A conferência do existencialismo
* Por Luiz Carlos Monteiro
“Sucesso cultural sem precedentes. Empurrões, socos, cadeiras quebradas, mulheres desmaiadas. A bilheteria do saguão para a venda de ingressos fica irremediavelmente abalada, destruída, reduzida a escombros: ninguém consegue comprar coisa alguma. Beigbeder e Calmy se mostram sucessivamente contentes, preocupados, enlouquecidos, apavorados, constrangidos, arrasados, impotentes diante desse ímpeto catastrófico. Gaston Gallimard comparece, assim como Armand Salacrou e Adrienne Monnier. A multidão compacta, nervosa e exasperada pelo calor causticante de outubro, esperneia sem dó nem piedade, impedindo a entrada de qualquer pessoa. Só uma vez, entretanto, tem um pouco de consideração, quando surge o casal de artistas Jean-Louis Barrault e Madeleine Renaud: então, única exceção, os socos e ferimentos cedem lugar à deferência mundana. Sartre chega sozinho, de metrô, lá de Saint-Germain-des-Près. Quando dobra a esquina e enxerga a multidão tão densa e ameaçadora que se comprime diante do prédio das Centrais onde deve falar, diz consigo mesmo, curioso: “Ora, só podem ser comunistas se manifestando contra mim!” e até pensa em dar meia-volta. Segue em frente, porém, mais por consciência profissional que pela vontade real de enfrentar a maré humana que julga hostil e entra, sem convicção, no auditório. Mais de duzentos, trezentos ouvintes acotovelados; quantos conhecem o rosto dele? E logo Sartre, a última pessoa capaz de dizer: “Sou eu, Sartre, abram caminho, por favor, com licença”? Portanto, não diz nada e se deixa levar, para frente e para trás, da direita para a esquerda, ao ritmo de cotoveladas, batidas de cadeira e de bengala, e vai indo, arrastado por fluxos benéficos, aos poucos, brutalmente, até a parte da frente da platéia: o percurso, da porta da entrada ao estrado onde deve falar, dura mais de quinze minutos. Com mais de uma hora de atraso, numa sala superabafada, apinhada de gente superexaltada, o conferencista começa a falar.
Claro, sem consultar anotações e, na medida em que a promiscuidade dos ouvintes permite, de mãos no bolso. De saída, defende o existencialismo das críticas comunistas: “filosofia contemplativa, de luxo, burguesa”; das críticas católicas: “sublinhar a ignomínia humana, mostrar o lado hediondo, viscoso, de tudo”. Depois apresenta, sucinto, o seu propósito: esclarecer o sentido dado a “humanismo”, tentativa de definição do “existencialismo”: “uma doutrina que torna a vida humana possível”. O conferencista, em seguida, com astúcia, se espanta com a moda da palavra “existencialismo” que “hoje”, explica, ”adquiriu tamanha amplitude de extensão que não significa mais absolutamente nada... Trata-se, na realidade, da doutrina menos escandalosa e mais austera, estritamente destinada a especialistas e filósofos”. Tendo assim delimitado as fronteiras, vedado a entrada do território a intrusos, críticos e ladrões de conceitos, e reassumindo seu lugar favorito – a filosofia –, inicia um verdadeiro curso filosófico, tão especializado e austero quanto prometeu, apesar da heterogeneidade da platéia, do mundanismo da afluência, ignorando solenemente a correnteza da maré, as cadeiras quebradas e os desmaios. Mantém-se na linha que se propôs no momento em que aceitou a conferência, confirma o pacto com o rigor de seu propósito e não cede uma só polegada. Os Schweitzer apreciariam esta retidão de conduta, esta desenvoltura com o sucesso, este espírito de conivência que não lhe deixa, nesta noite, cair em nenhum cabotinismo?
