A hora da poesia
“Os bosques são belos, escuros, fundos.
Mas tenho promessas a guardar
e muitas milhas a andar
antes de poder dormir.
Sim, antes de poder dormir.”
* Por Rubem Alves
Há pessoas que já nascem na poesia. Assim foi com Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Adélia Prado, Emily Dickinson. Comigo não foi assim. Se a poesia já estava em mim ela estava dormindo, como a Bela Adormecida. Eu não sabia que ela estava lá. Foi preciso que um poema a acordasse.
Não estou bem certo. Mas a minha memória diz que foi um poema de Robert Frost, aquele que tem o título de Parando pelos Bosques numa Noite de Neve. É assim que ele termina:
“Os bosques são belos, escuros, fundos.
Mas tenho promessas a guardar
e muitas milhas a andar
antes de poder dormir.
Sim, antes de poder dormir.”
Há pessoas que já nascem na poesia. Assim foi com Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Adélia Prado, Emily Dickinson. Comigo não foi assim. Se a poesia já estava em mim ela estava dormindo, como a Bela Adormecida. Eu não sabia que ela estava lá. Foi preciso que um poema a acordasse.
Não estou bem certo. Mas a minha memória diz que foi um poema de Robert Frost, aquele que tem o título de Parando pelos Bosques numa Noite de Neve. É assim que ele termina:
“Os bosques são belos, escuros, fundos.
Mas tenho promessas a guardar
e muitas milhas a andar
antes de poder dormir.
Sim, antes de poder dormir.”
Eu lia esse poema para os meus alunos — o que fazia por puro prazer porque nunca tive competência para ser professor de literatura. A beleza pede para ser repetida. Ler uma vez, outra vez, bem devagar...
Há de se saber o tempo do poema. Poemas são como a música. Os compositores colocam no alto da primeira página a indicação do tempo, adágio, allegro, presto.
A beleza segue um ritmo certo. Talvez os poetas devessem fazer com seus poemas o que fazem os compositores com suas músicas.
Li num tempo vagaroso, duas vezes, voz baixa...
Foi quando ouvi um soluço no fundo da sala. Alguém chorava. Uma aluna. Perguntei a razão do choro. Ela me disse: “Esse poema, esse poema...” “Mas o que no poema a faz chorar?”, perguntei. Ela respondeu: “Não sei, não sei, só sei que ele me fez chorar”.
E aí fiquei pensando na presença que se escondia no bosque belo, escuro, fundo... A presença não dita que se esconde no bosque é a morte.
Note o “mas” que separa o primeiro verso do resto do poema. Por que o “mas”? Parece não haver razão. A menos que o poeta, ao olhar para a beleza escura que morava na fundura do bosque tenha ouvido uma voz a chamá-lo, a voz de uma presença invisível no meio das árvores.
Esse “mas” é um declinar do convite. “Não, agora não...” É certo que chegará um momento em que o convite não poderá ser recusado — mas agora não, ainda tenho promessas a cumprir e milhas a andar...
Não, poesia não é uma coisa, um texto, um poema impresso ou recitado. Muitos ouviram esse mesmo poema e nada lhes aconteceu. Corpo e alma ficaram inertes. Não tremeram.
Esse tremor pode ser tristeza, riso, beleza, silêncio. Emily Dickinson, a solitária poeta norte-americana, escrevendo a um amigo, revelou-lhe o que era, para ela, a marca da poesia. “Quando leio um texto e me sinto tão fria que nenhum fogo pode me aquecer, sei que aquilo é poesia. Se leio um texto e sinto como se o topo da minha cabeça me tivesse sido arrancado, sei que aquilo é poesia.” Ela não mencionou nenhuma propriedade formal como ritmo ou rima como o essencial da poesia. Ele mencionou algo que acontece com o corpo quando tocado pela palavra poética.
Poesia é música. Por isso é preciso lê-la em voz alta. Ouve-se sempre uma música nos interstícios das palavras do poeta. “... e a melodia que não havia se bem me lembro faz-me chorar”. Era assim que Fernando Pessoa sentia.
A poesia tem sua hora, como os pássaros. Os tempos do dia são vários. Num momento de vagabundagem em que seus olhos brincavam com os pássaros que voavam Albert Camus notou que pela manhã eles se parecem com crianças que brincam, voam em todas as direções. Mas ao pôr-do-sol eles se tornam graves e voam numa única direção. O pôr-de-sol é hora de voltar para casa.
Fantasio o rosto grave do poeta, atento às palavras que lhe vêem, ele não sabe de onde. Imaginei que era o crepúsculo. O dia havia chegado ao fim, hora quando não há nada mais a ser feito porque a noite vai logo cobrir o mundo com o seu veludo e o poeta, à semelhança do casal que Millet colocou na tela “Ângelus”, para e medita.
Medita sobre o quê? Medita sobre a vida. Medita sobre a morte.
Ao ler pela primeira vez o poema O Haver, do Vinícius, senti-me numa luz crepuscular. Mas logo me dei conta de que o “crepúsculo” seria a minha hora, a hora da minha vida e da minha morte. Eu sou um ser crepuscular. É ao pôr-do-sol que a poesia me toca mais fundo.
