Galileus não cabem na cadeia
* Por Marco Albertim
O delegado não se dera conta da quantidade desconforme de intimações. Na delegacia, pequena e numa rua estreita, os camponeses se misturaram. Muitos com a faca na cintura, no costume das reuniões na Liga; lá, não eram forçados a entrar desarmados, inda que houvesse um bate-boca ou outro, mirando só a cisma dos jagunços no engenho. Os jagunços, de tão conhecidos, tocaiados pelos olhos dos mais de mil moradores do Engenho Galileia; não se fundiam nos urdumes dos posseiros, mas por serem da terra, e da mesma maniva provarem, galileus também eram.
O delegado, certo de que os caibros velhos da casa, bem como as telhas cobertas de lodo seco, não desabariam sobre sua cabeça, gritou:
- Diabo de tanta zoada! Isto aqui não é uma casa de farinha... Faz silêncio todo mundo! Vocês tão aqui por desacato à autoridade!?
Fez-se um silêncio aturdido. Em cada rosto magro, do pretume de terra brocada, os olhos se buliam de estranheza. Oscar Beltrão instruíra o delegado sobre como tratar a rafameia dos engenhos; já gritara vez ou outra, mas sua voz de ganso rouco se engrupira pelo vento entre as folhas do mandiocal. Já o delegado, com o rosto de rusgas entre o basto bigode, fundiu-se no rogo insano ao mofo das paredes.
O comissário, até ali em pé, ao lado do chefe, saiu de sua funérea autoridade para ordenar que os camponeses fizessem fila do lado de fora da casa. Na rua de seixos soltos e terra farinhosa, a delegacia era a única casa com calçada de cimento; como um porto de beirada estropiada no apoio a barcos velhos.
- O dono do engenho deu queixa. Diz que o senhor é quem joga os homens contra ele...
Sem tirar a mira dos olhos de Zé Hortência, o delegado mede a distância que há entre os dois, sobranceia-se no cáqui lustroso de sua camisa de mangas compridas. O posseiro, com mangas compridas nos braços, deixando cair fios do algodão solto.
- Eu não tinha dinheiro para pagar o foro. Fui à Liga da Iputinga e o presidente achou certo se juntar todo mundo pra comprar o Engenho Galileia. É por isso que seu Beltrão tá dizendo que eu sou chefe. Sou chefe de nada não.
- Comigo o senhor não conversa mais nada. Vai conversar agora com o promotor e com o juiz de Vitória.
A pachorra da manhã, da tarde, fora sacudida pelos foreiros do Galileia. Mas o delegado não teve a paciência de ouvir todos, um por um, sorvendo o fedor de homens e mulheres com saliva gotejando em cada canto das bocas.
- Vão pra casa e nada de ajuntamento por aí, na praça. Aguardem nova intimação!
Oscar Beltrão, que a tudo assistira sem abrir a boca, também engoliu sua gosma de cuspe seco. Não se sentiu satisfeito com o fim do dia, mas persuadira-se de que o delegado fizera uma triagem, quase um corretivo em posseiros desacostumados ao senhorio.
Fim de semana seguinte, Zé dos Prazeres, no engenho, convence-os, sobretudo a Zé Hortência, de que o mais seguro é procurar apoio nos deputados da Assembleia Legislativa. Não demora e Francisco Julião, socialista e deputado, redige os estatutos da nova Liga Camponesa. Registrados os estatutos em cartório do Recife, há foguetório. Julião comparece à festa no Engenho Galileia.
A duzentos metros dali, coberto pela moita de um sapotizeiro médio que o mandiocal poupara, Oscar Beltrão espreita; tem nos olhos uma paciência limitada, em nada parecida com a das jararacas caçadoras do engenho.
O delegado não enviou aos posseiros novas intimações; satisfez-se com a denúncia do promotor, as oitivas do juiz. Não houve como prender tanto camponês numa cadeia onde mal se espremia meia dúzia de ladrões de galinha.
Em l959, cinco anos depois de anunciado o propósito de Zé Hortência, a Assembleia Legislativa aprova a desapropriação do Engenho Galileia. Cid Sampaio, governador e usineiro, sanciona. Mas a propriedade não fica com os foreiros. Cabe à Companhia de Revenda e Colonização dizer como e a quem as terras devem ser entregues para o plantio.
Em frente à casa de farinha, nova reunião. Francisco Julião ouve, convencendo-se de que a reforma agrária deve ser feita na lei ou na marra, o grito de Zé dos Prazeres:
- Reforma agrária!
