A jangada e o vento
* Por Rubem Costa
A importância do canto, eu a descobri ainda muito jovem, ou melhor, quando ainda bem menino, no tempo em que aluno de grupo escolar cantava o hino à bandeira antes de entrar em fila para a sala de aula. Praxe que não existe mais, como também desapareceu o hábito de o aluno respeitar o professor, o que, aliás, já não é novidade, posto que, há muito tempo, nem os pais, nem mesmo o governo, sequer o respeitam. Derrubaram um mito — o mestre — e criaram um mato sem cachorro para a formação do ser.
Isso tudo estou a dizer, porque, diante da mazela da educação, que empobrece a ética e desconjunta a moral, me lembrei de uma história antiga que, numa hora incerta da juventude, me ajudou a compreender o sentido humano da vida. É página que começa quando, empurrado pelos solavancos da vida, aos dezessete anos de idade, me vi matriculado na Escola Normal, sem muito entusiasmo até então pelo exercício do magistério. Em verdade, quando ali cheguei, guardava amargo na alma a angústia de uma derrocada, frustração de anseio que acalentara durante toda a fase ginasial: ir para o Realengo. Uma ideia fixa. Nos anteriores cinco anos de Culto à Ciência, a farda de general fora o leitmotiv de minhas persistentes horas de estudos, onde o trato da matéria acadêmica se cruzava com a prática intensa de desportos para atender ao lema do exército nacional: mens sana in corpore sano. Prescrição lógica para a preparação de um soldado, era exigência irrevogável para inscrição no vestibular da escola militar. Vestir farda, pensava, eis a vocação! Todavia, camuflada na ansiedade, havia uma razão paralela e mais intensa que os galões de um general — a vaidade de um menino que pensando em sua imagem, desejava despertar com o uniforme de cadete o interesse das meninas que encantavam seus devaneios de ingênuo adolescente. Sonho pueril que acalentava o coração e se abria tolo na mente. Castelo de cartas que desabou ruidoso em um dia de novembro — estava em 1936 — quando, sentindo uma gosma quente na boca, cuspi e vi no chão formada de repente uma rosa rubra de sangue. Tuberculose. Estupefato, pressenti o fantasma da morte se aproximando de mim.
Era um tempo sem remédio que não conhecia ainda antibiótico. Instante trágico em que me despedi vertiginoso da farda para me agregar em pensamento aos poetas tristes que morriam cedo. O verso amargo de Álvares de Azevedo me assomou instantâneo e eu abismado o reli assim: “se eu morrer amanhã, virá ao menos fechar meus olhos minha pobre irmã!” Mas, isso não aconteceu, com ternura me lembro, porque ao meu lado estava uma bússola de afeto, Olívia, minha mãe, que me sustentou o ânimo e apontou a escola profissional para consolo de meus dias. E ironia da sorte: foi nessa escola, onde entrei sob o peso da morte, que encontrei uma janela para a vida. A história é longa e não cabe espaço na coluna para distendê-la. Por isso me limito apenas a falar de uma contradição — a inaptidão musical que, paradoxalmente, me ensinou a viver.
Canto orfeônico era disciplina obrigatória na grade curricular da escola normal — instituto estranho para mim, porém ameno, repleto de moças e poucos marmanjos. Maria Judici Cavalcanti, professora de música, regia o coral com o qual tomei contato logo no primeiro dia de aula. Nem bem entrei na sala, já fui parar na terceira ala do grupo formado, composta quase toda de voz masculina.
Com leve gesto de batuta, a maestrina anunciou o ensaio que se abriu dolente com uma surpreendente canção folclórica. Logo às primeiras notas, estremeci. A candura do som tangendo palavras me punha na alma um grito de angústia:
“Minha jangada de vela,
Para onde vais me levar?
De dia, vento de terra,
De noite, vento do mar.”
