O crime de Capote
* Por Nei Duclós
Truman Capote cometeu um crime: invadiu
a reportagem com recursos de ficção, extraiu fatos esgrimindo mentiras,
transgrediu o jornalismo levando-o à literatura e atingiu a celebridade ao
mesmo tempo em que se tornou prisioneiro da própria obra. Inconformado com a
submissão da realidade à imaginação (esta, muito mais fecunda e inspiradora),
apostou a vida num envolvimento que lhe custou caro. No fundo, queria romper a
maldição que assombra todo o escriba desde suas origens.
No mais baixo escalão da escravatura
situava-se a pessoa encarregada de tecer os signos de um reino. A palavra texto
vem da obra desse tecelão ancestral, que produzia algo impossível de vestir, e
que limitava sua arte a tornar inteligível o que lhe era ditado. Na longa
linhagem literária, sobram exemplos de escritores amaldiçoados pelo pouco
carisma da sua atividade, onde se sobressaem Dostoievski e Kafka. São raros os
exemplos de escritores celebrados em vida, como foi o caso de Victor Hugo, que
recebeu uma chuva gigantesca de flores da população parisiense quando completou
80 anos. Vocação fadada ao insucesso, por não permitir a sobrevivência regular
e fatídica, escrever se transformou numa impossibilidade, que a voragem do
jornalismo só soube acentuar.
Confinados nas redações, os escritores
empurrados para a reportagem entregaram-se à invenção mais deslavada a partir
dos prontuários policiais. Forjar ficção para vender jornal virou o estigma
maior de um ofício que exige a ética para se impor. Truman Capote rompeu com
essa barreira e trouxe para o noticiário policial o detalhe do observador de
gênio, que usava de todos os recursos – da astúcia à emoção – para chegar ao
seu objetivo. No filme Capote, de
Bennett Miller, de 2005, que chega em forma de dvd exibindo a performance do
ganhador do Oscar, Philip Seymour Hoffman,
no papel principal, vemos como ele se impregnou do objeto do seu tema, a
partir do talento e da memória privilegiada.
A constatação mais importante do filme
é o fato de que Capote reconhecia a identificação entre ele e o assassino.
“Fomos criados na mesma casa”, diz, “só que eu saí pela porta da frente e ele
pela dos fundos”. Ambos com problemas familiares, com históricos de suicídio,
desamor, abandono e violência, o escritor e seu alter ego trocam confidências
sobre a vida perversa ocupada do outro lado da América, a que fica situada no
lado oposto da rotina asséptica. Aproximar-se dos corpos assassinados foi uma
revelação: ele queria mesmo era ver a vida normal esvair-se, talvez para se livrar
da canga que a realidade o condenou.
Ocupar integralmente o espaço criado
pela transgressão (o assassinato, por parte do criminoso, o livro A sangue frio, por parte do escritor)
acabou com as ligações frágeis de Capote com o mundo que o sustentava. Essa
arquitetura ruiu quando os corpos desceram no cadafalso, num evento do qual ele
jamais iria se recuperar. Não terminou mais nenhum livro. A espera do desfecho
(a execução) que viabilizaria seu livro, o empurrou para um beco sem saída.
Da sua ousadia se aproveitaram todos os
outros escritores, que puderam seguir o caminho do texto com mais liberdade.
Mas seu estigma permanece, o de ter cometido um crime e sair aplaudido no
final.
*
Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No
mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista
desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é
editor-executivo de duas revistas.
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