O reino perdido
* Por
Genolino Amado
E eu era feliz? Não
sei...
Fui-o outrora agora
(Cancioneiro FERNANDO
PESSOA)
Em março, alegria, e
alegria nova, me acolheu no sobradinho. Que alvoroço, que rumor, naquela manhã,
diferente de quantas eu conhecera até então, manhã inaugural, dia com as alunas
de volta ao fim das férias, e dia de outras, as calourazinhas, as mais recentes
infantas do meu reino. O professor que fui renascia naquela hora, na corte das
meninas, que, no portão, no jardim, na escadinha da frente e nas laterais, no
corredor, na saleta de Josefa, me reapareciam de uniforme.
Tão iguais, e tão
diferentes. Cresceram, mudaram, talvez já houvessem crescido e mudado no curso
do ano anterior, com o dia-a-dia a me esconder a transformação. Vi garotas nas
gurias da 11 e da 12, afinal minhas alunas. Vi meninotas nas meninas da 21 e da
22, que conduzi do Egito à Guerra dos Cem Anos. Observei um desabrochar de
moças nas mocinhas da 31 e da 32, alunas que perdi na derradeira lição dos
Tempos Modernos.
Dei com os olhos em
Marina e Beatriz. A mesma semelhança; porém não as mesmas Beatriz e Marina. Só
permaneciam iguais porque mudaram juntas. Agora bem diversas das que foram na
primeira manhã do professor. E Luísa já não se parecia tanto com Dudu, a
sobrinha do Major Zé Joaquim, ou talvez já não me impressionasse muito a
presença das duas. Vi de cabelos soltos a de tranças, vi esguia a
atarracadinha, vi maciez de curvas nas arestas da angulosa.
Diferentes, quase
todas. E as da 32, como as da 31, mais do que diferentes. Indiferentes. Ainda
no portão, aquela voz:
Bom-dia, Professor.
Bom-dia. respondi com
automatismo. Virei-me, olhei. Já se afastava a figura. Reconhecendo-a, ergui o
tom: Ângela, bom-dia.
Não se voltou, não me
escutou a doce irmã de Neusa. E aquilo me doeu. Ângela, da terceira série,
agora da quarta, Ângela ex-aluna, ex-Ângela minha, das minhas lições, que iria
estudar com outros, Ângela que já aprendera História e pelo professor de
História já passava ligeirinha, num cumprimento curto, Ângela tão perto e já
longínqua. Doeu.
Professor, bom-dia.
Bom-dia, Isabel. Tudo
bem, garota?
Isabel, da 31, a
interrogativa por excelência, a que me perguntou o que queria dizer
shakespeariano, a do álacre ou alacre. E, ao entrar, aquele bom-dia também
ligeirinho. Não parou um momento não me indagou se gostei das férias. Outros,
daí por diante, ouviriam suas perguntas caprichosas e imprevistas. Isabel,
presente e em começo de ausência, Isabel que passou de série, Isabel que perdi.
E tantas mais, da 32, da querida 31, tantas que reencontrei e não achei, ainda
pequenas da Escola e não mais pequenas de aulas minhas. Só ao entrar e ao sair
é que eu as veria, breves aparições no jardim, no pátio de recreio, nos
corredores, fugitivas, desatentas ao professor de velhas manhãs, velozes no
passar, velozes no dizer: "Bom-dia".
E por isso não foi
melhor o primeiro dia de março, no sobradinho cinzento.
Mesmo assim, foi bom.
Se alunas perdi, alunas ganhei. Enchiam as salas da 21 e da 22 figurinhas que
antes me pareceram esquivas também, mas esquivas somente porque esperavam a
hora de chegar, não porque viera a hora de partir. Outros nomes, outras vozes
que respondiam à chamada, outras feições oferecendo-se ao meu olhar: Foi um
encontro alegre que compensou a melancolia de uma despedida.
Das oito às nove, das
nove às dez, esqueci o que onze meses me roubaram, porque o recomeçar das
lições me levou a um outrora de quarenta séculos. Renasceu na Amaro o Egito dos
faraós e das pirâmides. E iriam reflorescer os jardins de Babilônia, com as
verdes criaturas que iniciavam comigo a peregrinação histórica.
Terminei o dia com
pequenas que foram minhas e a mim voltavam, as da velha 22, as da nova 32.
Deixei-as no fim da escuridão medieval, que já se fazia penumbra no madrugar do
Renascimento; reencontrei-as na Europa que principiava a ser moderna. Alguém
demorou a chegar, Hilda Schultz, a gorda. E já sem desconhecer a gordura, foi
sentar-se na fileira da frente. Não mais se apertaria. E a que chorou na lição
de Joana d’Arc brindou-me com o etéreo sorriso, sua única leveza.
Sucediam-se as manhãs.
Lá se foi março e o Gama lá se foi. A nova terceira série o acompanhou até às
Índias. Com as novas garotas da segunda, visitamos Atenas. E na volta à Grécia,
reaprendi a lição que as alunas anteriores já me haviam ensinado. A lição do
adolescente em face do heroísmo.
Contei a história
daquele dia que jamais anoiteceu na História, o dia de Maratona. Cinqüenta mil
invasores persas, dez mil defensores da liberdade grega. E a bravura, que a
liberdade inspirou, é vitoriosa.
Que palpitação a das
que me ouviam. Naquela manhã, as carioquinhas do Catete foram atenienses.
Mais uma aula, mais
uma invasão dos medos-persas. No desfiladeiro das Termópilas, resistem os
últimos defensores, com a maior das valentias, a dos que não esperam vencer. E
caem, morrem, os trezentos guerreiros de Esparta.
Tal qual no ano
anterior, a palpitação das meninas foi menor. As atenienses da véspera não se
tornaram espartanas. Devia faltar alguma coisa.
Outra manhã e a guerra
continua. Batalha naval de Salamina. Trezentas embarcações na frota dos gregos.
Na dos persas, oitocentas. E os gregos vencedores.
A Escola vibrou. Era a
segunda vez que vibrava assim com Salamina, tal qual com Maratona. E pela
segunda vez não houvera vibração com a suprema valentia das Termópilas.
Por quê? O mesmo
heroísmo, sob a mesma inspiração de liberdade, o mesmo desafio do pigmeu ao
gigante, o débil no destemor de enfrentar o inimigo poderoso: Que diferença
havia então? Uma só vitória.
Decerto, vitória dos
fracos, dos pequenos e dos livres, porém vitória. Aquelas almas imaturas, com o
otimismo da inexperiência, no calor e na confiança de viver, uniam à idéia do
herói a idéia do êxito. Os adultos conhecem que Davi foi bravo porque lutou com
o enorme filisteu, não só porque o derrotou. Mas um Davi vencido surpreenderia
tanto as garotas da Amaro quanto as entristeceria.
Recordo-me do prazer
com que, lá por novembro, as alunas da 31 e da 32 me ouviram contar, na
Revolução Francesa, o doido frêmito dos esfarrapados sans-culottes assaltando a
colina de Valmy e alcançando um triunfo que parecia impossível. Ignoravam as
pequenas quem foi Goethe, mas todas o aplaudiram quando citei o alemão:
"Neste lugar e neste dia começa uma época nova na história do mundo."
E em risonho dia de
maio a Escola acreditou no alvorecer de um novo tempo, de um mundo novo. A
minha primeira lição aproximava-se do fim, mas ao fim não chegou. Porque, de
súbito, o soar das sirenas, o buzinar dos automóveis, o troar das fortalezas,
maluquice de alegria na rua, no céu os aviões em vertiginoso carnaval de
fluidas serpentinas brancas: O Dia da Vitória, o Dia da Paz.
A exemplo dos outros
mestres, suspendi as aulas. Eu, com maior razão. Seria ridículo ensinar o
passado naquele instante denso de futuro. Um instante miraculoso, que nos
prometia redimir séculos e séculos de opressão e de injustiça, milênios e
milênios de miséria e horror. O mundo fraterno, que nem a morte de um deus
conseguiu criar, acolheria os que sobreviveram a um dilúvio de sangue.
As meninas que riam,
que se abraçavam e me abraçavam, convenceram-me, por um minuto, do amanhã
nascente naquela manhã. Deixando-as, compareci à assembléia-geral dos
professores, em sessão extraordinaríssima no gabinete de Eugênia. Havia um
orador, o Feitosa. Não mais o misterioso Feitosa das conversas em surdina a um
canto, um Feitosa inaugurado com a Paz, facundo, ruibarbosesco, potente na voz,
convincente nos gestos. Dizia:
Hoje estou seguro,
seguríssimo, de que se acabaram as guerras. Sim, acabaram de vez. Depois de
tanto que sofreram e aprenderam, os povos viverão em harmonia, as
superpotências não abusarão da sua força, desaparecerão as ditaduras, nenhum
poder ameaçará os direitos humanos, e os pobres da terra serão menos pobres.
