois lhe contaria o que tinha visto pelas terras longes, a história da sua
ausência, as grandezas do mundo, as lindezas das outras gentes, tudo o que ela
nem podia imaginar que fosse, tudo evocaria o som da sua voz, cuja lembrança
bastava para lhe encher a ela os olhos de lágrimas. E voltariam a levantar a
casa arruinada, o ninho velho donde a má sorte os enxotara, a refazer a vida
antiga, humilde e pobre, que ela não trocaria pela de uma rainha, com
Luciano...
Sonhava, e procurava o
seu sonho, correndo as estradas. Mas não se afastava dos sítios familiares,
algumas léguas de circuito, três municípios, a pátria. Mais longe já parece que
a língua mudava ou pelo menos mudavam os costumes. Eram mais duros para a pobre
mãe, como se ela pudesse fazer mal, ou não entendiam-na e desconfiavam. Um dia
chegou ao pé de uma cidade muito bonita: as casas tinham vidros que faiscavam
ao sol; nas ruas passava muita gente, toda calçada de botinas, os homens de
gravata ao pescoço, as mulheres de chapéus com flores, todos muito soberbos;
carros e cavaleiros passavam a toda a pressa, fazendo muito barulho nas pedras
da calçada. Apareceram uns soldados e a pobre Maria fugiu espavorida. Era ali
sem dúvida que moravam os que lhe tinham arrancado o seu Luciano. Disseram-lhe
mais tarde que ela quase tinha estado na Praia Grande, que era para onde iam os
designados para o recrutamento militar, mas que não era ali que eles
batalhavam.
O invencível terror do
desconhecido a impediu de ir procurar o filho aos campos do Sul. O Sul sabia
ela onde era. De lá vinham as piores borrascas. E os tiros de canhão, que
diziam de gala na cidade, para ela eram batalhas mais perto, a guerra que se
aproximava. Se com a guerra lhe aparecesse um dia de repente Luciano! Quando o
ar estava pesado, o tempo de oração, ela escutava estremecendo o troar surdo
dos canhões que salvavam no Rio, avaliando a aproximação da guerra pela
sonoridade mais clara dos tiros, que lufadas de aragem quente e a banzeira
traziam.
Um dia de verão,
depois do meio-dia, ela vinha subindo da restinga do mar para a terra firme.
Não passava ninguém pelas estradas. O sol de fogo retorcia a folha das árvores
e fazia ferver o miolo da doida vagabunda. No grande silêncio da calma
acabrunhante só se ouvia o zumbido do enxame de mutucas importunas, que
acompanham a gente pelos caminhos à beira dos charcos, e o canto de galos
longe. O chão escaldava; a doida movia rápida os magros pés descalços e
caminhava de braços levantados, sustentando o xale acima da cabeça. Mas de
instante a instante parava, com um gesto de impaciência, e se abaixava para
atirar uma pedrada ou um punhado de areia aos camaleões cinzentos, que vinham
pôr-se à beira do caminho, debaixo dos gravatás de folhas de serra e flor vermelha,
e lhe faziam sinaizinhos brejeiros com a cabeça, quando ela passava. Sobre a
ponte do Paracatu parou para ver uma cobra verde, que se lavava no magro fio
d’água que ainda corria. Depois entrou na sombra do caminho estreito, com
árvores dos dois lados, um desfiladeiro entre a lagoa e a barranca de um morro
a pique, e se deteve a colher os cachinhos de jatitás verdes para refrescar a
boca sequiosa. Passou um cavaleiro pela estrada e no ouvido ficou-lhe a
cadência do meio galope, acompanhamento da toada favorita de Luciano, quando
falquejava no mato:
Os olhos de Joanita
São pretos como
carvão...
Fora ela que lha
ensinara, em pequenino. Vinha de tão longe a cantiga do Mineiro da serra! Vinha
de antes das tristezas dela... Cerrou-se-lhe a garganta e retomou a estrada.
Já ia pondo a mão à
cancela do campo do capitão Rosa, quando um tiro de canhão atroou os ares;
depois outro e outro e em seguida um estrondo prolongado, como o de uma casa
desabando.
