quarta-feira, 29 de junho de 2011



Beijo salvador

O beijo é uma das mais íntimas, universais e maiores manifestações de afeto que existem. Esse ato de carinho e de desejo (quando o caso), compreensivelmente, é dos mais explorados por escritores de todas as partes e de todos os tempos. É um daqueles temas literários que nunca envelhecem e nem se esgotam, ao contrário de tantos outros, que são abandonados em determinados momentos por falta de novidades.

Uma das melhores definições desse ato, exclusivamente humano, é a que encontrei na enciclopédia eletrônica Wikipédia, que consulto amiúde em minhas pesquisas diárias. Essa preciosa fonte da internet define-o da seguinte maneira: “Um beijo (do latim basium) é o toque dos lábios com qualquer coisa, normalmente uma pessoa. Na cultura ocidental é considerado um gesto de afeição. Entre amigos, é utilizado como cumprimento ou despedida. O beijo nos lábios de outra pessoa é um símbolo de afeição romântica ou de desejo sexual – neste último caso, o beijo pode ser também noutras partes do corpo, ou ainda o chamado beijo de língua, em que as pessoas que se beijam mantêm a boca aberta enquanto trocam carícias com a língua”.

Como se vê, esse ato tão íntimo tem variadas conotações, todas relacionadas com apreço, afeto, desejo e paixão. Pode, contudo, ser considerado, também, como manifestação de traição, ou, pelo menos, como prelúdio dela. O que?! Vocês estranharam essa afirmação?! Então me respondam: o que foi o beijo de Judas, em Jesus Cristo, se não a hipócrita manifestação de um traidor? Quantos relacionamentos que não prosperam (muitos terminam até em tragédias) em decorrência da traição, não começam com um beijo? São incontáveis. Como se vê, tudo, ou quase tudo, é relativo.

Vinícius de Moraes, na crônica “Namorados públicos” (que consta do livro “Para viver um grande amor”, Companhia das Letras, 1991), defende o direito das pessoas que se amam de se beijarem em qualquer hora e lugar, no momento que quiserem e bem entenderem, sem vetos e nem restrições de terceiros. Escreve: “Nada há de mal no beijo dos namorados, como no amor dos pássaros. Deixai-os nos seus parques, nas suas ruas escuras, nos seus portões de casa. Deixai-os namorar...”.

Concordo, óbvio, com o poetinha. O que tem que ser coibida é a violência irracional e homicida. É o ódio, é a corrupção, é o espírito mesquinho de vingança, é a exploração de um ser humano por outro e vai por aí afora. Coibir beijos é mera exibição de falso pudor, de falso moralismo, de hipocrisia sem tamanho. É meter o bedelho, indevidamente, na vida alheia.

O francês Jean Rostand tem uma definição pitoresca e poética dessa deliciosa manifestação de afeto. Escreveu que “Um beijo é um segredo que se diz na boca e não no ouvido”. Claro, referia-se, no caso, ao que é partilhado pelos que se amam e não ao ósculo inocente dos amigos e nem aos meramente formais, que nem sempre significam afeição, e que, às vezes, simbolizam até o contrário, como o já citado beijo de Judas em Jesus Cristo.

Esse gesto caracteristicamente humano tem tantas acepções e significados, que se pode escrever não somente uma crônica, ou um poema, ou longo e alentado ensaio, ou até mesmo um livro, mas todo um tratado, de diversos tomos, a seu propósito, sem que, provavelmente, se esgote. Um gesto aparentemente tão simples, que tem tantos e tamanhos significados, não deixa de ser assombroso.

Dia desses, porém, li, no noticiário da imprensa, um caso em que fica clara nova e nobilíssima função para esse ato tão comum, mas de tamanha relevância para praticamente todas as pessoas. Refiro-me ao “beijo salvador”. Isso mesmo, a história dá conta da salvação de uma vida – mas em sentido literal e não no figurado – em decorrência dessa manifestação de afeto. E, no caso, tanto o agente ativo, ou seja, quem beijou, quanto o passivo, o beijado, nunca haviam sequer se visto. Eram rigorosamente desconhecidos um para o outro.

Peço a sua licença, caro leitor, para reproduzir, na íntegra, a tal notícia, que me suscitou estas descompromissadas reflexões: Diz: “Os moradores da cidade de Shenzhen, na China, viram um ato heróico e muito bonito no último dia 20 (de junho de 2011). A chinesa Liu Wenxiu, de 19 anos, conseguiu salvar um menino de 16 anos, que queria se jogar de uma passarela, com um beijo na boca. Liu estava passando pelo local quando se deparou com o drama do adolescente, que estava pendurado na passarela com uma faca na mão. Ela conseguiu se aproximar dizendo à polícia que era namorada dele e a razão pela qual ele queria se matar”.

O despacho da agência de notícias France Press acrescenta: “De acordo com a imprensa local, o menino perdeu a mãe quando criança e a madrasta não o tratava bem. Além disso, a mulher havia fugido com todo o dinheiro do pai, deixando os dois em uma situação complicada. Liu começou a conversar com o menino e mostrou a ele as cicatrizes de sua tentativa de suicídio. ‘A única maneira de salvar o garoto era com o amor’, disse”.

Como seria bom se pudéssemos ler (e transmitir) mais notícias com este teor, de calor humano, de solidariedade e de compreensão e, sobretudo, de desprendimento!!! Certamente, a realidade do mundo atual seria muito diferente desse desfile interminável de patifarias e de horrores, que caracteriza o nosso cotidiano, especialmente nestes tempos de globalização.

O despacho em questão conclui: “Durante a conversa, a chinesa beijou o menino e a polícia se aproximou para fazer o resgate. Após o episódio, o menino foi levado para a delegacia e só explicou o ocorrido na presença da falsa namorada”.

Mas... seria falsa mesmo? O termo utilizado aqui, pelo repórter, seria o mais adequado ao caso? O que é falsidade? O que é o namoro? O que o caracteriza? Quando começa? Por que?

Prefiro a constatação de Paul Valéry, que escreveu: “Tudo é mágico nas relações entre homem e mulher”. E não é? Bendita magia que assegura a continuidade e perpetuação da espécie e, portanto, da vida, aqui simbolizada pelo beijo salvador de Liu Wenxiu no assustado, descontrolado e despido de esperanças garoto chinês de 16 anos, que tentava, deliberadamente, deixar de viver antes mesmo, sequer, de fazê-lo plenamente!!!

Boa leitura.

O Editor.




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Um comentário:

  1. Hoje, o bem emociona mais do que mal, que banalizou-se. Estamos tão sedentos de boas coisas, que as atitudes de desprendimento e solidariedade faz a emoção brotar.

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