Mas o Vinícius não era um poeta do crepúsculo. Era um poeta da noite. Há as noites das noitadas, dos amigos, do uísque, do violão. E há a noite quando todos se foram, o silêncio. Noite madrugada. Noite solidão. Noite oração. Apenas o som de passos de alguém que caminha na rua. Era nas madrugadas que a poesia lhe vinha mais funda, metafísica.
Sob a luz do crepúsculo eu medito. Releio o poema de Frost:
Há de se saber o tempo do poema. Poemas são como a música. Os compositores colocam no alto da primeira página a indicação do tempo, adágio, allegro, presto.
A beleza segue um ritmo certo. Talvez os poetas devessem fazer com seus poemas o que fazem os compositores com suas músicas.
Li num tempo vagaroso, duas vezes, voz baixa...
Foi quando ouvi um soluço no fundo da sala. Alguém chorava. Uma aluna. Perguntei a razão do choro. Ela me disse: “Esse poema, esse poema...” “Mas o que no poema a faz chorar?”, perguntei. Ela respondeu: “Não sei, não sei, só sei que ele me fez chorar”.
E aí fiquei pensando na presença que se escondia no bosque belo, escuro, fundo... A presença não dita que se esconde no bosque é a morte.
Note o “mas” que separa o primeiro verso do resto do poema. Por que o “mas”? Parece não haver razão. A menos que o poeta, ao olhar para a beleza escura que morava na fundura do bosque tenha ouvido uma voz a chamá-lo, a voz de uma presença invisível no meio das árvores.
Esse “mas” é um declinar do convite. “Não, agora não...” É certo que chegará um momento em que o convite não poderá ser recusado — mas agora não, ainda tenho promessas a cumprir e milhas a andar...
Não, poesia não é uma coisa, um texto, um poema impresso ou recitado. Muitos ouviram esse mesmo poema e nada lhes aconteceu. Corpo e alma ficaram inertes. Não tremeram.
Esse tremor pode ser tristeza, riso, beleza, silêncio. Emily Dickinson, a solitária poeta norte-americana, escrevendo a um amigo, revelou-lhe o que era, para ela, a marca da poesia. “Quando leio um texto e me sinto tão fria que nenhum fogo pode me aquecer, sei que aquilo é poesia. Se leio um texto e sinto como se o topo da minha cabeça me tivesse sido arrancado, sei que aquilo é poesia.” Ela não mencionou nenhuma propriedade formal como ritmo ou rima como o essencial da poesia. Ele mencionou algo que acontece com o corpo quando tocado pela palavra poética.
Poesia é música. Por isso é preciso lê-la em voz alta. Ouve-se sempre uma música nos interstícios das palavras do poeta. “... e a melodia que não havia se bem me lembro faz-me chorar”. Era assim que Fernando Pessoa sentia.
A poesia tem sua hora, como os pássaros. Os tempos do dia são vários. Num momento de vagabundagem em que seus olhos brincavam com os pássaros que voavam Albert Camus notou que pela manhã eles se parecem com crianças que brincam, voam em todas as direções. Mas ao pôr-do-sol eles se tornam graves e voam numa única direção. O pôr-de-sol é hora de voltar para casa.
Fantasio o rosto grave do poeta, atento às palavras que lhe vêem, ele não sabe de onde. Imaginei que era o crepúsculo. O dia havia chegado ao fim, hora quando não há nada mais a ser feito porque a noite vai logo cobrir o mundo com o seu veludo e o poeta, à semelhança do casal que Millet colocou na tela “Ângelus”, para e medita.
Medita sobre o quê? Medita sobre a vida. Medita sobre a morte.
Ao ler pela primeira vez o poema O Haver, do Vinícius, senti-me numa luz crepuscular. Mas logo me dei conta de que o “crepúsculo” seria a minha hora, a hora da minha vida e da minha morte. Eu sou um ser crepuscular. É ao pôr-do-sol que a poesia me toca mais fundo.
Mas o Vinícius não era um poeta do crepúsculo. Era um poeta da noite. Há as noites das noitadas, dos amigos, do uísque, do violão. E há a noite quando todos se foram, o silêncio. Noite madrugada. Noite solidão. Noite oração. Apenas o som de passos de alguém que caminha na rua. Era nas madrugadas que a poesia lhe vinha mais funda, metafísica.
Sob a luz do crepúsculo eu medito. Releio o poema de Frost:
“Os bosques são belos, escuros, fundos.
Mas tenho promessas a guardar
e muitas milhas a andar
antes de poder dormir.
Sim, antes de poder dormir.”
Vejo o bosque escuro. Ouço uma sedutora voz que me chama, convidando-me ao cobertor aconchegante da noite. Aí eu digo “Não”! Tenho ainda promessas a cumprir — promessas que fiz a mim mesmo, livros a escrever, que é o jeito que tenho de espalhar-me por muitos para não desaparecer... E muitas milhas a andar porque há muitas coisas a amar...
Aí eu sinto a mesma coisa que sentiu a minha aluna na sala de aula. Tenho vontade de chorar...
* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Aí eu sinto a mesma coisa que sentiu a minha aluna na sala de aula. Tenho vontade de chorar...
* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Aqui do meu cantinho, solitária
ResponderExcluiraplaudo esse belo texto com lágrimas
nos olhos.
Eu não fiquei tanto assim...
ResponderExcluirMas vou reler este belo texto.
Parabéns, Rubem Alves!