Um banquinho, um violão
* Por Marcelo Sguassábia
* Por Marcelo Sguassábia
Ilustração: Thiago Cayres
- O pato...
- Seu João, o senhor tá cantando muito baixinho. A gente quase que nem escuta o que diz a letra da música.
- Vinha cantando alegremente, quem-quem...
- Posso fazer pro senhor um caldo forte de gengibre, canela, vinagre e limão. Não me custa nada, é tiro e queda pra deixar a garganta zero bala. Tem que cantar alto, que nem o seu xará João Mineiro, aquele que faz dupla com o Marciano.
- Quando o marreco sorridente pediu...
- Mas que coisa esquisita, parece que canta pra dentro. Enche o peito e solta o vozeirão, homem. Fica nesse nhem-nhem-nhem.
- Olha, se você não ficar quieta eu pego o violão e vou-me embora.
- Mas o senhor tá na sua casa, Seu João. Se alguém tem que ir embora sou eu, que comecei agora de arrumadeira aqui.
- Oi. