domingo, 10 de julho de 2016

O crime de Capote


* Por Nei Duclós



Truman Capote cometeu um crime: invadiu a reportagem com recursos de ficção, extraiu fatos esgrimindo mentiras, transgrediu o jornalismo levando-o à literatura e atingiu a celebridade ao mesmo tempo em que se tornou prisioneiro da própria obra. Inconformado com a submissão da realidade à imaginação (esta, muito mais fecunda e inspiradora), apostou a vida num envolvimento que lhe custou caro. No fundo, queria romper a maldição que assombra todo o escriba desde suas origens.

No mais baixo escalão da escravatura situava-se a pessoa encarregada de tecer os signos de um reino. A palavra texto vem da obra desse tecelão ancestral, que produzia algo impossível de vestir, e que limitava sua arte a tornar inteligível o que lhe era ditado. Na longa linhagem literária, sobram exemplos de escritores amaldiçoados pelo pouco carisma da sua atividade, onde se sobressaem Dostoievski e Kafka. São raros os exemplos de escritores celebrados em vida, como foi o caso de Victor Hugo, que recebeu uma chuva gigantesca de flores da população parisiense quando completou 80 anos. Vocação fadada ao insucesso, por não permitir a sobrevivência regular e fatídica, escrever se transformou numa impossibilidade, que a voragem do jornalismo só soube acentuar.

Confinados nas redações, os escritores empurrados para a reportagem entregaram-se à invenção mais deslavada a partir dos prontuários policiais. Forjar ficção para vender jornal virou o estigma maior de um ofício que exige a ética para se impor. Truman Capote rompeu com essa barreira e trouxe para o noticiário policial o detalhe do observador de gênio, que usava de todos os recursos – da astúcia à emoção – para chegar ao seu objetivo. No filme Capote, de Bennett Miller, de 2005, que chega em forma de dvd exibindo a performance do ganhador do Oscar, Philip Seymour Hoffman,  no papel principal, vemos como ele se impregnou do objeto do seu tema, a partir do talento e da memória privilegiada.

A constatação mais importante do filme é o fato de que Capote reconhecia a identificação entre ele e o assassino. “Fomos criados na mesma casa”, diz, “só que eu saí pela porta da frente e ele pela dos fundos”. Ambos com problemas familiares, com históricos de suicídio, desamor, abandono e violência, o escritor e seu alter ego trocam confidências sobre a vida perversa ocupada do outro lado da América, a que fica situada no lado oposto da rotina asséptica. Aproximar-se dos corpos assassinados foi uma revelação: ele queria mesmo era ver a vida normal esvair-se, talvez para se livrar da canga que a realidade o condenou.

Ocupar integralmente o espaço criado pela transgressão (o assassinato, por parte do criminoso, o livro A sangue frio, por parte do escritor) acabou com as ligações frágeis de Capote com o mundo que o sustentava. Essa arquitetura ruiu quando os corpos desceram no cadafalso, num evento do qual ele jamais iria se recuperar. Não terminou mais nenhum livro. A espera do desfecho (a execução) que viabilizaria seu livro, o empurrou para um beco sem saída.

Da sua ousadia se aproveitaram todos os outros escritores, que puderam seguir o caminho do texto com mais liberdade. Mas seu estigma permanece, o de ter cometido um crime e sair aplaudido no final.   

* Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.



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