Assombração
* Por Lêda Selma
Como de costume, em noites de frio, na fazenda, Se achegue mais, todos rodeavam a fogueira, o melhor e mais econômico calefator da região. E, quase em ritual, dividiam calor humano e, principalmente, o outro, o da lenha em combustão, enquanto, sorrateira, a lua, enrolada em sua gordice nacarada, escorregava céu afora, feito mulher-dama airosa e feiticeira.
Nessas ocasiões, a conversa era farturenta e gingava de boca em boca; a vida dos vizinhos e dos amigos, então, era virada ao avesso. Ninguém escapava. De conversa em conversa, a noite espichava o passo, a meninada, já aquecida e em correria, furava a escuridão, e o “cafezinho fresco e mais pra amargo” chegava como um convidado imprescindível. Do paradeiro da lua, a tais alturas, nenhuma pista. O vento, sim, ainda acoitava o frio. De repente, algo se moveu inexplicavelmente. E começou a pular. Mais um pulo. Outro. Mais um. Mais outro. Muitos.
– Santo Deus, o que é aquilo? Não parece bicho, parece coisa, coisa pulante...
– É verdade. Por acaso, um objeto? Pulador, é verdade, mas objeto. Quem se habilita a investigar a coisa, quem?
– Melhor chamar o padre. Pode ser diabrura do pé-cascudo e, se for mesmo, só o poder da água-benta e do crucifixo. Aliás, estou ouvindo um gemido, gemido de alma desgarrada...
– O delegado, acho mais eficiente. E se for uma bomba? Esperem: ouço um barulho... tic-tac, tic tac...
– Ou será arapuca de ladrão? Escutem: parece ruído de gatilho... cric! O delegado. Assim, ele já prende o fulano...
– Não, não, nada de delegado. O padre. Caso seja malfeitança do beiçudo, só ele pra dar jeito... Ai, o gemido agora está com cheiro de queimado... Socorro! A alma depenada está pinoteando...
– Mais conveniente, o juiz. Ele vai decidir quem cuidará da coisa, pronto! Afinal, e se precisar de um Mandado de Busca e Apreensão? O juiz, melhor, o juiz.
– O padre e não se discute mais. Só ele sabe como enfrentar o mafarrico, se alguma alma perdida tiver sido capturada por ele...
Entre um este, esse ou aquele, no quintal, a rondar o umbuzeiro, algo continuava ora saltando, ora rolando. E ninguém se atrevia a chegar perto do pulante. A lua bem que espiou, lá do longe, por alguns minutos, o acontecido; depois, desinteressada, acocorou-se às margens do infinito e fingiu dormir. E o fantasma, incansável, continuava a piruetar. E o pânico, na mesma toada. E o vento, brincalhão, empurrando aquilo, o esquisito pulador, vez ou outra. Chamados, o padre, o delegado e o juiz chegam e postam-se, cuidadosamente, diante do mistério. Buscam uma luminosidade maior, espiam aqui, um pouco mais ali e em coro: “Uma garrafa térmica”.
– Eu não disse? Malvadeza do coisa-ruim! Ele engarrafou alguma alma penada, só pode ser isso, só pode. Cadê a água-benta, padre?!
– Eu bem que desconfiei: investida de terrorista. Uma bomba camuflada... O desativador de bomba, delegado, rápido, rápido!
– Doutor juiz, decida esta questão, use a lei, por favor! O Mandado, onde está? Abra já a garrafa para uma vistoria completa.
Enquanto nada se resolvia, a meninada, verdadeiros diabretes, engolia robustas gargalhadas, atrás da escuridão, olhando um para o outro à caça do autor da façanha. De repente, um deles cochichou envaidecido e vitorioso:
– Legal demais o gênio aqui, hem, galera?! Viva eu, viva o susto, viva o pulador perneta, viva a garrafa mal-assombrada que tá endoidando os saberetas! Rá, rá, rá, rá! Botei, de propósito, dentro da garrafa térmica, aquele sapo horroroso só pra que ela pulasse feito saci e assustasse os sabichões. E consegui.
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.
