A vingança dos peixes
* Por
Frei Betto
Deixaram a praia, às
margens da baía de Guanabara, no final da tarde, em companhia dos filhos, a
quem foram mostrar as águas que, na Olimpíada, abrigarão várias modalidades
esportivas. Do piquenique restaram, sobre a areia, três garrafas pet vazias,
duas latas de salsichas, a sacola plástica dos pães e dois maços de cigarros
amarrotados.
A limpeza da praia só
seria feita na manhã do dia seguinte. Naquela noite, a maré, ao subir, expandiu
suas línguas sobre a areia e engoliu todo o lixo ali espalhado.
No fundo das águas, o
filhote de boto imaginou que o maço de cigarros fosse um bolinho de carne e se
adiantou a seus pares para abocanhá-lo. Pouco depois, boiou sufocado. Foi
velado por um enxame de moscas.
Do iate de turistas, a
baía recebeu cento e duas guimbas de cigarros, doze tocos de charutos,
dezessete sacos plásticos, doze pet, cinco garrafas de cachaça e uma de uísque;
e ainda uma toalha rasgada e uma lata de querosene vazia.
A garoupa faminta
nadou rápido rumo ao plástico, convencida de se tratar de uma deliciosa
cabomba, forrageira aquática. Sentiu-se entalada, e por mais que volteasse no
fundo das águas, não conseguiu vomitar. Pouco depois seu corpo emergiu para o
velório das moscas.
Desolado, papai boto
comentou com a mamãe garoupa:
― Como tudo mudou!
Nunca pensei que essa gente da cidade fosse sujar tanto o nosso aquário
natural.
― Também fico
indignada – observou a garoupa. ― Durante séculos os tupinambás e os termiminós
dependeram dessas águas para se alimentar e navegar, sem jamais envenená-las.
Até porque nunca acreditaram no lendário rio de janeiro...
― Também os pescadores
souberam preservar o seu meio de vida – completou o boto. ― Acontece que os
modernos não se relacionam diretamente com a natureza. Eu soube que usam
sapatos para pisar a terra. Não pescam, compram na peixaria. Não remam, entram
em barcas motorizadas para cruzar as nossas águas.
― Que nada, seu boto.
Não vê este teto arqueado que estenderam sobre as nossas cabeças? É a tal da
ponte Rio-Niterói. A usar uma embarcação, a maioria prefere ir por ali de moto,
carro, ônibus ou caminhão.
― E como fedem os
combustíveis dessas embarcações! Muito mais que peixe morto!
― Tenho a impressão de
que todo o lixão de Gramacho foi removido para as águas da baía – disse a garoupa.
― Agora essa gente
pode pescar de tudo aqui: pneus, eletrodomésticos, latas etc. Exceto peixes.
― O curioso – comentou
a garoupa – é que todos reclamam das autoridades, culpadas por não cuidar de
limpar a baía para a Olimpíada. Mas ninguém se pergunta: e quem sujou tanto?
Quem atirou tanta porcaria aqui dentro?
― Que eu saiba – falou
o boto – lá em cima eles não espalham lixo no quarto de dormir nem atiram
garrafas pets na privada.
― E por que fazem isso
aqui no mar?
― Ora, comadre, porque
mar, para a maioria, só serve para refrescar quem vem à praia. São tão
ignorantes que não percebem a relação entre águas despoluídas e a qualidade dos
peixes que chegam às suas mesas.
― Bem – concluiu a
garoupa – pelo menos assim nos vingamos. Eles contaminam as nossas águas e se
alimentam de peixes que eles mesmos envenenaram.
*
Escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol
dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial
da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de 60 livros, editados
no Brasil e no Exterior, entre os quais "Batismo de Sangue", e
"A Mosca Azul".
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