Maria sem Tempo pensou
na guerra. Chegara enfim! A artilharia destruía as grossas muralhas da casa da
fazenda. Só lhe admirava aquele silêncio depois da catástrofe. Deu a volta para
ir espreitar pela outra cancela, e não entendeu mais nada, quando viu a casa em
pé, o gado no campo e na lombada do Morro do Cantagalo e o eito de escravos no
trabalho, manejado as enxadas, em que o sol faiscava. Ali estava tudo em paz;
no céu nem uma nuvem quebrava a dureza do azul implacável: donde vinha então
aquele troar de canhões?
A doida aproximou-se
da fazenda, mas saíram-lhe cães bravos ao encontro e ela regressou do meio da
ladeira. Deu então volta ao morro pelo lado do brejo, para entrar pelo engenho.
Mas ao passar pelo campinho de dentro, onde se soltavam os animais de sela e as
lavadeiras estendiam a roupa a corar, pareceu-lhe que ouvia deveras a cantiga
do Mineiro da serra, a cantiga da saudade, que lhe entrava pelos ouvidos, em
vez de ressoar-lhe apenas da memória esvaída. Transpôs a cerca de bambus em
moitas sussurrantes e encontrou um cavouqueiro, dos que ali andavam a
arrebentar pedra para construção, que descia da pedreira e vinha jantar. Maria
perguntou-lhe ansiosamente: “O meu filho? é o meu Luciano quem está cantando?”
O homem respondeu: "É o Luciano, sim; mas não vá para lá agora, que ele
vai pegar fogo à mina." A doida não lhe deu mais atenção e embarafustou
pelos cafezais acima. Chegando à entrada da pedreira, viu um rapaz meio
pendurado de uma corda de nós, que acabava de arranjar os estopins e punha fogo
à mina. Ela gritou: "Meu filho? És tu, meu Luciano?" O Chico Macaé,
que já ia marinhando pela corda acima, voltou-se espavorido: “Meu Deus! que faz
aí, Sinhá Maria? Fuja, que aí vai pedra! Corra, suma-se depressa, mulher!” E
como ela estacasse atônita, ele lançou mão de uma pedra para afugentá-la. A mãe
louca viu o gesto e, pondo as mãos na cabeça, despenhou-se pelo cafezal da
grota. Alguns segundos mais e a mina rebentava e Maria sentia cair-lhe em torno
uma chuva de pedras miúdas, enquanto ao longo da pedreira as grandes lascas
desabavam fragorosamente.
Maria sem Tempo caiu
extenuada sob uma grande mangueira no meio do campo. Na perturbação da emoção
profunda todas as ideias se lhe confundiram e o desvario completo entrou-lhe na
mente.
Era aquilo a guerra e
era o seu filho que a fazia contra ela. O homem dissera que era ele e a cantiga
a não enganara. Para se encontrarem daquele modo vivera ela tão longos anos,
penando pelos caminhos! À ideia de que pudera ter morrido aos golpes do filho
estremecido, um calafrio sacudiu-a toda convulsivamente e por fim as pernas se
lhe inteiriçaram. Depois, a necessidade de abandonar toda a esperança
quebrou-lhe as derradeiras forças. Uma toalha de gelo espremeu-lhe o coração
num grito de agonia infinita e Maria sem Tempo morreu.
Algumas horas depois
formava-se uma trovoada e um raio caía sobre a árvore que abrigava o cadáver. A
tempestade passou e os escravos que, voltando da roça, foram ver o tronco
lascado descobriram a morta. Os respingos da chuva lhe tinham coberto o rosto
de terra e os olhos esgazeados já pareciam olhar do fundo da sepultura. Um dos
escravos se abaixou para lhos fechar, dizendo: “Coitada de Sinhá Maria! Vá que
ela agora descanse de procurar o filho!...” E outro, velho, resmungou, sem
saber que tão bem dizia: “Esta morreu de ser mãe...”
(Histórias curtas,
1901.)
*
Jornalista, diplomata, contista e cronista, membro da Academia Brasileira de
Letras.
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