segunda-feira, 9 de maio de 2011







A memória se partiu ao peso da lembrança

* Por Eduardo Murta

Cacá mente ao dizer que não sonha com coisa outra que não seja aquele anúncio de vitrine. Vira num desses passeios fúteis ao shopping, incursões tipicamente vãs. Dia em que a soma de tristezas se convertia numa espécie de espinheiro espiritual. Como se elegera predestinada a não capitular diante da melancolia, abusava dos escapes triviais: fazer compras, cortar o cabelo e, tendo chance, paquerar. Tudo, no fundo, a que esquecesse de vez Zeca.
Como não lhe saíam da cabeça os detalhes de seu rosto, os gestos mínimos, o tom da voz, deletava o ciclo de memórias e se refugiava na promoção anunciada. Pensara, inicialmente, numa versão discreta. Estudou a opção apimentada, a ver se lhe caía bem. Acabou derivando: nem uma coisa, nem outra. Ficaria com o modelito intermediário. Queria evitar grandiloqüências, a vissem de qualquer ângulo. Noutra ponta, descartaria contornos que a fizessem parecer uma noviça. Importaria, enfim, era o esquecimento sobre Zeca.
Já decidida, iria entrar na loja para confirmar o pedido, quando bateu-lhe a dúvida. Estava sinceramente pronta a aderir? Próteses, naquele tempo, se haviam transfigurado em artigos tão comuns quanto sorvetes de chocolate. Natural encontrar entre as colegas, a família, quem houvesse apostado nesse tipo de complemento. Buscava era se convencer de que a escolha não se fundava no esforço único de desconstruir Zeca em sua vida.
A vendedora armava o sorriso e se aproximava para o “em que posso lhe ajudar?”, no momento em que a incerteza acabava de inundar-lhe as bordas da epiderme. Agradeceu, se retirou. Saiu se perguntando se admitia a hipótese por mero modismo, impulso, tesão consumista, desconforto de qualquer natureza. Ou se para esquecer Zeca e todo seu arsenal de encantamento.
Resolveu então consultar as duas melhores amigas. Precisasse de um voto consagrador, iria ainda a Tia Betânia, simpática especialista em frivolidades. Rivane, advogada quarentona, cravou no faça. Pusera ela mesma e recalibrara a autoconfiaça. Postura mais insinuante. Sílvia, decoradora, renegou. Aderira aos 50 e retirara aos 51. Vislumbrara um desequilíbrio sutil, mas determinante.
Restara a irmã da mãe, confidente desde os tempos em que os seios despontavam ao corpo de Cacá, duas décadas e meia atrás. Recebeu o dilema da sobrinha com surpresa. E terminou recorrendo a uma máxima da era hippie para dizer que sim, que experimentasse. A prerrogativa era tosca, embora instigante: como responder negativamente a algo sem sequer provar-lhe o gosto? E, talvez, ajudasse a afastar Zeca como neblina fria e dolorosa.
Ela julgou-se, então, pronta para investir no implante. Chegou perfumada à clínica. Odor amadeirado. Transpirava bom humor e segurança. O vestido emprestando ao colo um decote delicado. Tons em vermelho e negro ditando os limites. Tomou duas xícaras de chá. Hortelã, seu preferido. Assinou o termo de compromisso sem lê-lo por inteiro. Notou as observações sobre efeitos colaterais e as condições de troca. Já se via esquecendo Zeca.
Era fim de tarde, quando o clínico concluía a operação. Tinha agora a alma siliconada. Literalmente. Um estado de espírito em puro silicone. Procedimento indolor, nada invasivo. Cacá ao começo tropeçando nas novas sensações. Deixou o lugar sorrindo, ares diferentes se avizinhando. Um contentamento leve. Pensou, não sabia exatamente por quê, em chope claro. Cruzou ao bar da esquina. Fez o pedido e, num repente, sentiu o coração partindo-se feito fosse um cristal multifacetado.
Zeca duas mesas à frente. Acompanhado. Ela percebeu o plasma escorrer pelos poros, pelas extremidades do corpo, gélido. Foi se esquecendo de tudo. Desmemoriando-se até de Zeca. As lembranças se derretendo por inteiro. O laudo, sintético, assinalou: choque térmico da alma.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

Um comentário:

  1. Melhor morrer de outra doença do que esse novo diagnóstico criado por você Eduardo.
    Destaco:
    "sentiu o coração partindo-se feito fosse um cristal multifacetado."
    Lindo demais!

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