Aquela jangada, que na canção navegava, trazia a pergunta que eu na mente guardava chorando, sofrendo, pensando aflito na doença: — “para onde vais me levar?”. Evocação direta que me falava à emoção, cutucava a dúvida e atropelada minha esperança. Uma pergunta que me arrastava sem resposta para o fundo de uma noite até então sem madrugada. Atarraxado por um soluço contido, não consegui cantar. E mesmo que o pudesse, não saberia entoar. A alma gemente estrondava gritando e a voz empacada não sabia traduzir. Desafinado com a vida, não me afinava com música. A marca da mágoa caminhava no peito e se estampava no rosto. Uma dor que brotava muda na boca e ecoava machucante no coração. Obnubilado, senti entanto que, enquanto agitava a batuta, a maestrina se punha atenta a me observar. Temi por um mau começo. Finda a aula, a aula, chamou-me à parte e disse mais ou menos assim: — Sei que a canção é triste e o tema machuca a quem está à espera de uma resposta Não chore.Aqui ou onde estiver, errado ou certo, abra a boca e cante quanto puder. A afinação virá com o tempo. Pegue o remo da jangada que a vela o levará à praia. Era um desafio aos ventos que ela me propunha. Entendi a lição. Esqueci a farda de general, acreditei na vida, aprendi a ser aluno da coragem e professor de mim mesmo.
Em 1973, organizaram-se festejos para comemoração do cinquentenário de fundação da Escola Normal Carlos Gomes. Para presidir a sessão de abertura do evento, foi convidado o diretor da V Divisão do Ensino do Estado de São Paulo, que compreendia uma vasta região de oitenta e três municípios dotados de escolas.
Pouca gente no instituto, ou talvez ninguém soubesse então que, trinta e cinco anos antes da festa, o convidado fora um aluno, marcado pela doença e batido de ansiedade, que se emocionara às lágrimas ao som candente de uma canção praieira.
Quando adentrei o anfiteatro, ouvindo o orfeão cantar, plagiei a Luiz Guimarães, sussurrando a canção da saudade: — Era esta sala, oh se me lembro e quanto!
Na cerimônia, enquanto eu discursava, na primeira fila de poltronas, nos seus 80 anos, uma dama linda me saudava com um sorriso de ternura. Emocionei-me. Era ela mesma, sim — oh se me lembro e quanto — Maria Giudici Cavalcanti — dona Maria do amor de todos — professora — símbolo da escola. Ofertei-lhe, no ardor da palestra, a fala tardia de meu débito imenso — uma dívida que repago agora para que — na região etérea em que estiver — a mestra saiba que o menino tuberculoso a quem ensinou a remar, continua ainda ao timão da jangada, na faina ingente de domar os ventos. De dia, vento de terra. De noite, vento do mar.
• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
* Por Rubem Costa
A importância do canto, eu a descobri ainda muito jovem, ou melhor, quando ainda bem menino, no tempo em que aluno de grupo escolar cantava o hino à bandeira antes de entrar em fila para a sala de aula. Praxe que não existe mais, como também desapareceu o hábito de o aluno respeitar o professor, o que, aliás, já não é novidade, posto que, há muito tempo, nem os pais, nem mesmo o governo, sequer o respeitam. Derrubaram um mito — o mestre — e criaram um mato sem cachorro para a formação do ser.
Isso tudo estou a dizer, porque, diante da mazela da educação, que empobrece a ética e desconjunta a moral, me lembrei de uma história antiga que, numa hora incerta da juventude, me ajudou a compreender o sentido humano da vida. É página que começa quando, empurrado pelos solavancos da vida, aos dezessete anos de idade, me vi matriculado na Escola Normal, sem muito entusiasmo até então pelo exercício do magistério. Em verdade, quando ali cheguei, guardava amargo na alma a angústia de uma derrocada, frustração de anseio que acalentara durante toda a fase ginasial: ir para o Realengo. Uma ideia fixa. Nos anteriores cinco anos de Culto à Ciência, a farda de general fora o leitmotiv de minhas persistentes horas de estudos, onde o trato da matéria acadêmica se cruzava com a prática intensa de desportos para atender ao lema do exército nacional: mens sana in corpore sano. Prescrição lógica para a preparação de um soldado, era exigência irrevogável para inscrição no vestibular da escola militar. Vestir farda, pensava, eis a vocação! Todavia, camuflada na ansiedade, havia uma razão paralela e mais intensa que os galões de um general — a vaidade de um menino que pensando em sua imagem, desejava despertar com o uniforme de cadete o interesse das meninas que encantavam seus devaneios de ingênuo adolescente. Sonho pueril que acalentava o coração e se abria tolo na mente. Castelo de cartas que desabou ruidoso em um dia de novembro — estava em 1936 — quando, sentindo uma gosma quente na boca, cuspi e vi no chão formada de repente uma rosa rubra de sangue. Tuberculose. Estupefato, pressenti o fantasma da morte se aproximando de mim.