Os ouvintes comprimidos, entusiasmados, asfixiados, agüentam, pois, análises concisas e exatas das teorias de Jaspers, Gabriel Marcel, Heidegger, Kierkegaard, Kant e Auguste Comte; e também uma avalanche de referências a Voltaire, Diderot, Dostoiévski, Zola, Stendhal, Cocteau e Picasso. É uma apresentação bem-argumentada e interessante, magnífica e séria, que define conceitos já preparados no “Esclarecimento” que redigiu para o jornal Action e as críticas comunistas em dezembro do ano anterior; o conceito de “indivíduo”, de “responsabilidade”, “angústia”, “compromisso”, “isolamento”, e retoma certas fórmulas de impacto: “O existencialismo qualifica o homem pela ação que empreende”; “Diz que a única esperança que lhe resta é a ação e que a única coisa que lhe permite viver é o ato”; “Um homem se compromete com a vida, traça seus limites e, fora deles, não há nada”; “Estamos sozinhos, sem justificativas. É o que eu diria ao declarar que o homem está condenado a ser livre.” Acaba desistindo de certos conceitos incômodos ou mal-empregados, como “desespero” e “História”. Depois, feito mecânico ou garagista que termina de consertar um motor, afasta-se lentamente do objeto que acaba de desmontar e montar de novo, com toda a naturalidade de alguém que fez seu trabalho sem ser importunado em sua concentração cotidiana, e se felicita que o existencialismo seja “um otimismo e uma doutrina de ação”. De passagem, consegue realizar a façanha de inventar a definição do “humanismo existencialista” e, acima de tudo, de apresentar uma categoria de indivíduo com o qual todo mundo pode, então, se identificar: “o europeu de 1945”. Indivíduo que Sartre coloca no centro do mundo, com o poder de compreender “qualquer projeto, até de um chinês, de um índio ou de um negro”. Sujeitinho mágico, esse europeu de 1945 não vai demorar a ficar rico. O conferencista-mecânico se afasta, portanto, de sua máquina. A fase inicialmente prevista, que deveria, de saída, comportar uma discussão com os detratores presentes na sala, está cancelada por falta de lugar e de tempo. O conferencista vai embora.
Na manhã seguinte, por volta do meio-dia, Marc Beigbeder encontra-se com ele no café de Flore. A fim de pedir-lhe, para começar, desculpas pela lamentável desorganização da memorável noitada. E em seguida expor-lhe as dificuldades que doravante terá de enfrentar: havia prometido, lógico, uma remuneração pela conferência, mas o clube agora vai desembolsar uma quantia bastante vultosa, sem nenhuma reserva financeira: aluguel do auditório, anúncios nos jornais, prejuízos materiais, enfim, pois o diretor das Centrais fez uma relação das cadeiras quebradas... Beigbeder não tem tempo de acabar a lista das dívidas futuras: “Ora, quanto ao meu pagamento, claro que você não precisa se preocupar!”, sugere Sartre. “Aliás, pelo visto, foi um êxito!”, exclama, mostrando os artigos dos jornais matutinos, que estava lendo diante de sua xícara de café com croissants.”
In: Sartre: uma biografia. Annie Cohen-Solal; trad. Milton Persson. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2008, pp. 296-298.
* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com
* Por Luiz Carlos Monteiro
“Sucesso cultural sem precedentes. Empurrões, socos, cadeiras quebradas, mulheres desmaiadas. A bilheteria do saguão para a venda de ingressos fica irremediavelmente abalada, destruída, reduzida a escombros: ninguém consegue comprar coisa alguma. Beigbeder e Calmy se mostram sucessivamente contentes, preocupados, enlouquecidos, apavorados, constrangidos, arrasados, impotentes diante desse ímpeto catastrófico. Gaston Gallimard comparece, assim como Armand Salacrou e Adrienne Monnier. A multidão compacta, nervosa e exasperada pelo calor causticante de outubro, esperneia sem dó nem piedade, impedindo a entrada de qualquer pessoa. Só uma vez, entretanto, tem um pouco de consideração, quando surge o casal de artistas Jean-Louis Barrault e Madeleine Renaud: então, única exceção, os socos e ferimentos cedem lugar à deferência mundana. Sartre chega sozinho, de metrô, lá de Saint-Germain-des-Près. Quando dobra a esquina e enxerga a multidão tão densa e ameaçadora que se comprime diante do prédio das Centrais onde deve falar, diz consigo mesmo, curioso: “Ora, só podem ser comunistas se manifestando contra mim!” e até pensa em dar meia-volta. Segue em frente, porém, mais por consciência profissional que pela vontade real de enfrentar a maré humana que julga hostil e entra, sem convicção, no auditório. Mais de duzentos, trezentos ouvintes acotovelados; quantos conhecem o rosto dele? E logo Sartre, a última pessoa capaz de dizer: “Sou eu, Sartre, abram caminho, por favor, com licença”? Portanto, não diz nada e se deixa levar, para frente e para trás, da direita para a esquerda, ao ritmo de cotoveladas, batidas de cadeira e de bengala, e vai indo, arrastado por fluxos benéficos, aos poucos, brutalmente, até a parte da frente da platéia: o percurso, da porta da entrada ao estrado onde deve falar, dura mais de quinze minutos. Com mais de uma hora de atraso, numa sala superabafada, apinhada de gente superexaltada, o conferencista começa a falar.
