sábado, 25 de junho de 2011




Memória, discurso e amizades de Cyl Galindo

* Por Luiz Carlos Monteiro

O relato da convivência entre escritores não é uma tarefa fácil de ser traduzida em palavras, pelo que envolve de exposição do outro. Pode levar a julgamentos equivocados, que se geram a partir de interpretações confusas, falseadas ou desviantes. Entretanto, quando o relacionamento foi estabelecido em bases sólidas de amizade, franqueza e lealdade, o escritor dispõe de uma cota relativa de liberdade para falar sobre aqueles ou aquelas que mais o marcaram. O ciclo das amizades desdobra-se e é elastecido e referendado por outros testemunhos de época, de amigos comuns ao autor e ao escritor ou escritores lembrados.
Cyl Gallindo teve o privilégio de privar da amizade do poeta pernambucano Manuel Bandeira, do final dos anos 50 até a morte do autor de Estrela da manhã, em 1968. Na condição de estudante em terras cariocas, conheceu Bandeira numa circunstância inusitada: fora escalado pelo presidente da Casa do Estudante do Brasil Alfredo Viana, juntamente com dois colegas, para fazerem a abordagem do poeta em sua casa. A finalidade da visita era coletar a assinatura de Bandeira para um documento referente a uma homenagem à atriz Cacilda Becker. Terminado o encontro, Cyl é requisitado pelo poeta a voltar novamente a sua casa. Fica-se sabendo que Bandeira reivindicou, de início, a companhia do jovem Gallindo principalmente por causa do sotaque pernambucano, e depois para acompanhá-lo às quintas-feiras à Academia Brasileira de Letras. Mesmo vivendo no Rio de Janeiro, tinha amigos no Recife, como Gilberto Freyre e o casal Ascenso Ferreira/Stella Griz, servindo de articulador de novas amizades para Gallindo. O viés polêmico do ensaio fica por conta da aposição de um busto de Bandeira no Recife, que Gallindo descreve com detalhes num artigo publicado à época.
Outra amizade retratada é aquela encetada com o escritor e folclorista angolano Óscar Ribas, vindo a lume o que os uniu e identificou. Ribas acabou por exercer forte influência sobre Gallindo relativamente ao papel da raça negra na sociedade brasileira: “Foi lendo Óscar Ribas, a escrever, cantar, gemer, sorrir e chorar nas páginas dos seus livros e cartas datadas desde 1965, que alcancei a verdadeira dimensão da minha afinidade e consaguinidade com a raça negra”. Quem o conhecia mais de perto era o escritor Luis da Câmara Cascudo, que por sua vez tornou-se também amigo de Gallindo. Oscar Ribas faleceu em 2004, aos 94 anos, ainda lúcido e trabalhando com literatura. O texto de Gallindo apareceu em Portugal, em livro organizado por outro angolano, o escritor e jornalista Gabriel Baguet Jr.
A cidade onde Gallindo nasceu, Buíque, no Agreste pernambucano, guarda a peculiaridade de o escritor Graciliano Ramos ter vivido nela parte da sua infância. O alagoano que mudou a história da literatura brasileira com sua forma seca, enxuta e rigorosa de trabalhar as palavras, absorveu toda uma vivência rural que alguns lugares nordestinos lhe legaram. Entre eles, Palmeira dos Índios e Quebrangulo, esta última sua cidade de origem, além de Buíque, onde Sebastião Ramos, o pai de Graciliano, adquiriu uma fazenda e para lá se transferiu com toda a família. O autor volta às raízes, por ocasião da inauguração da Biblioteca Municipal Graciliano Ramos. Chama a atenção para o fato de Infância e outros livros fundamentais de Graciliano, provavelmente terem sido locados em solo buiquense. Segundo conta, instigou o holandês August Willemsen, tradutor também de Euclides da Cunha, a verter Infância para o neerlandês, o que terminou acontecendo, ao constatar a exposição do volume em livrarias holandesas, onde esteve recentemente.
Em 1994, Gallindo escreveu o prefácio para a 2ª edição do livro Canudos e outros temas, publicado pelo Senado Federal, contendo textos de Euclides da Cunha. O texto é contundente, e tem como característica principal certa atualização do pensamento euclidiano, permanecendo também nas outras edições. Faz uma defesa veemente do Nordeste brasileiro, do seu povo e da sua cultura, das formas desabonadoras como a região tem sido encarada por sucessivos governos. O histórico da publicação é apresentado em depoimentos de várias personalidades de pesquisadores e escritores, brasileiros e internacionais.
A edição da Panorâmica do conto em Pernambuco, organizada por ele e Antônio Campos, que também participam com textos de apresentação e contos, resultou da parceria entre o Instituto Maximiano Campos, de Pernambuco e a Escrituras Editora, de São Paulo. Lançado durante a Fliporto 2007, em Porto de Galinhas, o volume contém, substancialmente, 896 páginas e contempla 114 autores. Dentre os antologiados encontram-se escritores consagrados como os poetas Ascenso Ferreira, Joaquim Cardozo e Mauro Mota, os ficcionistas Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Hermilo Borba Filho, José Condé, Maximiano Campos, Osman Lins, Gilberto Freyre, Luis Jardim, Nelson Rodrigues. Esta apresentação é republicada oportunamente, pois o livro será relançado durante a próxima Fliporto, em novembro deste ano, em edição reformulada e com biografias atualizadas. São apresentados os critérios que nortearam a organização da antologia, os processos de seleção e escolha, os percalços enfrentados e os percursos utilizados para a execução do livro.
O memorialismo autobiográfico deriva-se aqui de situações coloquiais e vivências cotidianas. Em certos instantes, um simples encontro pode vir a transformar-se em motivações de reflexão e análise sobre assuntos variados. De um modo geral, afloram numerosas conversas sobre a vida e o que vai pelo mundo, sem pretensões de eruditismo literário ou filosófico, notadamente nos encontros com Bandeira. Os textos se inter-relacionam através das figuras que os compõem, que aparecem às vezes em mais de um deles, sem que o leitor espere. E ainda nos que não se referem propriamente às amizades do autor, o tom é discursivo, em primeira pessoa, privilegiando mais o coloquial do que a densidade reflexiva, a exemplo de “Em defesa da língua portuguesa”, conferência pronunciada em 2000 na Academia Recifense de Letras, marcando posição contra a descaracterização do vernáculo, sua invasão por termos de outras línguas, que sugerem um espírito de neocolonização nem sempre questionado ou refreado. Ao lado dos recortes da memória, do coloquialismo e das recordações gratas, convivem em sintonia o discurso de ocasião e os textos de prefácio. Todos, ao fim, permeados de informações preciosas e posicionamentos definidos, compostos por eventos da vida literária, de algo da história da literatura e da preservação da língua portuguesa como objetos demarcados e inesquiváveis.

In: Gallindo, Cyl. A intimidade da palavra . Recife: Bagaço, 2010.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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