A
vergonha da vaia ou a vaia da vergonha
* Por
Raul Longo
Sequer uma nota de
obituário! Nada!
Isso não se faz! Com
golpe ou sem golpe é o presidente e nada justifica o descaso da mídia
brasileira ao passamento de Michel Temer.
Não importa até quando
assombrará o Palácio do Planalto, mas na abertura dos Jogos Olímpicos, ainda
que morto estava lá na condição de presidente. Morto, mas presidente.
Pela falta de
notificação da nossa imprensa, ninguém se comportou como se fosse presidente.
Tampouco com a circunspecção e respeito devido a qualquer defunto. O único
circunspecto foi o próprio defunto enquanto à sua volta uma multidão se
desabria.
Um cadáver totalmente
ignorado e presidente ou não, se comportou devida e irretocavelmente como
cadáver. Com toda a naturalidade de um morto. O que impressionou foi a falta de
sensibilidade mundial àquela morte.
Qualquer outro
cadáver, sobretudo de presidente, seja de fato ou por golpe, normalmente
impediria, interromperia a festa. Mas ali no Maracanã o que se sobrepôs foi a
obstinação de todos, nacionais e estrangeiros, pela alegria.
E o morto foi
esquecido, abandonado a mais completa insignificância, sem a menor solenidade.
Nem mesmo um olhar compungido pela morte ou aceno por algum reconhecimento à
sua condição de presidente.
Afora a inequívoca
condição de morto, não se pôde nem mesmo distinguir o que realmente o mundo
ignorou: se ao presidente ou ao defunto.
Todas as autoridades,
todos os presidentes, representantes de reinos e repúblicas,
primeiros-ministros e primeiras damas dos mais distintos e distantes países,
dos próximos também, fizeram não perceber que o morto, mesmo que
momentaneamente é a autoridade máxima da nação que os recebe com toda a
cordialidade.
Para os nacionais foi
como se o presidente não estivesse morto ou se o morto não fosse presidente.
Para estrangeiros, como se o morto fosse nada. Coisa alguma. Sequer morto.
O maior estádio nacional
do mundo lotado como nunca antes esteve, pois além dos camarotes e das
arquibancadas também no campo. Em cada metro quadrado não havia espaço para
mais ninguém, mas todos fizeram questão de deixar claro não haver cabimento
para o morto que, contudo, estava ali, apequenado em um assento como se abrisse
espaço às ausências realmente notadas e sentidas. Tentando provar de não ser
por sua culpa a não presença dos mais desejados, dos que melhor justificariam
suas presenças.
O principal
responsável que resgatando a depreciada imagem internacional do país fez o
Comitê Olímpico escolher a cidade do Rio de Janeiro, garantindo a realização da
festa. A da que superando todas as especulações preparou a cidade para o
sucesso da grande festa. E a do brasileiro maior atleta mundial de todos os
tempos, infelizmente adoecido.
Todos caberiam naquele
assnto e seriam aclamados. Menos o morto.
Com todos espocariam
spots e se posaria para fotos. Do morto não se quis qualquer lembrança nem se
concedeu a menor comiseração. Total alheamento correspondendo à defunta
impassibilidade à euforia que lotou o Maracanã, como convêm à dignidade dos
mortos.
O hipotético maior
aliado, secretário do Departamento de Estado dos Estados Unidos, manteve a
câmara do seu celular dirigida à festa, comportando-se como se o morto ou o
presidente não existisse
O presidente do Comitê
Olímpico distribuiu abraços e sorrisos num esforço para ofuscar a palidez
mortuária, impedindo-a de embasar o brilhantismo de tantas luzes e cores.
Desnecessário, pois a
negação do morto se confirmou por geral altruísmo à tônica da mais alegre das
festas da história das Olimpíadas.
Ninguém escondeu a
disposição de ignorar a morte ou o presidente. Nem mesmo o Secretário Geral da
ONU a quem a natureza do cargo requer esforço diplomático. Ban Ki-moon se
despiu do atávico formalismo oriental e a despeito da fúnebre presença, foi um
menino totalmente alheio à circunspecção ao seu lado.
Do começo ao fim do
evento, Michel Temer não existiu. Inexistiu. Ausência absoluta!
Sem dúvida, melhor
assim. Perceptivelmente foi uma morte planejada. Estratégica.
Morto ou vivo qualquer
um precisa encontrar um momento de dignidade, sobretudo um golpista. E Temer e
sua equipe sabem que, em meio à realização da Olimpíada Rio 2016, o único
reduto para alguma dignidade de suas presenças seria mesmo a ausência.
A surreal ausência de
corpo presente.
Todas as ausências
percebidas e lamentadas estão vivas. A única sequer notada foi a ausência de
corpo presente. E morta.
Corpo morto, conforme
voluntariamente se comprovou, sem qualquer outra possibilidade perante a
negação de sua existência. Mas presente.
Alegria, descontração,
sorrisos, empolgação, entusiasmo, exaltação foram as emoções tomadas pelas
câmeras de todas as emissoras de TV do mundo. Eventual e inevitavelmente
focavam a solitária e impassível circunspecção do morto para imediatamente
fugir da imagem do contrassenso à mais alegre e descontraída festa de abertura
em toda a história dos jogos olímpicos.
E a festa aconteceu.
Grandiosa!
