De pais e filhos
* Por Rubem Costa
* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
* Por Rubem Costa
Mãe! Conceito plantado na consciência do mundo é tema eternizado nas falas de emoção e sentimentos. Caminha no universo dos seres impulsionada pela imperativa expansão de afetos que vem de misteriosas lembranças forradas de calor e proteção que começam aconchegantes no nicho escuro de um ventre.
Esse poder imanente do amor materno, quem o traduz, com rara felicidade, é Roberto do Valle, escritor e jornalista, quando recorda que “as mães guardam segredos imemoriais, a gente sequer os vislumbra. Quando muito se percebe sinal rapidíssimo, em certos momentos, oscilando no brilho dos olhos delas, que logo nos escapa: fugaz brincadeira dê natureza que quer intocável esse grave mistério: o mistério do ser que gera o ser. Necessária, generosa, fecunda. Dona da perpetuação do gênero. É mais que um conceito: é uma vivência”.
Não importa que o mesmo Roberto do Valle, em contrapartida, filosofe a seguir, lembrando que, “no contexto, ela assume, também, outros papéis; não é possível ser mãe o tempo todo”. Por isso, diz ele, “acontecem mães também absurdas ou frívolas, também banais, ou azedas, ou ásperas, tocadas pelos vírus do circuito”.
Não importa que assim diga, porque, ao final, imperativamente, adverte: “Mas seu valor essencial permanece, mesmo num mundo que pulveriza valores”. É uma visão justa que resguarda essa fonte inesgotável que vem da origem do mundo e se projeta para as linhas do infinito. Em sua unicidade é múltipla. Tem começo, mas não tem fim.
E o amor de filho? Não. O amor do filho é sazonal. Emerge na infância com a força da ligação umbilical que o manteve atado e alimentado no conforto do útero materno. Respira fundo o sopro da proteção até que, na juventude, ave a se emplumar, começa, gaivota, a ensaiar o vôo livre que fará entendível o brocardo popular de que uma mãe é para dez filhos, mas dez filhos não são para uma mãe. Não é um mal. É a lei da vida — como a Bíblia ensina. É o ser que abandona pai e mãe para multiplicar-se. E renovar-se, transportando para a descendência a mesma forma de afeto e de amor que antes recebera dos ancestrais. Mas no fundo, na aparência irresponsável do moço, continua dormente o afeto que, atravessando as intempéries da existência, um dia de novo rebenta no peito do homem adulto, trazendo do fundo da memória a ternura de uma saga, a história de uma criança acalentada ao morno colo da mãe Ninguém, como Mauro Sampaio, foi capaz de traduzir tão bem esse retomo do coração maduro ao tempo menino no regaço da mãe:
“Rasquei teu ventre!/ (Fui tropeço no teu caminho)/ Tirei de tua necessidade!/ (Fui apreensão na tua mesa) Dividi tuas noites ao meio!/ (Fui insônia de tuas noites)/ Me envolveste com tuas canseiras!/ (Fui canseira de teus dias)/ Tuas lágrimas me carregaram!/ (Fui teu gemido, não teu lamento)/ Tranquei as noites de teus amores!; (Fui tua noite de descompasso)/ Neguei teu sangue, ó minha mãe! — Que mais eu posso?”
É assim que o poeta sente, é assim que o poeta fala, é assim que o poeta vê o que sentimos no íntimo de nós sem saber como falar. O amor, em síntese, é o mesmo. O da mãe é transbordante, um constante repartir, como diz ainda, repetindo, Mauro Sampaio, figura integrante de uma prole de doze irmãos:
“Tuas mãos bem retratam tua vida!/Doze filhos, doze apreensões, /Doze roupas para teu tanque,/ Doze bocas para tua mesa, /Doze insônias para tuas noites de doze sobressaltos”
Sólon Borges dos Reis desvenda essa grandeza:
“O amor é mais generoso que a vitória/ porque não se alimenta da derrota/ nem está condicionado./ Absoluto, independe do contraste./ Só o amor prescinde do contrário”
O amor do filho, entanto, é mais egoísta, porque deixa para traz a lembrança e caminha para frente de olhos fitos no futuro, na busca de sua própria vida a se projetar na vida dos que dele advirão.
Depois a cena se repete. O filho se toma pai. A filha se torna mãe, gerando anseios e multiplicando sonhos. Até que um dia, — ah, um dia! — sem que saibamos ou percebamos, brota no coração, multiplicando-se na saudade, o amor aos pais que ficou esquecido. É nesse instante que, insensivelmente, o homem redescobre, escondido nas dobras de seu caminho, o benquerer que, hibernando, transitava no tempo. É o mesmo Mauro Sampaio que assim traduz o arrependimento da quase indiferença dos filhos:
“Hoje, pai, quero sentir que não morreste./ Desejo estar contigo, simplesmente,/ Debruçar-me sobre tuas mãos /E te pedir a benção/ Contemplar-te avidamente!/ Medir as tuas rugas./ E procurar as mais tristes./ Sei que nelas me encontrarei”.
Esse é o círculo vicioso da existência que na voz dos poetas fala da essência do ser e reproduz, a cada instante, na eternidade do homem o sopro divino da Criação.