Falou, falou. E
ouvimos. Muitos, com a mesma convicção de Feitosa, outros só com esperança, mas
nenhum descrente de todo. E aplaudimos o primeiro dos futurólogos.
Aquela manhã de maio,
com a paz na Europa, foi das últimas que passei no sobradinho. Em agosto, ali
já não me encontrou a manhã, da bomba atômica na Ásia. É que,
surpreendentemente, ao fim de junho, o pérfido governo resolveu encerrar a sua
perseguição. Fui transferido para o turno da noite e, depois, enviado de volta
à emissora educativa.
Sofri. Sofri de verdade.
Bem me lembro de quanto me doeu abraçar as alegres alunas, então alunas de
olhos umedecidos, que se despediam do professor com quem aprenderam tão pouco e
a quem ensinaram tanto. Foi um adeus em silêncio. Falar o quê?
Hoje, abençôo aquela
hora que me amargurou. Deixei o reino encantado quando ainda havia
encantamento. E os encantamentos que perduram são os que nos fogem depressa.
Perder é às vezes ganhar. Pássaro esquivo, que voa na luz, a poesia das coisas
não se prende ao ninho escuro do cotidiano. Porque saí da Escola, preservei-a
na festa da manhã inicial.
E as manhãs,
continuadas, já não me pareciam festivas. De tanto que o vi, o Botafogo das
sete e meia acabou desaparecendo ao meu olhar de transeunte acostumado a
Botafogo. Via e ao mesmo tempo não via o vôo bailarino das gaivotas, as velas
errantes, a nuvem que se enroscava imprudentemente no Pão de Açúcar. No abril
da iniciação, a atmosfera dos sonhos, a meninice de um mundo sorridente. E o
mundo envelhecera. Ou envelheceu a visão do mundo infantil. Com tanto sol, a
neblina do tédio o cobria.
Chilreavam os pardais
nos oitizeiros? Não os ouvia, semi-surdo o professor semicego. No
Jardim-Leblon, ia lendo o jornal, sem o namoro secreto de antes com as
caixeirinhas das lojas e a velhinha da missa. Ir à Escola deixou de ser um
passeio.
Até a Escola ficou
diferente, porque não mudava. O encontro com Josefa, o soar do bem-lem-bem, as
conversinhas de corredor e de saleta, as vozes das garotas com os
"Presente" e os "Pronto" da chamada, tudo se repetia.
Também eu repeti, com satisfação, o que, no ano anterior, ouvira de outro, com
tristeza. Já nas vésperas da transferência, comentei:
Estão chegando as
primeiras provas parciais. Depois, um mês de férias. Que bom, hein?
As mesmas palavras de
Adelino, que estranhas e absurdas pareciam ao professor em lua-de-mel com o
magistério. Ao me escutar, compreendi que a graça de conviver com as meninotas
já não tinha tanta graça, que o brinquedo se fizera a obrigação. Reaparecia o
adulto no que, aos quarenta, principiou a lecionar com o prazer de um guri
vadiando. Ao mestre, que se cansava e se enjoava, já acontecia em junho o que
ao mestre ainda novo só acontecera em dezembro.
E mais um dezembro com
as meninas seria dezembro de perder meninas. Muitas e muitas vezes, nas lições
à 31 e à 32, ouvi de mim: "Em março vindouro, estas passarão por você, num
bom dia curto, fugitivas, apressadinhas."
E passariam outras,
mais outras, na sucessão dos anos. O professor parado, à beira do rio
adolescente. E o rio seguindo, a levar blusas brancas e saias azuis, as mesmas
saias, as mesmas blusas, porém não as mesmas náiades na veloz torrente. Por
fim, o professor se aborreceria de mirar as ninfas que viessem na correnteza e
a correnteza fosse levando.
Porque parti, o rio
adolescente deixou de correr. Transformou-se num lago cristalino, sobre o qual
me debruço quando quero rever as de cova no queixo, as de pintas no rosto, as
de olhar sonso, as de feições abertas, as estabanadas e as manhosas, as
baixotinhas de busto erguido, as esguias ainda sem ondulação de seio, a de
franja na testa, a de tranças, as de cabelos revoltos, a com pelúcia de pêssego
no antebraço, as meninas sempre meninas da Escola, as meninas que me reaparecem
na ingênua ilusão de um abril que se foi, as reencontradas infantas do meu
reino perdido.
Rio, agosto-outubro,
1970.
*
Jornalista e cronista, membro da Academia Brasileira de Letras.
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