Jamais confunda grão de amor com grande amor
* Por Eduardo Murta
Mãos, para Camilo, eram bem mais que extensão do corpo. Eram uma espécie de mapa do universo. Lia, desde cedo, o tracejado das palmas em feiras, nas festanças típicas, nos acontecimentos mais reservados. Montava ali sua tenda e, ninguém nunca tendo vindo reclamar de volta, se julgava bem-sucedido no que se propusera a fazer. Rejeitara ofício em comércio, em ranchos, banco ou cartório, porque buscava outras velocidades na vida. Destas em que, manso, não lhe faria mal algum ser atropelado por uma borboleta. Ao contrário, sinal de sorte.
Era isso o que buscava e nisso havia se realizado. Formara pequeno império. Fazendas com curso d'água, cabeças de gado aos milhares, caminhonetes importadas, viagens à Europa e até ações na bolsa. Caminhava pela sombra. Até que, maldito dia, aquele homem fora bater-lhe à porta. Econômico na palavra, sem dizer de onde viera, nem a que mando. Pediu apenas urgência para o que iria contar: que simplesmente fugisse. Haviam decretado sua sentença de morte.
Deu o recado, se virou e partiu. Camilo não se permitiu impressionar. A dentuça protuberante do desconhecido era o que mais lhe ganhara a atenção. Acenou aos jagunços, a que deixassem seguir. Mas debandou de idéia, súbito, e ordenou que o barrassem ao portão. Logo percebeu a mudança de atmosfera. Farejava medo de longe. A urina se desenhando à roupa do sujeito, recomendou que não lhe temesse. Queria só o nome de quem o mandara.
O enviado foi ouvindo a vozinha pausada, delicada de Camilo, que lhe conferira até a fama de Sinhazinha. Desdenhava daquilo, porque jamais fora de destilar rancor. Fazia adoecer o coração. E que problema havia em cuidar religiosamente das unhas de mãos e pés?... - as criadas num massageio que lhe embalavam os sonhos. Mas largasse esses ares amenos e voltasse ao mensageiro. O suor iluminando a face mulata, o interrogado assentiu que revelaria o motivo, mas nenhum ponto mais.
Limitou-se: "Foi traição da palavra. Coisa pequena, mas traição". Camilo sem entender, porque sempre se prendera rigorosamente ao que o mapeamento quiromântico permitisse. Ouviu e consentiu que o estranho seguisse. Como era, ele mesmo, um empregado do destino, se conformaria com o que o destino lhe trouxesse. De bom ou de ruim. Um mês mais e, no entra e sai de clientes, já havia se esquecido por inteiro daquele estado de coisas.
Foi assim, ao sabor do vento esfriando o abril, que acolheu a freguesia do sábado. Contou sete mulheres e dois homens à fila. Recebia à sombra da jaqueira. Passou a primeira - futuro bambo, capacidade mínima de transformar tudo aquilo. Vieram a segunda, o quinto, o oitavo. Ninguém que surpreendesse. Vidinhas para lá de sonolentas.
A última, presumiu, só reforçaria a sensação do dia insosso. Cheirava a tristeza malsã. Veio se aproximando em lentidão já da idade. Cumpria ali pelos 80 anos. Qual nada! Os olhos começando a lhe soar familiares. Valha-me, Deus!!! Cravou-lhe um punhal de prata ao dorso da mão, fixando-a à mesa de madeira. E, ligeira, logo tinha uma segunda arma, igualmente brilhante, lustrada, à garganta de Camilo.
Ele aturdido, ela dizendo que era paga de amor traído. Que, por palavra dele, abandonara tudo - família, lugar, lembranças - por um certo Onofre, radicado ali pelas baixadas da Lagoa Milagrosa. Não imploraria, confirmava que se lembrava dela, sim, mas que havia um mal-entendido. Que a frase verdadeira era: "Para ele, você é um grão de amor". Ela, agora com os braços trêmulos, mas vigorosos, foi atravessando-lhe a lâmina à pele abaixo do queixo. Contou ao delegado, mais tarde, o sangue ainda lhe tomando as roupas, que era pura precaução. A que nunca, outra vez, ele fizesse mais gente morrer de amor em vão. Inutilmente sangrar esperanças.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
* Por Eduardo Murta
Mãos, para Camilo, eram bem mais que extensão do corpo. Eram uma espécie de mapa do universo. Lia, desde cedo, o tracejado das palmas em feiras, nas festanças típicas, nos acontecimentos mais reservados. Montava ali sua tenda e, ninguém nunca tendo vindo reclamar de volta, se julgava bem-sucedido no que se propusera a fazer. Rejeitara ofício em comércio, em ranchos, banco ou cartório, porque buscava outras velocidades na vida. Destas em que, manso, não lhe faria mal algum ser atropelado por uma borboleta. Ao contrário, sinal de sorte.
