quarta-feira, 15 de junho de 2011







Demócrito é morto

* Por Marco Albertim

Delegados e comissários de polícia foram às ruas para comemorar o fim da ocupação nazista em Paris. Trajando ternos brancos, azuis, cinzentos; nenhuma preocupação em esconder o revólver na cintura. Nos bigodes fartos, o rigor do ofício; nas cinturas, a fiança da ordem mesmo em se tratando de gritos, da balbúrdia dos estudantes. O perfil de cada um, no entanto, não pôde esconder o estorvo de juntar no rosto, no corpo todo, o juízo desconfiado ao verdor dos moços.
O rio Capibaribe, na quietação das águas, refletiu o estro contido de diretores de escolas, professores da Faculdade de Direito, um reitor ou outro, os estudantes e, claro, a pugna inconfessa de homens afeitos a inquéritos policiais. Os inquéritos, com acusações a chãos e paredes no abrigo a conluios e rituais de xangô; a balbúrdia da grafia em disputa com os gritos das ruas, do trânsito. “Não acredito no apoio dos delegados” – Demócrito foi o primeiro a falar. Nos olhos, escondeu o brilho da suspeita, inda que não conseguindo disfarçar a semelhança das pupilas com os cabelos lisos, penteados para trás; os cabelos do estudante, louros, tinham um desbaste em cada um dos lados da testa, insinuando a calvície; sem qualquer diferença com os trejeitos do Recife dos poetas.
Em frente à Faculdade de Direito, na Praça da Independência, a multidão acomodou-se para ouvir os oradores. Odilon Coutinho, da União Estadual dos Estudantes, reiterou o compromisso de pôr fim aos resíduos de autoritarismo do Estado Novo. Demócrito Filho teve a fisionomia reverberada pelo sol do fim da tarde, inda que louçã. O discurso do escritor Gilberto Freyre foi interrompido por gritos. Ouviu-se um disparo de revólver. Do lado direito dos oradores, houve correria, gritos; mas ninguém deu conta de alguém gemendo de dor. “São provocadores de Getúlio Vargas” – adiantou Demócrito. Comissários e delegados, àquela altura, tinham sumido. A poltrona de cada chefe de delegacia, vazia, fora vista pelo interventor do estado, Etelvino Lins. Com a cidade ocupada por agitadores, e assustado com a inquietação do povo, nada fez para manter os delegados em suas salas; mas contrariou-se com a interrupção dos inquéritos; contrariou-se com convulsão no estômago porque, quando fora secretário da Segurança Pública, acompanhara a coleta de provas, deleitando-se com a espessura dos inquéritos.
A dois quarteirões da Faculdade de Direito, o delegado Silvestre, sentado em sua poltrona, deixara os inquéritos contra os comunistas em banho-maria. Enquanto as ruas e os jornais davam conta do recuo dos alemães, da demissão de integralistas na administração de governos estaduais, do federal, ocupou-se em intimar comerciantes alemães, italianos, tidos como apoiadores dos fascistas. Prendeu-os com poucas perguntas, nenhuma molestação. Os advogados, amigos de Silvestre, entregando-lhe habeas corpus. Ao fim, com o fim do fascismo, alemães, italianos e japoneses proviam advogados e o delegado com o fortuito provento. “Nada mau o fim da ditadura” – comentou Silvestre.
Etelvino Lins, sem conter o desgosto, baixou portaria proibindo qualquer restaurante de acolher festividade de estudantes ao candidato a deputado federal, Gilberto Freyre. Inda assim, num restaurante do Derby, ocorreu o almoço. No discurso de Demócrito Filho, a polícia interveio. Prisões, indiciamentos no Tribunal de Segurança Nacional.
Semana seguinte, oito estudantes reúnem-se num bar próximo ao Diario de Pernambuco. O dono, sem admitir saudades de Getúlio mas com familiaridades com o delegado Silvestre, interrompe a conversa. Demócrito, junto com a diretoria da União Estadual dos Estudantes, tramava o comício e a passeata a partir do prédio do jornal. Resulta na quebra do retrato de Getúlio Vargas, na parede do bar. O próprio Demócrito espatifou-o no chão.
A polícia vem. Nenhum estudante é preso porque se refugiam na redação do Diario de Pernambuco. Uma viatura com soldados da Aeronáutica afasta os policiais. Os estudantes seguem para casa.
O comício tem começo na escadaria da Faculdade de Direito. A marcha segue para a Pracinha do Diario. A polícia os acompanha. Na sacada do Diario, Demócrito de Souza Filho discursa. Logo começa o tiroteio, balas vindas não se sabe de onde. O estudante é atingido na testa. Morre no Pronto Socorro. O carvoeiro Manoel Elias do Santos, também baleado, não resiste.
O enterro de Demócrito, apoteótico, é seguido pela multidão. Professores da Faculdade de Direito, todos de beca, estudantes e populares.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

Nenhum comentário:

Postar um comentário