sábado, 20 de novembro de 2010




Dizaê ladrão


* Por Ronaldo Bressane

Só havia uma pessoa no mundo que podia se vangloriar ter nadado na nababesca piscina de William Randolph Hearst (inspiração de Welles para Citizen Kane), ter conversado com Billie Holiday e ter ganho livros de Caryl Chessman, o Bandido da Luz Vermelha, que lutou dez anos contra o corredor da morte. Bunker, nome adequado para um sujeito que ficou guardado por 18 anos, certamente não tem uma história convencional para um escritor-presidiário. É o que ele conta em sua recém-lançada autobiografia, Educação de um bandido (Barracuda).

Morto em 19-7-2005 em Burbank, Calirfórnia, e nascido em Hollywood a 31-12-1933, Edward Bunker viveu os dois lados da tela. A mãe foi dançarina com pretensões a atriz, o pai um subalterno funcionário de um estúdio de LA. Ambos ausentes, desde cedo largaram o rebelde filho nas mãos do Estado policial yankee. O Estado o ensinou direitinho a ser um ladrão, um gigolô, um falsário, um traficante de drogas, um fugitivo. E, claro, um escritor.

Autor de “Nem os mais ferozes” (filmado como “Liberdade condicional”, Dustin Hoffman à frente do elenco), Bunker tem uma ligação umbilical com o cinema. Numa de suas saídas de reformatórios, caiu nas graças da ex-atriz e milionária excêntrica Louise Wallis. A mulher que lhe deu a primeira máquina de escrever o apresentou a gente como Tenessee Williams e ao grande mundo de Hollywood da época. Isso não deslumbrou Bunker. Ele deu as costas à vida fácil e, com ódio por qualquer autoridade e uma queda ardorosa pelo crime, acabou preso várias vezes, até cumprir 18 anos na cadeia, onde escreveu 6 romances.

O fudidaço Nem os mais ferozes, somado aos artigos que escrevia sobre a explosão do ódio racial no xadrez para revistas como Harper's Bazaar, aceleraram a saída do malaco da mítica penitenciária de San Quentin, para onde nunca mais voltou após se tornar um escritor conhecido. A fama o devolveu naturalmente a Hollywood – roteirista de “Expresso para o inferno” (Jon Voight, o pai da Angelina Jolie, é o protagonista). Atuou em dezenas de filmes, sendo mais lembrado por sua participação em “Cães de aluguel”, de Tarantino, como Mister Blue.

Bunker integra a linhagem de autores-detentos formada por gente como Dostoiévski (“Recordações da casa dos mortos”), Genet (“Nossa Senhora das Flores”) e Abu-Jammal (“Ao vivo do corredor da morte”), passando pelos brasucas Jocenir (“Diário de um detento”), Luiz Mendes (“Memórias de um sobrevivente”), Hiroito Joanides (“Boca do Lixo”) e Graciliano Ramos (“Memórias do cárcere”). Mas, em vez de se pautar por uma vertigem de beletrismo – freqüente em Mendes e Joanides, por exemplo –, Eddie preferiu o caminho das pedras de um Graciliano: ação contínua, direta, despida de ornamento, em que as raras reflexões brilham como o sol refletido numa navalha aberta no pátio da prisão.

Uma ética encouraçada pela estética, sem piedade tampouco ressentimento. O ladrão Bunker é mais honesto que muito escritor bundão que arrota termos como “integridade”. Nem preciso dizer que o texto do autor, ferrenho defensor de uma moral em que os cagüetas são escória, seria capaz de arrancar rubor da cara emperobada de 99% de nossos políticos – se eles soubessem ler.

Correndo atrás da prosa agilíssima do californiano, poucas vezes se pode afirmar que a tese da literatura como espelho (e justificativa) da existência tenha sido cumprida tão à risca. Moldado na porrada segundo a ética do xadrez, sem nem um pingo de autoindulgência Bunker assume todas as cagadas que faz, jamais delegando ao determinismo social sua vida bandida, assim como se orgulha de sua sagacidade no submundo e não se julga abaixo ou acima de nenhum criminoso – só não alivia para o lado de dedoduros, pedófilos e estupradores. Essa ética durona é expressa com intensidade por um texto reto, pontuado por um humor surpreendente. Além, lógico, de um mergulho na estranha lógica dos fora-de-lei, impressiona em sua autobiografia a minúcia na descrição de detalhes concretos. Aqui, o concreto realismo não é estilo – é a única escapatória.

Estilo que o próprio Bunker explica por ter sido preso durante muito tempo: quando você passa longas horas sem fazer nada nem ver ninguém, o mínimo acontecimento se torna um evento crucial e jamais é arrancado de sua memória – único bem que um homem sem liberdade pode acumular e transformar em estratégia, dinheiro, sabedoria, e, neste caso, literatura. “Os traços que me fizeram lutar contra o mundo são também os que me fizeram vencer”, finaliza o bom ladrão.

*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).

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