Nas gerações que se sucedem, entanto, os que chegam mal percebem que somos sempre a imagem retrovertida dos que ficaram atrás, numa soma de palpitações e afetos que se abafam no silêncio de nossa própria indiferença.
Esse poder imanente do amor materno, quem o traduz, com rara felicidade, é Roberto do Valle, escritor e jornalista, quando recorda que “as mães guardam segredos imemoriais, a gente sequer os vislumbra. Quando muito se percebe sinal rapidíssimo, em certos momentos, oscilando no brilho dos olhos delas, que logo nos escapa: fugaz brincadeira dê natureza que quer intocável esse grave mistério: o mistério do ser que gera o ser. Necessária, generosa, fecunda. Dona da perpetuação do gênero. É mais que um conceito: é uma vivência”.
Não importa que o mesmo Roberto do Valle, em contrapartida, filosofe a seguir, lembrando que, “no contexto, ela assume, também, outros papéis; não é possível ser mãe o tempo todo”. Por isso, diz ele, “acontecem mães também absurdas ou frívolas, também banais, ou azedas, ou ásperas, tocadas pelos vírus do circuito”.
Não importa que assim diga, porque, ao final, imperativamente, adverte: “Mas seu valor essencial permanece, mesmo num mundo que pulveriza valores”. É uma visão justa que resguarda essa fonte inesgotável que vem da origem do mundo e se projeta para as linhas do infinito. Em sua unicidade é múltipla. Tem começo, mas não tem fim.
E o amor de filho? Não. O amor do filho é sazonal. Emerge na infância com a força da ligação umbilical que o manteve atado e alimentado no conforto do útero materno. Respira fundo o sopro da proteção até que, na juventude, ave a se emplumar, começa, gaivota, a ensaiar o vôo livre que fará entendível o brocardo popular de que uma mãe é para dez filhos, mas dez filhos não são para uma mãe. Não é um mal. É a lei da vida — como a Bíblia ensina. É o ser que abandona pai e mãe para multiplicar-se. E renovar-se, transportando para a descendência a mesma forma de afeto e de amor que antes recebera dos ancestrais. Mas no fundo, na aparência irresponsável do moço, continua dormente o afeto que, atravessando as intempéries da existência, um dia de novo rebenta no peito do homem adulto, trazendo do fundo da memória a ternura de uma saga, a história de uma criança acalentada ao morno colo da mãe Ninguém, como Mauro Sampaio, foi capaz de traduzir tão bem esse retomo do coração maduro ao tempo menino no regaço da mãe:
“Rasquei teu ventre!/ (Fui tropeço no teu caminho)/ Tirei de tua necessidade!/ (Fui apreensão na tua mesa) Dividi tuas noites ao meio!/ (Fui insônia de tuas noites)/ Me envolveste com tuas canseiras!/ (Fui canseira de teus dias)/ Tuas lágrimas me carregaram!/ (Fui teu gemido, não teu lamento)/ Tranquei as noites de teus amores!; (Fui tua noite de descompasso)/ Neguei teu sangue, ó minha mãe! — Que mais eu posso?”
É assim que o poeta sente, é assim que o poeta fala, é assim que o poeta vê o que sentimos no íntimo de nós sem saber como falar. O amor, em síntese, é o mesmo. O da mãe é transbordante, um constante repartir, como diz ainda, repetindo, Mauro Sampaio, figura integrante de uma prole de doze irmãos:
“Tuas mãos bem retratam tua vida!/Doze filhos, doze apreensões, /Doze roupas para teu tanque,/ Doze bocas para tua mesa, /Doze insônias para tuas noites de doze sobressaltos”
Sólon Borges dos Reis desvenda essa grandeza:
“O amor é mais generoso que a vitória/ porque não se alimenta da derrota/ nem está condicionado./ Absoluto, independe do contraste./ Só o amor prescinde do contrário”
O amor do filho, entanto, é mais egoísta, porque deixa para traz a lembrança e caminha para frente de olhos fitos no futuro, na busca de sua própria vida a se projetar na vida dos que dele advirão.
Depois a cena se repete. O filho se toma pai. A filha se torna mãe, gerando anseios e multiplicando sonhos. Até que um dia, — ah, um dia! — sem que saibamos ou percebamos, brota no coração, multiplicando-se na saudade, o amor aos pais que ficou esquecido. É nesse instante que, insensivelmente, o homem redescobre, escondido nas dobras de seu caminho, o benquerer que, hibernando, transitava no tempo. É o mesmo Mauro Sampaio que assim traduz o arrependimento da quase indiferença dos filhos:
“Hoje, pai, quero sentir que não morreste./ Desejo estar contigo, simplesmente,/ Debruçar-me sobre tuas mãos /E te pedir a benção/ Contemplar-te avidamente!/ Medir as tuas rugas./ E procurar as mais tristes./ Sei que nelas me encontrarei”.
Esse é o círculo vicioso da existência que na voz dos poetas fala da essência do ser e reproduz, a cada instante, na eternidade do homem o sopro divino da Criação.
Nas gerações que se sucedem, entanto, os que chegam mal percebem que somos sempre a imagem retrovertida dos que ficaram atrás, numa soma de palpitações e afetos que se abafam no silêncio de nossa própria indiferença.
* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
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