quinta-feira, 7 de julho de 2016

Cadeiras rangem, aplausos cicatrizam...

* Por Marta Goes


Descobri como jornalista a delícia dos bastidores, de ensaios mais divertidos que o espetáculo pronto, como massa crua de bolo lambida nas pás da batedeira. Gostava de entrar no teatro com luz de serviço, de ver os atores no palco, meio ofuscados, tentando localizar o diretor em algum lugar misterioso na platéia. Descobri as pessoas do teatro. Não os atores, os diretores, os cenógrafos, mas os técnicos, as camareiras, os bilheteiros.

Assisti, em 1983, ao ensaio geral de Romeu e Julieta, dirigido por Antunes Filho. Ia escrever uma reportagem e estava quase tão nervosa quanto os próprios artistas, porque o assunto concorria à capa da revista em que eu trabalhava, a IstoÉ, e eu nunca tinha escrito uma. Era uma tarde sem nenhum glamour no teatro, com a platéia vazia e providências técnicas em andamento. Quando a apresentação acabou, eu tinha esquecido reportagem, revista e o prazo de fechamento da reportagem, e nada mais tinha importância, a não ser a morte, em Verona, de dois meninos que só existiram no palco.

Quando a peça é minha, gosto de me sentar na platéia e observar o público. O riso e o silêncio total me tranqüilizam igualmente; o ranger de uma só cadeira já me aflige. Quando Prepare seus Pés para o Verão, meu primeiro texto, foi montado no Off, em São Paulo, em 1987, fiquei muitas vezes no bar desse adorável teatrinho, para ouvir os risos lá dentro. A diretora, Gecila Sampaio, tentou me mostrar que era possível gostar sem rir. Eu acreditava, mas preferia uma confirmação mais óbvia, sobretudo porque era comédia. Só com Um Porto para Elizabeth Bishop é que descobri o valor incomparável do silêncio compartilhado.

O aplauso é uma experiência cicatrizante, reconstituinte. Pensei nisso muitas vezes, ao longo da carreira da Bishop, especialmente na noite da Flip, em Paraty. É um prazer que se acumula no coração como uma fortuna. Rende bônus de segurança, alegria e gratidão.

A crítica ruim sempre foi uma ameaça. Por isso, me incomodou mais como jornalista que como autora teatral. Temer a opinião alheia é um tormento que não escolhe o alvo pela profissão. Provavelmente porque fui jornalista jovem e escritora tardia, já lidava com esse fantasma antes de ver encenada a minha primeira peça. De tão conhecido, o fantasma foi ficando cômico: o dia em que iam descobrir que eu era uma fraude. Assim, diante da primeira crítica negativa, vivi por algumas horas o papel da desmascaradinha – para descobrir, em seguida, que nada havia mudado. O medo da crítica ruim é infinitamente mais lesivo que ela própria.

Tirei o nome de um texto só porque os atores fizeram mudanças que achei exageradas. Não queria perder a imagem de “delicada”. A crítica adorou, a peça bombou e está em cartaz há três anos. Eu tive de voltar para a análise. A peça chama-se, irônicamente, Divã. (Final feliz: eles me aceitaram de volta à turma. E tive alta.)

Chico de Assis compartilhou generosamente seus conhecimentos, acumulados desde os seminários de dramaturgia de Augusto Boal no teatro de Arena, nos anos 60. Freqüentei suas aulas preciosas no teatrinho da rua Teodoro Baima, há quase vinte anos. “Aprender a escrever teatro exige uma relação de mestre e discípulo, um vínculo entre pessoas que amam o mesmo assunto”, ensina o autor de Missa Leiga. Essa é uma das razões que fazem de Chico um mestre.

Quando estou na dúvida se uma peça está caminhando na direção certa, consulto meus filhos Antonio e Maria Prata (se Maria não chorar, ninguém vai chorar). Se continuar na dúvida, consulto Fauzi Arap. Além deles, ouvi, no ano passado, os dramaturgos do grupo de Samir Yazbek. Grupos de dramaturgia oferecem bons palpites técnicos e ainda antecipam para o autor o efeito que suas palavras produzirão sobre futuras platéias: risos, silêncios totais ou cadeiras que rangem com eloqüência.

Uma das lições que aprendi com Fauzi Arap: “Exagero é teatral”.

Outra lei de Fauzi: depois de uma hora de espetáculo, evite introduzir novos personagens. O espectador (e, sobretudo, o marido da espectadora) precisa ter certeza de que aquela história vai ter fim.

Bons diretores interferem no texto como bons editores: deixam visível o que ele contém de mais importante, de melhor. Diretores recorrem ao cenário, à luz, ao ritmo, às marcas. Editores escolhem a melhor foto, dão o título certo, a legenda, o olho. O que os editores não conhecem é a alegria, depois, de chamar um grande ator para contar aquela história aos leitores.

Descemos de Petrópolis no ônibus cor de vinho da Única: a amiga, a empregada mocinha e eu. Meu pai fez mil recomendações e nos deixou, boquiabertas, no saguão do teatro João Caetano, na Praça Tiradentes. A peça era My Fair Lady e, aos 9 anos, me senti arrebatada. Ouvi o disco e cantei as músicas durante semanas, até toda a família implorar – pelo amor de Deus! – uma trégua. Por fidelidade a Bibi Ferreira e a Paulo Autran, não pude me render a Audrey Hepburn e a Rex Harrison no filme. E, anos mais tarde, desenvolvi a teoria de que não existe coisa melhor do que peça de adulto para fazer uma criança se apaixonar por teatro. Paulo Autran e Bibi Ferreira na veia, costumava receitar. Mas aí me lembrei do fascínio quase aterrorizado que experimentei ao ver Pluft, o Fantasminha no Tablado. E não soube mais o que sugerir para estreantes.

(Texto transcrito da Revista Piauí).


* Jornalista, dramaturga e roteirista de cinema e televisão. Autora da biografia de Alfredo Mesquita (Editora Terceiro Nome).

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