Até José Serra cantou!
Sem qualquer expressão definida, mas como definir expressão em uma cara que
sequer se define como rosto? Ainda assim, cantou.
A festa aconteceu numa
noite em que o mundo inteiro foi brasileiro. Todo o mundo alegre e descontraído
como qualquer brasileiro.
Menos o morto em sua
determinação de confirmar que o mundo dos mortos é outro e não se rebaixa ao
dos vivos. Ao dos pulsantes e emotivos. Dos que aconteça o que acontecer, se
agarram a inexorabilidade da vida. Do prazer de viver.
Situação tão surreal
que se torna impossível afirmar qual a maior negação: se ao morto e ao
presidente, ou se do presidente morto à vida no Maracanã e no Brasil.
Mas em um momento, sem
citar nomes ou funções, uma voz anuncia pelos alto-falantes que serão abertos
os jogos. Repentinamente as luzes focam a inegável presença do morto e sem
tempo para o susto, o falecido fala: “Declaro oficialmente aberto os Jogos
Olímpicos 2016”
Apenas isso. Somente
isso. Mais nada, seguido de um mínimo, quase imperceptível instante de
apreensão que explode na mais uníssona e estentórea vaia já ouvida de qualquer
outra multidão.
Um Maracanã inteiro em
uma única vaia de todos. Da plateia de todo o mundo, de todos os atletas do
mundo, de todas as autoridades esportivas, diplomáticas e políticas do mundo.
Todos, compulsivamente juntos.
Cariocas garantem que
ecoou de Marechal Hermes ao Leblon, mas cidadãos de Mangaratiba afirmam que
também chegou lá. Alguém escreve ter ouvido em Tóquio. Um italiano diz que
repercutiu em Roma e Milão, e próximo à Glasgow espantou os visitantes de
velhas ruínas. Entremeou-se também às insólitas estruturas de Gaudí, em
Barcelona.
Nova-iorquinos dizem
ter imaginado nova morte de um negro pela polícia ou outro crack de Wall
Street. Enquanto isso em São Petersburgo o escritor se perdeu do enredo da
história. Em Praga um pintor errou o traço, e em Guadalajara o mariachi
desafinou no sopro.
Nas cabanas de aldeias
em meio à savana africana, fez vibrar a pele de tambores. Tigres em extinção
das encostas do Himalaia confundiram com o soprar dos ventos.
Aborígenes perscrutaram
os céus da Tasmânia imaginando vinganças de seus deuses. Pesquisadores
brasileiros na Antártica relatam que pinguins agitaram asas e focas bateram
palmas.
A TV brasileira também
se esforçou por, além da vaia, conferir palmas à fala do defunto expondo a
imagem de três ou quatro assessores atrás do remoto recanto reservado para o
cumprimento do protocolo que obrigou a única articulação mortuária em todo o
evento: “Declaro oficialmente aberto os Jogos Olímpicos 2016”.
Há os que tentam
comparar com a vaia orquestrada por César Maia na abertura dos Jogos
Pan-americanos em 2007, mas então os ensaiados funcionários da prefeitura do
Rio de Janeiro não perfaziam mais do que alguns metros quadrados de
arquibancada. Também incomparável ao camarote do Globo na abertura do
Campeonato Mundial de Futebol em 2014, quando Luciano Huck puxou grosseiras
ofensas.
Não há nada com que se
comparar à breve, porém definitiva vaia a um morto, por mais que tenha se
esforçado pela própria ausência.
Ao Mussolini, depois de
fuzilado, penduraram o corpo de cabeça pra baixo. Mas já não era um morto
presente. À morte de Margareth Thatcher se festejou por três dias em todo o
Reino Unido, mas também já não era uma morta ainda presente. Aqueles não
insistiram, não resistiram às próprias mortes como Michel Temer.
Em que pese o esforço
do cadáver interinamente presidente, não se pode considerar como real a
ausência ou a presença de Temer à festa de abertura dos Jogos Olímpicos Rio
2016. Mas ainda mais surreal do que a reduzida fala do corpo destituído de
vida, foi o geral alheamento à sua função. Talvez, também em sua primeira vez,
as Olimpíadas são realizadas em um país onde sua real presidente tenha sido
afastada, mas sem dúvida a primeira realizada em um país sem presidente ou qualquer
autoridade reconhecida.
Impossível definir o
que tenham aplaudido aqueles poucos assessores que acompanharam o féretro até o
Maracanã, mas segundo o mundo o que compareceu ao Maracanã não foi um
presidente. Realidade que a vaia global torna inequívoca e dela só resta uma
dúvida: a vaia envergonha mais ao morto ou a vergonha é do mundo por ter vaiado
um defunto?
Seja qual for a
resposta, a conclusão é a de que assim caminha a humanidade desde os tempos de
Luís XVI e Maria Antonieta. Ou antes.
Na história de
usurpadores do poder ou poderosos usurpadores, muito antes.
O Maracanã, maior
concentração de expectativas e esperanças dos brasileiros, tornou mais do que
evidente de que em todo o mundo e entre os próprios brasileiros não há qualquer
possibilidade de expectativa e esperança num país presidido por um morto.
*Raul
Longo é jornalista, escritor e poeta. Mora em Florianópolis e é colaborador do
“Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna “Pouso Longo”.
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