Claro, sem consultar anotações e, na medida em que a promiscuidade dos ouvintes permite, de mãos no bolso. De saída, defende o existencialismo das críticas comunistas: “filosofia contemplativa, de luxo, burguesa”; das críticas católicas: “sublinhar a ignomínia humana, mostrar o lado hediondo, viscoso, de tudo”. Depois apresenta, sucinto, o seu propósito: esclarecer o sentido dado a “humanismo”, tentativa de definição do “existencialismo”: “uma doutrina que torna a vida humana possível”. O conferencista, em seguida, com astúcia, se espanta com a moda da palavra “existencialismo” que “hoje”, explica, ”adquiriu tamanha amplitude de extensão que não significa mais absolutamente nada... Trata-se, na realidade, da doutrina menos escandalosa e mais austera, estritamente destinada a especialistas e filósofos”. Tendo assim delimitado as fronteiras, vedado a entrada do território a intrusos, críticos e ladrões de conceitos, e reassumindo seu lugar favorito – a filosofia –, inicia um verdadeiro curso filosófico, tão especializado e austero quanto prometeu, apesar da heterogeneidade da platéia, do mundanismo da afluência, ignorando solenemente a correnteza da maré, as cadeiras quebradas e os desmaios. Mantém-se na linha que se propôs no momento em que aceitou a conferência, confirma o pacto com o rigor de seu propósito e não cede uma só polegada. Os Schweitzer apreciariam esta retidão de conduta, esta desenvoltura com o sucesso, este espírito de conivência que não lhe deixa, nesta noite, cair em nenhum cabotinismo?
Os ouvintes comprimidos, entusiasmados, asfixiados, agüentam, pois, análises concisas e exatas das teorias de Jaspers, Gabriel Marcel, Heidegger, Kierkegaard, Kant e Auguste Comte; e também uma avalanche de referências a Voltaire, Diderot, Dostoiévski, Zola, Stendhal, Cocteau e Picasso. É uma apresentação bem-argumentada e interessante, magnífica e séria, que define conceitos já preparados no “Esclarecimento” que redigiu para o jornal Action e as críticas comunistas em dezembro do ano anterior; o conceito de “indivíduo”, de “responsabilidade”, “angústia”, “compromisso”, “isolamento”, e retoma certas fórmulas de impacto: “O existencialismo qualifica o homem pela ação que empreende”; “Diz que a única esperança que lhe resta é a ação e que a única coisa que lhe permite viver é o ato”; “Um homem se compromete com a vida, traça seus limites e, fora deles, não há nada”; “Estamos sozinhos, sem justificativas. É o que eu diria ao declarar que o homem está condenado a ser livre.” Acaba desistindo de certos conceitos incômodos ou mal-empregados, como “desespero” e “História”. Depois, feito mecânico ou garagista que termina de consertar um motor, afasta-se lentamente do objeto que acaba de desmontar e montar de novo, com toda a naturalidade de alguém que fez seu trabalho sem ser importunado em sua concentração cotidiana, e se felicita que o existencialismo seja “um otimismo e uma doutrina de ação”. De passagem, consegue realizar a façanha de inventar a definição do “humanismo existencialista” e, acima de tudo, de apresentar uma categoria de indivíduo com o qual todo mundo pode, então, se identificar: “o europeu de 1945”. Indivíduo que Sartre coloca no centro do mundo, com o poder de compreender “qualquer projeto, até de um chinês, de um índio ou de um negro”. Sujeitinho mágico, esse europeu de 1945 não vai demorar a ficar rico. O conferencista-mecânico se afasta, portanto, de sua máquina. A fase inicialmente prevista, que deveria, de saída, comportar uma discussão com os detratores presentes na sala, está cancelada por falta de lugar e de tempo. O conferencista vai embora.
Na manhã seguinte, por volta do meio-dia, Marc Beigbeder encontra-se com ele no café de Flore. A fim de pedir-lhe, para começar, desculpas pela lamentável desorganização da memorável noitada. E em seguida expor-lhe as dificuldades que doravante terá de enfrentar: havia prometido, lógico, uma remuneração pela conferência, mas o clube agora vai desembolsar uma quantia bastante vultosa, sem nenhuma reserva financeira: aluguel do auditório, anúncios nos jornais, prejuízos materiais, enfim, pois o diretor das Centrais fez uma relação das cadeiras quebradas... Beigbeder não tem tempo de acabar a lista das dívidas futuras: “Ora, quanto ao meu pagamento, claro que você não precisa se preocupar!”, sugere Sartre. “Aliás, pelo visto, foi um êxito!”, exclama, mostrando os artigos dos jornais matutinos, que estava lendo diante de sua xícara de café com croissants.”
In: Sartre: uma biografia. Annie Cohen-Solal; trad. Milton Persson. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2008, pp. 296-298.
* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com
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