Germinal
* Por
Menotti Del Picchia
I
Nuvens voam pelo ar como bandos de garças.
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira
pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o.
Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.
No piquete relincha um poldro; um galo alacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher; entre varas de cerdos,
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma
na treva.
Anoiteceu.
Juca Mulato cisma.
II
Como se sente bem recostado no chão!
Ele é como uma pedra, e como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,
a esse desejo de viver grande e complexo,
que tudo abarca numa força de coesão.
Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejo ate de rebrotar raízes,
deitar ramas pelo ar,
sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,
o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,
romper em brotos, florescer, frutificar!
III
“Que delícia viver! Sentir entre os protervos
renovos se escoar uma seiva alma e viva,
na tenra carne a remoçar o corpo moço...”
E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos,
afla a narina; o peito arqueja; uma lasciva
onda de sangue lhe incha as veias do pescoço...
Ei-lo, supino e só, na noite vasta. Um cheiro
acre, de feno, lhe entorpece o corpo langue;
e, no torso trigueiro,
enroscam seus anéis serpentes de desejos
e um pubescente ansiar de abraços a de beijos
incendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue.
Juca Mulato cisma.
Escuta a voz em coro
dos batráquios, no açude, os gritos soluçantes
do eterno amor dos charcos.
É ágil como um poldro e forte como um touro;
no equilíbrio viril dos seus membros possantes
há audácias de coluna e a elegância dos barcos.
O crescente, recurvo, a treva, em brilhos frange,
e, na carne da noite imerge-se e se abisma
como, num peito etíope, a ponta de um alfanje.
Juca Mulato cisma...
A natureza cisma.
IV
Aflora-lhe no imo um sonho que braceja;
estira o braço; enrija os músculos; boceja;
supino fita o céu e diz em voz submissa:
“Que tens, Juca Mulato?...” e, reboleado na erva.
sentindo esse cansaço irritante que o enerva,
deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.
Cansado ele? E por quê? Não fora essa jornada
a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada
a suster, no café, as invasões da aninga?
E, como de costume, um cálice de pinga,
um cigarro de palha, uma jantinha à toa,
um olhar dirigido à filha da patroa?
Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada..
Uns alqueires de chão; o cabo de uma enxada;
um cavalo pigarço; uma pinga da boa;
o cafezal verdoengo; o sol quente e inclemente...
Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente,
o olhar indiferente,
da filha da patroa...
“Vamos, Juca Mulato, estás doido?” Entretanto,
tem a noite lunar arrepios de susto;
parece respirar a fronde de um arbusto,
o ar é como um bafio, a água corrente, um pranto.
Tudo cria uma vida espiritual, violenta.
O ar morno lhe fala; o aroma suave o tenta...
“Que diabo!” Volve aos céus as pupilas, à toa,
e vê, na lua, o olhar da filha da patroa. ..
Olha a mata; lá está! o horizonte lho esboça:
pressente-o em cada moita; enxerga-o em cada poça;
e ele vibra, e ele sonha, e ele anseia, impotente,
esse olhar que passou, longínquo e indiferente!
V
Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.
Dentro dele, um desejo abre-se em flor e cresce
e ele pensa, ao sentir esses sonhos ignotos,
que a alma é como uma planta, os sonhos como brotos
vão rebentando nela e se abrindo em floradas...
Franjam de ouro, o Ocidente, as chamas das
queimadas.
Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.
Adivinha que tem qualquer coisa no peito,
e, às promessas do amor, a alma escancara ansiado,
como os áureos portais de um palácio encantado!...
Mas, a mágoa que ronda a alegria de perto,
entra no coração sempre que o encontra aberto...
Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e doce
fulgiu-lhe como a luz, como a luz apagou-se.
Feliz até então, tinha a alma adormecida...
Esse olhar que o fitou, o acordou para a vida!
A luz que nele viu deu-lhe a dor que ora o
assombra,
como o sol que traz luz e, depois, deixa a
sombra...
VI
E, na noite estival, arrepiadas, as plantas
tinham na negra fronde umas roucas gargantas
bradando, sob o luar opalino, de chofre:
“Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre...
Fechar ao mal de amor nossa alma adormecida
é dormir sem sonhar, é viver sem ter vida..
Ter, a um sonho de amor, o coração sujeito
é o mesmo que cravar uma faca no peito.
Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:
não amar, é sofrer; amar, é sofrer mais!”
VII
E, despertando à Vida, esse caboclo rude,
alma cheia de abrolhos,
notou, na imensa dor de quem se desilude
que, desse olhar que amou, fugitivo e sereno,
só lhe restara ao lábio um trago de veneno,
uma chaga no peito e lágrimas nos olhos.
(Juca Mulato, 1917).
*
Poeta, jornalista, político, romancista, contista, cronista e ensaísta, membro
da Academia Brasileira de Letras.
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