O sertão nosso de cada dia
• Por Mara Narciso
• Por Mara Narciso
Entrevistei Ivana Ferrante Rebello, professora de Literatura e Língua Portuguesa da UNIMONTES, sobre Ciro dos Anjos, o grande escritor de “Amanuense Belmiro” e montes-clarense da Academia Brasileira de Letras. Falou comigo de forma tão intensa que achei tratar-se de sua especialidade. Mas não. Disse entender pouco de Ciro dos Anjos. O negócio dela é Guimarães Rosa, cujo tema do seu doutorado foi “Grande Sertão: Veredas”. Fomos ouvi-la, umas 60 pessoas, no incipiente Clube de Leitura Felicidade Patrocínio. Como eu já a conhecia, imaginava o que viria, mas levei um susto. Foi muito além, pois, hipnotizada pelo escritor, médico e filósofo, com toda a propriedade nos arrastou felizes e sorridentes sertão afora.
À medida que Ivana nos mostrava o sertão dos seus olhos, dava inveja não ver tudo aquilo que ela via. Cada um pensava consigo mesmo: ah, então era isso! O prazer dessa imersão dá a justa dimensão da nossa ignorância intelectual, e nos leva a ter mais fome e sede de saber. Recorrendo apenas à memória, pois não fiz anotações, escrevo a seguir, infelizmente sem a exatidão das suas poéticas palavras, o que ela nos disse.
Segundo Ivana Ferrante, o livro inicia-se com um travessão, como se fosse a continuação de algo já começado, e termina com o símbolo do infinito, significando que a obra acabou, mas não teve fim. Riobaldo, o jagunço apaixonado, e já aposentado, morando em sua fazenda, conta em três dias a sua vida a um senhor que lhe faz uma visita. Este senhor pode ser o alterego de Guimarães Rosa, e Riobaldo pode ser o próprio Rosa (?). A palavra sertão significa longe do mar, porém a sua origem tem gerado controvérsias. Seria originada da palavra ser-tão, querendo dizer ser-muito?
O amor de Riobaldo e Diadorim começa quando os dois são rapazinhos e fazem uma inesquecível travessia no Rio São Francisco. Diadorim é um lindo menino de olhos verdes, jamais esquecidos, e reencontrados adiante na vida. Filho bastardo do seu padrinho, Riobaldo atua como professor e depois sai pelo mundo, em busca da sua identidade, da sua vida, do seu lugar. Faz parte do grupo de Zé Bebelo e depois do grupo de Joca Ramiro, que vem a ser o pai de Diadorim.
Quando Joca Ramiro é traído e assassinado por Ricardão e Hermógenes, de um grupo rival, o objetivo da vida de Diadorim passa a ser vingar o pai, e assim segue junto com Riobaldo sertão adentro. Pessoa estranha era Diadorim, nascido em Itacambira, tinha poucas palavras, escondia o corpo atrás das roupas de couro, e nunca tomava banho na frente dos outros. Ensinou coragem a Riobaldo e usava a faca com grande habilidade.
O Demo é presença marcante na vida de Riobaldo, que fica dividido entre o amor realizável por Otacília, com a qual chega a se casar, e o amor impossível por Diadorim. Há dúvidas se foi feito um pacto entre ele e o Demo, mas quando Riobaldo voltou do tal encontro com o diabo, estava falante, ainda mais corajoso, e só então se tornou chefe dos jagunços. Para Ivana Ferrante esse pacto aconteceu, porém está aberta a discussões.
Riobaldo, já tornado chefe, depois de longa espera, protagoniza a batalha final junto ao Paredão. Adiante, quando balas cantam nos seus ouvidos, ele está mais preocupado com Diadorim, que coloca o corpo na frente de uma bala mortal, dirigida ao chefe, morrendo em seu lugar. O amado morto é levado para um cômodo e todos são convidados a sair, menos Riobaldo, que vê que Diadorim era mulher, na verdade Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins. Assim, quando o amor impossível se torna possível, já é outra vez impossível, pois ele está morto.
A paixão de Ivana Ferrante pela obra é tão grande que não admite discussão sobre a conduta moral dos jagunços e de Riobaldo, que possuíam códigos de honra próprios. Acredita que a ausência de lei leva a criação de códigos locais, e com isso evita ter uma visão reducionista de luta entre o bem e o mal. Para justificar a sua opinião, calcada em cima de amplos estudos, que a credenciam a ser uma crítica literária, Ivana Ferrante comprova o que diz, relatando o julgamento de Joca Ramiro pelos jagunços. O amor platônico dedicado a Diadorim é o amor universal, assim como os altos pensamentos filosóficos de Riobaldo, explicando a vida, por exemplo, quando diz: “para sair do sertão é preciso entrar nele”. Os norte-mineiros não acham difícil entender o sertão, pois vivem aqui o seu dia a dia.
A história contada de maneira descomplicada foi recheada de apartes sobre o autor, a vida dele, as características gerais da sua obra, assim como perguntas, comentários e opiniões do público. De acordo com Ivana Ferrante, a Rede Globo, quando fez a mini-série “Grande Sertão: Veredas” errou ao escalar Bruna Lombardi para ser Diadorim, pois matou a história antes de ela ter começado. Até mesmo Guimarães Rosa pedia aos seus leitores para não revelarem o final.