Sentado a um canto, calado, Zezé da Galileia tem serenidade nos olhos; tem 70 anos e é líder. Não terá tanta sorte na distribuição das terras.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
O delegado não se dera conta da quantidade desconforme de intimações. Na delegacia, pequena e numa rua estreita, os camponeses se misturaram. Muitos com a faca na cintura, no costume das reuniões na Liga; lá, não eram forçados a entrar desarmados, inda que houvesse um bate-boca ou outro, mirando só a cisma dos jagunços no engenho. Os jagunços, de tão conhecidos, tocaiados pelos olhos dos mais de mil moradores do Engenho Galileia; não se fundiam nos urdumes dos posseiros, mas por serem da terra, e da mesma maniva provarem, galileus também eram.
O delegado, certo de que os caibros velhos da casa, bem como as telhas cobertas de lodo seco, não desabariam sobre sua cabeça, gritou:
- Diabo de tanta zoada! Isto aqui não é uma casa de farinha... Faz silêncio todo mundo! Vocês tão aqui por desacato à autoridade!?
Fez-se um silêncio aturdido. Em cada rosto magro, do pretume de terra brocada, os olhos se buliam de estranheza. Oscar Beltrão instruíra o delegado sobre como tratar a rafameia dos engenhos; já gritara vez ou outra, mas sua voz de ganso rouco se engrupira pelo vento entre as folhas do mandiocal. Já o delegado, com o rosto de rusgas entre o basto bigode, fundiu-se no rogo insano ao mofo das paredes.
O comissário, até ali em pé, ao lado do chefe, saiu de sua funérea autoridade para ordenar que os camponeses fizessem fila do lado de fora da casa. Na rua de seixos soltos e terra farinhosa, a delegacia era a única casa com calçada de cimento; como um porto de beirada estropiada no apoio a barcos velhos.
- O dono do engenho deu queixa. Diz que o senhor é quem joga os homens contra ele...
Sem tirar a mira dos olhos de Zé Hortência, o delegado mede a distância que há entre os dois, sobranceia-se no cáqui lustroso de sua camisa de mangas compridas. O posseiro, com mangas compridas nos braços, deixando cair fios do algodão solto.
- Eu não tinha dinheiro para pagar o foro. Fui à Liga da Iputinga e o presidente achou certo se juntar todo mundo pra comprar o Engenho Galileia. É por isso que seu Beltrão tá dizendo que eu sou chefe. Sou chefe de nada não.
- Comigo o senhor não conversa mais nada. Vai conversar agora com o promotor e com o juiz de Vitória.
A pachorra da manhã, da tarde, fora sacudida pelos foreiros do Galileia. Mas o delegado não teve a paciência de ouvir todos, um por um, sorvendo o fedor de homens e mulheres com saliva gotejando em cada canto das bocas.
- Vão pra casa e nada de ajuntamento por aí, na praça. Aguardem nova intimação!
Oscar Beltrão, que a tudo assistira sem abrir a boca, também engoliu sua gosma de cuspe seco. Não se sentiu satisfeito com o fim do dia, mas persuadira-se de que o delegado fizera uma triagem, quase um corretivo em posseiros desacostumados ao senhorio.
Fim de semana seguinte, Zé dos Prazeres, no engenho, convence-os, sobretudo a Zé Hortência, de que o mais seguro é procurar apoio nos deputados da Assembleia Legislativa. Não demora e Francisco Julião, socialista e deputado, redige os estatutos da nova Liga Camponesa. Registrados os estatutos em cartório do Recife, há foguetório. Julião comparece à festa no Engenho Galileia.
A duzentos metros dali, coberto pela moita de um sapotizeiro médio que o mandiocal poupara, Oscar Beltrão espreita; tem nos olhos uma paciência limitada, em nada parecida com a das jararacas caçadoras do engenho.
O delegado não enviou aos posseiros novas intimações; satisfez-se com a denúncia do promotor, as oitivas do juiz. Não houve como prender tanto camponês numa cadeia onde mal se espremia meia dúzia de ladrões de galinha.
Em l959, cinco anos depois de anunciado o propósito de Zé Hortência, a Assembleia Legislativa aprova a desapropriação do Engenho Galileia. Cid Sampaio, governador e usineiro, sanciona. Mas a propriedade não fica com os foreiros. Cabe à Companhia de Revenda e Colonização dizer como e a quem as terras devem ser entregues para o plantio.
Em frente à casa de farinha, nova reunião. Francisco Julião ouve, convencendo-se de que a reforma agrária deve ser feita na lei ou na marra, o grito de Zé dos Prazeres:
- Reforma agrária!
Sentado a um canto, calado, Zezé da Galileia tem serenidade nos olhos; tem 70 anos e é líder. Não terá tanta sorte na distribuição das terras.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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