A bela cena
* Por Rubem Alves
Tomas, personagem do livro A Insustentável Leveza do Ser, não conhecia a experiência da paixão. O que ele conhecia eram os prazeres do sexo. Esgotada a orgia o seu desejo era livrar-se da mulher. A idéia de acordar com uma mulher ao seu lado o horrorizava. O seu horror ao amor era tal que nunca permitia que uma mulher dormisse na sua cama. Tomas encontrava sempre uma desculpa para livrar-se da companheira levando-a de volta à sua casa. Ele se parecia com o sultão d’as Mil e uma Noites que, depois de uma noite de prazeres carnais, quando o sol iluminava o horizonte, fazia com que a amante fosse decapitada... Era assim que Tomas agia, como animal caçador que abandona a caça tão logo sua fome tivesse sido saciada.
Mas com Tereza tudo tinha sido diferente. Não que Tereza tivesse algum traço especial, que a distinguisse das outras. Ela não era mais bonita que as outras. Por que ele a amou e deixou que ela passasse a noite na sua cama? Por mais que a examinasse nada encontrava nela que pudesse ser apontado como a razão para o seu amor. Eles haviam se conhecido por um tempo tão curto! Mas, sem razões e contra a sua vontade, o fato era que ele estava apaixonado por ela.
Sua aventura com Tereza tinha começado exatamente onde terminavam suas aventuras com as outras mulheres. Ela acontecera do outro lado do impulso que o levava às conquistas. Conhecera Tereza acidentalmente num bar de uma cidadezinha do interior. Dissera-lhe, quase como uma brincadeira, que se fosse à capital, que o procurasse. E lhe dera o seu endereço. Tereza foi e chegou à capital doente, sentindo-se perdida. Não tinha para onde ir. Foi isso que a levou a procurar Tomas. E foi aí que a história de amor começou.
Ela estava ardendo em febre. Ele não podia fazer com ela aquilo que fazia com as outras. Não podia levá-la de volta para casa porque ela não tinha casa. Ajoelhado à sua cabeceira “ocorrera-lhe a idéia de que ela viera para ele numa cesta sobre as águas”.
Agora, à distância, pensava sobre as razões do seu amor e fazia, sem que disso se desse conta, a insólita pergunta de Santo Agostinho: “O que é que amo quando amo Tereza?” Tudo se tornou claro de repente. Ele ficou comovido pela fragilidade de Tereza adormecida: criança amedrontada, chegando aos seus braços com um pedido de socorro. “A mulher não resiste à voz do que chama sua alma amedrontada; o homem não resiste à mulher cuja alma se torna atenta à sua voz.” “Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar de memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. Desde que Tomas conhecera Tereza, nenhuma outra mulher tinha o direito de deixar a marca, por efêmera que fosse, nessa zona do seu cérebro.”
Agora, na sua memória poética, aquela cena permanecia imóvel, imperturbável, fora do tempo. Era uma parte da sua alma. Não morreria jamais.
“O que é que amo quando te amo?” Tomas amava Tereza porque amava nela uma outra coisa: aquela cena que repentinamente brilhara em sua imaginação. Na cena Tereza não era Tereza: era uma criança abandonada levada pelas águas de um rio. E de repente ele deixou de ser Tomas caçador: tornou-se um homem forte que tomava aquela criança nos seus braços. Tereza poderia deteriorar-se ou morrer. Mas a cena permaneceria inalterada, suspensa na memória poética, como objeto de amor.
Amamos a bela cena antes de amar a pessoa. Amamos a pessoa porque ela completa a bela cena. Por isto que Santo Agostinho, antecedendo os versos de Fernando Pessoa escreveu em suas Confissões: “Antes que te conhecesse eu já te amava”. Somos amantes antes de nos encontrarmos com a mulher ou com o homem que será o objeto do nosso amor. A alma é uma coleção de belos quadros adormecidos, os seus rostos envolvidos pela sombra. Sua beleza é triste e nostálgica porque, sendo moradores da alma ao lado dos sonhos eles não existem do lado de fora. Vez por outra, entretanto, defrontamo-nos com um rosto – ou apenas uma voz, um olhar, um gesto com a mão...— que, sem razões, ilumina um dos quadros que estava no escuro. Somos então possuídos pela certeza de que este rosto que os olhos vêem é o mesmo que está no quadro que mora nas sombras da alma. O corpo estremece. A paixão está ascendo.