Para Ivana Ferrante, não faz diferença Diadorim ser homem ou mulher. Pode até ser que a moral da época tenha obrigado o autor a fazer dele uma mulher, porém, embora haja algumas teses abordando o livro sob o prisma da homossexualidade, ou do homoerotismo, Ivana considera que a obra é muito mais do que isso, sendo um caso de amor amplo e abrangente.
Guimarães Rosa era médico, e seu pai, um comerciante e grande contador de histórias, então, embora não tenha vivido propriamente no sertão, teve amplo contato com pessoas que geraram seus personagens densos, ricos e complexos, que esbanjam sabedoria. Sendo uma pessoa curiosa e detalhista, o autor prendia-se nas minúcias dos fatos, universalizando sentimentos. Buscou no livro “Montes Claros, sua gente e seus costumes”, do historiador e médico Hermes de Paula, matéria para seus livros.
Pesquisador incansável, Rosa anotava frases e detalhes para inserir em seus livros. A leitura difícil, devido à hermética linguagem regional não é impedimento para a tradução em diversas línguas. Para ler e entender melhor a obra é bom falar em voz alta algumas passagens e saborear sua sonoridade, degustando cada trecho.
A narrativa de Ivana Ferrante, sertão afora (ou adentro?), a mostrava envolvida e envolvente, a ponto de afirmar que sua relação com o livro era o de uma mulher apaixonada pelo seu amante (e o abraça contente). Tantas vezes leu o livro, e ainda hoje, a cada releitura vê coisas novas, reflexões outras, e emoções que transbordam, descobrindo renovadas cores: “mas eu não vi isso!”
Posso dizer que nas leituras das partes selecionadas, Ivana Ferrante comprovou a cadência poética das palavras do livro. Ao final, a platéia, que a certa altura teve oportunidade de ler frases em voz alta, estava inquieta e incapaz de ficar sentada, cobrindo a palestrante de elogios e abraços. Veio-me novamente uma das frases do livro: “viver é perigoso”, e eu acrescentaria: e amar é contagioso. Saímos dali, amando mais, impregnados pelo amor que Ivana nos ensinou, amor cego pelo sertão e uma vontade incontrolável de reler “Grande Sertão: Veredas”.
* Médica endocrinologista, jornalista profissional, acadêmica da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
À medida que Ivana nos mostrava o sertão dos seus olhos, dava inveja não ver tudo aquilo que ela via. Cada um pensava consigo mesmo: ah, então era isso! O prazer dessa imersão dá a justa dimensão da nossa ignorância intelectual, e nos leva a ter mais fome e sede de saber. Recorrendo apenas à memória, pois não fiz anotações, escrevo a seguir, infelizmente sem a exatidão das suas poéticas palavras, o que ela nos disse.
Segundo Ivana Ferrante, o livro inicia-se com um travessão, como se fosse a continuação de algo já começado, e termina com o símbolo do infinito, significando que a obra acabou, mas não teve fim. Riobaldo, o jagunço apaixonado, e já aposentado, morando em sua fazenda, conta em três dias a sua vida a um senhor que lhe faz uma visita. Este senhor pode ser o alterego de Guimarães Rosa, e Riobaldo pode ser o próprio Rosa (?). A palavra sertão significa longe do mar, porém a sua origem tem gerado controvérsias. Seria originada da palavra ser-tão, querendo dizer ser-muito?
O amor de Riobaldo e Diadorim começa quando os dois são rapazinhos e fazem uma inesquecível travessia no Rio São Francisco. Diadorim é um lindo menino de olhos verdes, jamais esquecidos, e reencontrados adiante na vida. Filho bastardo do seu padrinho, Riobaldo atua como professor e depois sai pelo mundo, em busca da sua identidade, da sua vida, do seu lugar. Faz parte do grupo de Zé Bebelo e depois do grupo de Joca Ramiro, que vem a ser o pai de Diadorim.
Quando Joca Ramiro é traído e assassinado por Ricardão e Hermógenes, de um grupo rival, o objetivo da vida de Diadorim passa a ser vingar o pai, e assim segue junto com Riobaldo sertão adentro. Pessoa estranha era Diadorim, nascido em Itacambira, tinha poucas palavras, escondia o corpo atrás das roupas de couro, e nunca tomava banho na frente dos outros. Ensinou coragem a Riobaldo e usava a faca com grande habilidade.
O Demo é presença marcante na vida de Riobaldo, que fica dividido entre o amor realizável por Otacília, com a qual chega a se casar, e o amor impossível por Diadorim. Há dúvidas se foi feito um pacto entre ele e o Demo, mas quando Riobaldo voltou do tal encontro com o diabo, estava falante, ainda mais corajoso, e só então se tornou chefe dos jagunços. Para Ivana Ferrante esse pacto aconteceu, porém está aberta a discussões.