Era isso o que buscava e nisso havia se realizado. Formara pequeno império. Fazendas com curso d'água, cabeças de gado aos milhares, caminhonetes importadas, viagens à Europa e até ações na bolsa. Caminhava pela sombra. Até que, maldito dia, aquele homem fora bater-lhe à porta. Econômico na palavra, sem dizer de onde viera, nem a que mando. Pediu apenas urgência para o que iria contar: que simplesmente fugisse. Haviam decretado sua sentença de morte.
Deu o recado, se virou e partiu. Camilo não se permitiu impressionar. A dentuça protuberante do desconhecido era o que mais lhe ganhara a atenção. Acenou aos jagunços, a que deixassem seguir. Mas debandou de idéia, súbito, e ordenou que o barrassem ao portão. Logo percebeu a mudança de atmosfera. Farejava medo de longe. A urina se desenhando à roupa do sujeito, recomendou que não lhe temesse. Queria só o nome de quem o mandara.
O enviado foi ouvindo a vozinha pausada, delicada de Camilo, que lhe conferira até a fama de Sinhazinha. Desdenhava daquilo, porque jamais fora de destilar rancor. Fazia adoecer o coração. E que problema havia em cuidar religiosamente das unhas de mãos e pés?... - as criadas num massageio que lhe embalavam os sonhos. Mas largasse esses ares amenos e voltasse ao mensageiro. O suor iluminando a face mulata, o interrogado assentiu que revelaria o motivo, mas nenhum ponto mais.
Limitou-se: "Foi traição da palavra. Coisa pequena, mas traição". Camilo sem entender, porque sempre se prendera rigorosamente ao que o mapeamento quiromântico permitisse. Ouviu e consentiu que o estranho seguisse. Como era, ele mesmo, um empregado do destino, se conformaria com o que o destino lhe trouxesse. De bom ou de ruim. Um mês mais e, no entra e sai de clientes, já havia se esquecido por inteiro daquele estado de coisas.
Foi assim, ao sabor do vento esfriando o abril, que acolheu a freguesia do sábado. Contou sete mulheres e dois homens à fila. Recebia à sombra da jaqueira. Passou a primeira - futuro bambo, capacidade mínima de transformar tudo aquilo. Vieram a segunda, o quinto, o oitavo. Ninguém que surpreendesse. Vidinhas para lá de sonolentas.
A última, presumiu, só reforçaria a sensação do dia insosso. Cheirava a tristeza malsã. Veio se aproximando em lentidão já da idade. Cumpria ali pelos 80 anos. Qual nada! Os olhos começando a lhe soar familiares. Valha-me, Deus!!! Cravou-lhe um punhal de prata ao dorso da mão, fixando-a à mesa de madeira. E, ligeira, logo tinha uma segunda arma, igualmente brilhante, lustrada, à garganta de Camilo.
Ele aturdido, ela dizendo que era paga de amor traído. Que, por palavra dele, abandonara tudo - família, lugar, lembranças - por um certo Onofre, radicado ali pelas baixadas da Lagoa Milagrosa. Não imploraria, confirmava que se lembrava dela, sim, mas que havia um mal-entendido. Que a frase verdadeira era: "Para ele, você é um grão de amor". Ela, agora com os braços trêmulos, mas vigorosos, foi atravessando-lhe a lâmina à pele abaixo do queixo. Contou ao delegado, mais tarde, o sangue ainda lhe tomando as roupas, que era pura precaução. A que nunca, outra vez, ele fizesse mais gente morrer de amor em vão. Inutilmente sangrar esperanças.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
É fácil culpar os demais pelas nossas erradas escolhas. Em tudo a narrativa manteve o suspense e a surpresa. Prever o futuro, aqui está provado, é uma profissão de altíssimo risco. Quem quer ouvir má notícia?
ResponderExcluirCada um interpreta a sua maneira
ResponderExcluire conveniência.
Uma mulher mal amada me dá medo...
Abração Murta