* Por Lêda Selma
Como de costume, em noites de frio, na fazenda, Se achegue mais, todos rodeavam a fogueira, o melhor e mais econômico calefator da região. E, quase em ritual, dividiam calor humano e, principalmente, o outro, o da lenha em combustão, enquanto, sorrateira, a lua, enrolada em sua gordice nacarada, escorregava céu afora, feito mulher-dama airosa e feiticeira.
Nessas ocasiões, a conversa era farturenta e gingava de boca em boca; a vida dos vizinhos e dos amigos, então, era virada ao avesso. Ninguém escapava. De conversa em conversa, a noite espichava o passo, a meninada, já aquecida e em correria, furava a escuridão, e o “cafezinho fresco e mais pra amargo” chegava como um convidado imprescindível. Do paradeiro da lua, a tais alturas, nenhuma pista. O vento, sim, ainda acoitava o frio. De repente, algo se moveu inexplicavelmente. E começou a pular. Mais um pulo. Outro. Mais um. Mais outro. Muitos.
– Santo Deus, o que é aquilo? Não parece bicho, parece coisa, coisa pulante...
– É verdade. Por acaso, um objeto? Pulador, é verdade, mas objeto. Quem se habilita a investigar a coisa, quem?
– Melhor chamar o padre. Pode ser diabrura do pé-cascudo e, se for mesmo, só o poder da água-benta e do crucifixo. Aliás, estou ouvindo um gemido, gemido de alma desgarrada...
– O delegado, acho mais eficiente. E se for uma bomba? Esperem: ouço um barulho... tic-tac, tic tac...
– Ou será arapuca de ladrão? Escutem: parece ruído de gatilho... cric! O delegado. Assim, ele já prende o fulano...
– Não, não, nada de delegado. O padre. Caso seja malfeitança do beiçudo, só ele pra dar jeito... Ai, o gemido agora está com cheiro de queimado... Socorro! A alma depenada está pinoteando...
– Mais conveniente, o juiz. Ele vai decidir quem cuidará da coisa, pronto! Afinal, e se precisar de um Mandado de Busca e Apreensão? O juiz, melhor, o juiz.
– O padre e não se discute mais. Só ele sabe como enfrentar o mafarrico, se alguma alma perdida tiver sido capturada por ele...
Entre um este, esse ou aquele, no quintal, a rondar o umbuzeiro, algo continuava ora saltando, ora rolando. E ninguém se atrevia a chegar perto do pulante. A lua bem que espiou, lá do longe, por alguns minutos, o acontecido; depois, desinteressada, acocorou-se às margens do infinito e fingiu dormir. E o fantasma, incansável, continuava a piruetar. E o pânico, na mesma toada. E o vento, brincalhão, empurrando aquilo, o esquisito pulador, vez ou outra. Chamados, o padre, o delegado e o juiz chegam e postam-se, cuidadosamente, diante do mistério. Buscam uma luminosidade maior, espiam aqui, um pouco mais ali e em coro: “Uma garrafa térmica”.
– Eu não disse? Malvadeza do coisa-ruim! Ele engarrafou alguma alma penada, só pode ser isso, só pode. Cadê a água-benta, padre?!
– Eu bem que desconfiei: investida de terrorista. Uma bomba camuflada... O desativador de bomba, delegado, rápido, rápido!
– Doutor juiz, decida esta questão, use a lei, por favor! O Mandado, onde está? Abra já a garrafa para uma vistoria completa.
Enquanto nada se resolvia, a meninada, verdadeiros diabretes, engolia robustas gargalhadas, atrás da escuridão, olhando um para o outro à caça do autor da façanha. De repente, um deles cochichou envaidecido e vitorioso:
– Legal demais o gênio aqui, hem, galera?! Viva eu, viva o susto, viva o pulador perneta, viva a garrafa mal-assombrada que tá endoidando os saberetas! Rá, rá, rá, rá! Botei, de propósito, dentro da garrafa térmica, aquele sapo horroroso só pra que ela pulasse feito saci e assustasse os sabichões. E consegui.
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.
Sapo talvez não a assuste tanto, exceto dentro de garrafas, mas barata, sei que não escreve e nem fala o nome. Como sempre, muito engraçada.
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