Riobaldo, já tornado chefe, depois de longa espera, protagoniza a batalha final junto ao Paredão. Adiante, quando balas cantam nos seus ouvidos, ele está mais preocupado com Diadorim, que coloca o corpo na frente de uma bala mortal, dirigida ao chefe, morrendo em seu lugar. O amado morto é levado para um cômodo e todos são convidados a sair, menos Riobaldo, que vê que Diadorim era mulher, na verdade Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins. Assim, quando o amor impossível se torna possível, já é outra vez impossível, pois ele está morto.
A paixão de Ivana Ferrante pela obra é tão grande que não admite discussão sobre a conduta moral dos jagunços e de Riobaldo, que possuíam códigos de honra próprios. Acredita que a ausência de lei leva a criação de códigos locais, e com isso evita ter uma visão reducionista de luta entre o bem e o mal. Para justificar a sua opinião, calcada em cima de amplos estudos, que a credenciam a ser uma crítica literária, Ivana Ferrante comprova o que diz, relatando o julgamento de Joca Ramiro pelos jagunços. O amor platônico dedicado a Diadorim é o amor universal, assim como os altos pensamentos filosóficos de Riobaldo, explicando a vida, por exemplo, quando diz: “para sair do sertão é preciso entrar nele”. Os norte-mineiros não acham difícil entender o sertão, pois vivem aqui o seu dia a dia.
A história contada de maneira descomplicada foi recheada de apartes sobre o autor, a vida dele, as características gerais da sua obra, assim como perguntas, comentários e opiniões do público. De acordo com Ivana Ferrante, a Rede Globo, quando fez a mini-série “Grande Sertão: Veredas” errou ao escalar Bruna Lombardi para ser Diadorim, pois matou a história antes de ela ter começado. Até mesmo Guimarães Rosa pedia aos seus leitores para não revelarem o final.
Para Ivana Ferrante, não faz diferença Diadorim ser homem ou mulher. Pode até ser que a moral da época tenha obrigado o autor a fazer dele uma mulher, porém, embora haja algumas teses abordando o livro sob o prisma da homossexualidade, ou do homoerotismo, Ivana considera que a obra é muito mais do que isso, sendo um caso de amor amplo e abrangente.
Guimarães Rosa era médico, e seu pai, um comerciante e grande contador de histórias, então, embora não tenha vivido propriamente no sertão, teve amplo contato com pessoas que geraram seus personagens densos, ricos e complexos, que esbanjam sabedoria. Sendo uma pessoa curiosa e detalhista, o autor prendia-se nas minúcias dos fatos, universalizando sentimentos. Buscou no livro “Montes Claros, sua gente e seus costumes”, do historiador e médico Hermes de Paula, matéria para seus livros.
Pesquisador incansável, Rosa anotava frases e detalhes para inserir em seus livros. A leitura difícil, devido à hermética linguagem regional não é impedimento para a tradução em diversas línguas. Para ler e entender melhor a obra é bom falar em voz alta algumas passagens e saborear sua sonoridade, degustando cada trecho.
A narrativa de Ivana Ferrante, sertão afora (ou adentro?), a mostrava envolvida e envolvente, a ponto de afirmar que sua relação com o livro era o de uma mulher apaixonada pelo seu amante (e o abraça contente). Tantas vezes leu o livro, e ainda hoje, a cada releitura vê coisas novas, reflexões outras, e emoções que transbordam, descobrindo renovadas cores: “mas eu não vi isso!”
Posso dizer que nas leituras das partes selecionadas, Ivana Ferrante comprovou a cadência poética das palavras do livro. Ao final, a platéia, que a certa altura teve oportunidade de ler frases em voz alta, estava inquieta e incapaz de ficar sentada, cobrindo a palestrante de elogios e abraços. Veio-me novamente uma das frases do livro: “viver é perigoso”, e eu acrescentaria: e amar é contagioso. Saímos dali, amando mais, impregnados pelo amor que Ivana nos ensinou, amor cego pelo sertão e uma vontade incontrolável de reler “Grande Sertão: Veredas”.
* Médica endocrinologista, jornalista profissional, acadêmica da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
De Guimarães Rosa eu li "Sagarana", "Noites do Sertão" e "Primeiras Estórias". Tenho "Grande Sertão: Veredas", mas ainda não me aventurei por este mundo à parte. A empreitada é de tal monta que aguardo o momento certo e o tempo necessário para a primeira das muitas leituras que esse monumento exige. Grande abraço e parabéns pelo primoroso e instrutivo relato, Mara.
ResponderExcluirMarcelo, também li "Sagarana", e foi para o vestibular, em 197$. Ano passado li vagarosamente e repetindo trechos "Grande Sertão: Veredas". Ao terminar, estava tão maravilhada que, sem nunca ter lido nada sobre a obra, corri a escrever algo. Arrisqui-me e Pedro postou aqui "Mergulho no sertão". Agora, após assitir a essa palestra, comentei com Risomar Fasanaro, e ela me solicitou um relatório da aula, pois gosta muito do livro. Então eu escrevi. Ficou longo demais, três páginas A4, mas não quis podá-lo. E ficou assim. Obrigada pela paciência da leitura e atenção do comentário.
ResponderExcluir