O túnel
* Por Ernesto Sábato
Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne. Suponho que o processo está na lembrança de todos e que não são necessárias maiores explicações sobre a minha pessoa, embora nem o diabo saiba o que as pessoas vão recordar, nem porque.
Na realidade, sempre pensei que não há memória coletiva, ou que talvez seja uma forma de defesa da espécie humana. A frase “todo tempo passado foi melhor” não indica que antes não aconteceram coisas ruins, mas que – felizmente – as pessoas as esqueceram.
Logo, semelhante frase não tem validade universal. Eu, por exemplo, caracterizo-me por lembrar, preferencialmente, os fatos maus e assim quase poderia dizer que “todo tempo passado foi pior”. Se não fosse porque o presente me parece tão horrível quanto o passado, lembro de tantas calamidades, tantos rostos cínicos e cruéis, tantas más ações, que a memória é, para mim, como a trêmula luz que ilumina um sórdido museu da vergonha.
Quantas vezes fiquei prostrado durante horas, em um canto obscuro do meu quarto, depois de ler uma notícia na seção policial! Mas a verdade é que nem sempre o mais vergonhoso da espécie humana aparece ali. Até certo ponto, os criminosos são pessoas mais limpas. Mas faço essa afirmação ofensiva não porque tenha matado um ser humano. É uma honesta e profunda convicção.
Um indivíduo é pernicioso? Pois que se o mate e acabou. Isso é o que chamo de uma boa ação. Pensem em quanto é pior para a sociedade que esse indivíduo siga destilando seu veneno e que, em vez de eliminá-lo, se queira contradizer sua ação recorrendo a maledicências anônimas e a outras baixezas semelhantes.
No que a mim se refere, devo confessar que agora lamento não haver aproveitado melhor o tempo da minha liberdade, liquidando seis ou sete tipos que conheço. Que o mundo é horrível, é uma verdade que não precisa de demonstração. Bastaria um só fato para provar isso.
Em um campo de concentração, um ex-pianista queixou-se de fome e então obrigaram-no a comer um rato, porém vivo. Não é disso, entretanto, do que quero falar agora. Direi mais adiante, se tiver oportunidade, algo mais sobre este assunto do rato.
Obs. Trecho extraído da novela “O túnel”
* Ernesto Sábato, que morreu em 30 de abril de 2011, foi dos mais requisitados e premiados escritores argentinos da atualidade. Sua bibliografia abrange cerca de 40 livros, em especial contos, romances, novelas e ensaios. Foi nomeado Cavaleiro de Honra da França em 1979. Em 1984, recebeu o Prêmio Miguel Cervantes de Literatura. Residia em Santos Lugares, Província de Buenos Aires, onde se dedicava somente à pintura, já que, por ordem médica, não podia nem ler e nem escrever, por causa de uma doença nos olhos.
* Por Ernesto Sábato
Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne. Suponho que o processo está na lembrança de todos e que não são necessárias maiores explicações sobre a minha pessoa, embora nem o diabo saiba o que as pessoas vão recordar, nem porque.
Na realidade, sempre pensei que não há memória coletiva, ou que talvez seja uma forma de defesa da espécie humana. A frase “todo tempo passado foi melhor” não indica que antes não aconteceram coisas ruins, mas que – felizmente – as pessoas as esqueceram.
Logo, semelhante frase não tem validade universal. Eu, por exemplo, caracterizo-me por lembrar, preferencialmente, os fatos maus e assim quase poderia dizer que “todo tempo passado foi pior”. Se não fosse porque o presente me parece tão horrível quanto o passado, lembro de tantas calamidades, tantos rostos cínicos e cruéis, tantas más ações, que a memória é, para mim, como a trêmula luz que ilumina um sórdido museu da vergonha.
Quantas vezes fiquei prostrado durante horas, em um canto obscuro do meu quarto, depois de ler uma notícia na seção policial! Mas a verdade é que nem sempre o mais vergonhoso da espécie humana aparece ali. Até certo ponto, os criminosos são pessoas mais limpas. Mas faço essa afirmação ofensiva não porque tenha matado um ser humano. É uma honesta e profunda convicção.
Um indivíduo é pernicioso? Pois que se o mate e acabou. Isso é o que chamo de uma boa ação. Pensem em quanto é pior para a sociedade que esse indivíduo siga destilando seu veneno e que, em vez de eliminá-lo, se queira contradizer sua ação recorrendo a maledicências anônimas e a outras baixezas semelhantes.
No que a mim se refere, devo confessar que agora lamento não haver aproveitado melhor o tempo da minha liberdade, liquidando seis ou sete tipos que conheço. Que o mundo é horrível, é uma verdade que não precisa de demonstração. Bastaria um só fato para provar isso.
Em um campo de concentração, um ex-pianista queixou-se de fome e então obrigaram-no a comer um rato, porém vivo. Não é disso, entretanto, do que quero falar agora. Direi mais adiante, se tiver oportunidade, algo mais sobre este assunto do rato.
Obs. Trecho extraído da novela “O túnel”
* Ernesto Sábato, que morreu em 30 de abril de 2011, foi dos mais requisitados e premiados escritores argentinos da atualidade. Sua bibliografia abrange cerca de 40 livros, em especial contos, romances, novelas e ensaios. Foi nomeado Cavaleiro de Honra da França em 1979. Em 1984, recebeu o Prêmio Miguel Cervantes de Literatura. Residia em Santos Lugares, Província de Buenos Aires, onde se dedicava somente à pintura, já que, por ordem médica, não podia nem ler e nem escrever, por causa de uma doença nos olhos.
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