Era um tempo sem remédio que não conhecia ainda antibiótico. Instante trágico em que me despedi vertiginoso da farda para me agregar em pensamento aos poetas tristes que morriam cedo. O verso amargo de Álvares de Azevedo me assomou instantâneo e eu abismado o reli assim: “se eu morrer amanhã, virá ao menos fechar meus olhos minha pobre irmã!” Mas, isso não aconteceu, com ternura me lembro, porque ao meu lado estava uma bússola de afeto, Olívia, minha mãe, que me sustentou o ânimo e apontou a escola profissional para consolo de meus dias. E ironia da sorte: foi nessa escola, onde entrei sob o peso da morte, que encontrei uma janela para a vida. A história é longa e não cabe espaço na coluna para distendê-la. Por isso me limito apenas a falar de uma contradição — a inaptidão musical que, paradoxalmente, me ensinou a viver.
Canto orfeônico era disciplina obrigatória na grade curricular da escola normal — instituto estranho para mim, porém ameno, repleto de moças e poucos marmanjos. Maria Judici Cavalcanti, professora de música, regia o coral com o qual tomei contato logo no primeiro dia de aula. Nem bem entrei na sala, já fui parar na terceira ala do grupo formado, composta quase toda de voz masculina.
Com leve gesto de batuta, a maestrina anunciou o ensaio que se abriu dolente com uma surpreendente canção folclórica. Logo às primeiras notas, estremeci. A candura do som tangendo palavras me punha na alma um grito de angústia:
“Minha jangada de vela,
Para onde vais me levar?
De dia, vento de terra,
De noite, vento do mar.”
Aquela jangada, que na canção navegava, trazia a pergunta que eu na mente guardava chorando, sofrendo, pensando aflito na doença: — “para onde vais me levar?”. Evocação direta que me falava à emoção, cutucava a dúvida e atropelada minha esperança. Uma pergunta que me arrastava sem resposta para o fundo de uma noite até então sem madrugada. Atarraxado por um soluço contido, não consegui cantar. E mesmo que o pudesse, não saberia entoar. A alma gemente estrondava gritando e a voz empacada não sabia traduzir. Desafinado com a vida, não me afinava com música. A marca da mágoa caminhava no peito e se estampava no rosto. Uma dor que brotava muda na boca e ecoava machucante no coração. Obnubilado, senti entanto que, enquanto agitava a batuta, a maestrina se punha atenta a me observar. Temi por um mau começo. Finda a aula, a aula, chamou-me à parte e disse mais ou menos assim: — Sei que a canção é triste e o tema machuca a quem está à espera de uma resposta Não chore.Aqui ou onde estiver, errado ou certo, abra a boca e cante quanto puder. A afinação virá com o tempo. Pegue o remo da jangada que a vela o levará à praia. Era um desafio aos ventos que ela me propunha. Entendi a lição. Esqueci a farda de general, acreditei na vida, aprendi a ser aluno da coragem e professor de mim mesmo.
Em 1973, organizaram-se festejos para comemoração do cinquentenário de fundação da Escola Normal Carlos Gomes. Para presidir a sessão de abertura do evento, foi convidado o diretor da V Divisão do Ensino do Estado de São Paulo, que compreendia uma vasta região de oitenta e três municípios dotados de escolas.
Pouca gente no instituto, ou talvez ninguém soubesse então que, trinta e cinco anos antes da festa, o convidado fora um aluno, marcado pela doença e batido de ansiedade, que se emocionara às lágrimas ao som candente de uma canção praieira.
Quando adentrei o anfiteatro, ouvindo o orfeão cantar, plagiei a Luiz Guimarães, sussurrando a canção da saudade: — Era esta sala, oh se me lembro e quanto!
Na cerimônia, enquanto eu discursava, na primeira fila de poltronas, nos seus 80 anos, uma dama linda me saudava com um sorriso de ternura. Emocionei-me. Era ela mesma, sim — oh se me lembro e quanto — Maria Giudici Cavalcanti — dona Maria do amor de todos — professora — símbolo da escola. Ofertei-lhe, no ardor da palestra, a fala tardia de meu débito imenso — uma dívida que repago agora para que — na região etérea em que estiver — a mestra saiba que o menino tuberculoso a quem ensinou a remar, continua ainda ao timão da jangada, na faina ingente de domar os ventos. De dia, vento de terra. De noite, vento do mar.
• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
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