Tomas, personagem do livro A Insustentável Leveza do Ser, não conhecia a experiência da paixão. O que ele conhecia eram os prazeres do sexo. Esgotada a orgia o seu desejo era livrar-se da mulher. A idéia de acordar com uma mulher ao seu lado o horrorizava. O seu horror ao amor era tal que nunca permitia que uma mulher dormisse na sua cama. Tomas encontrava sempre uma desculpa para livrar-se da companheira levando-a de volta à sua casa. Ele se parecia com o sultão d’as Mil e uma Noites que, depois de uma noite de prazeres carnais, quando o sol iluminava o horizonte, fazia com que a amante fosse decapitada... Era assim que Tomas agia, como animal caçador que abandona a caça tão logo sua fome tivesse sido saciada.
Mas com Tereza tudo tinha sido diferente. Não que Tereza tivesse algum traço especial, que a distinguisse das outras. Ela não era mais bonita que as outras. Por que ele a amou e deixou que ela passasse a noite na sua cama? Por mais que a examinasse nada encontrava nela que pudesse ser apontado como a razão para o seu amor. Eles haviam se conhecido por um tempo tão curto! Mas, sem razões e contra a sua vontade, o fato era que ele estava apaixonado por ela.
Sua aventura com Tereza tinha começado exatamente onde terminavam suas aventuras com as outras mulheres. Ela acontecera do outro lado do impulso que o levava às conquistas. Conhecera Tereza acidentalmente num bar de uma cidadezinha do interior. Dissera-lhe, quase como uma brincadeira, que se fosse à capital, que o procurasse. E lhe dera o seu endereço. Tereza foi e chegou à capital doente, sentindo-se perdida. Não tinha para onde ir. Foi isso que a levou a procurar Tomas. E foi aí que a história de amor começou.
Ela estava ardendo em febre. Ele não podia fazer com ela aquilo que fazia com as outras. Não podia levá-la de volta para casa porque ela não tinha casa. Ajoelhado à sua cabeceira “ocorrera-lhe a idéia de que ela viera para ele numa cesta sobre as águas”.
Agora, à distância, pensava sobre as razões do seu amor e fazia, sem que disso se desse conta, a insólita pergunta de Santo Agostinho: “O que é que amo quando amo Tereza?” Tudo se tornou claro de repente. Ele ficou comovido pela fragilidade de Tereza adormecida: criança amedrontada, chegando aos seus braços com um pedido de socorro. “A mulher não resiste à voz do que chama sua alma amedrontada; o homem não resiste à mulher cuja alma se torna atenta à sua voz.” “Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar de memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. Desde que Tomas conhecera Tereza, nenhuma outra mulher tinha o direito de deixar a marca, por efêmera que fosse, nessa zona do seu cérebro.”
Agora, na sua memória poética, aquela cena permanecia imóvel, imperturbável, fora do tempo. Era uma parte da sua alma. Não morreria jamais.
“O que é que amo quando te amo?” Tomas amava Tereza porque amava nela uma outra coisa: aquela cena que repentinamente brilhara em sua imaginação. Na cena Tereza não era Tereza: era uma criança abandonada levada pelas águas de um rio. E de repente ele deixou de ser Tomas caçador: tornou-se um homem forte que tomava aquela criança nos seus braços. Tereza poderia deteriorar-se ou morrer. Mas a cena permaneceria inalterada, suspensa na memória poética, como objeto de amor.
Amamos a bela cena antes de amar a pessoa. Amamos a pessoa porque ela completa a bela cena. Por isto que Santo Agostinho, antecedendo os versos de Fernando Pessoa escreveu em suas Confissões: “Antes que te conhecesse eu já te amava”. Somos amantes antes de nos encontrarmos com a mulher ou com o homem que será o objeto do nosso amor. A alma é uma coleção de belos quadros adormecidos, os seus rostos envolvidos pela sombra. Sua beleza é triste e nostálgica porque, sendo moradores da alma ao lado dos sonhos eles não existem do lado de fora. Vez por outra, entretanto, defrontamo-nos com um rosto – ou apenas uma voz, um olhar, um gesto com a mão...— que, sem razões, ilumina um dos quadros que estava no escuro. Somos então possuídos pela certeza de que este rosto que os olhos vêem é o mesmo que está no quadro que mora nas sombras da alma. O corpo estremece. A paixão está ascendo.
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* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador.
* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador.
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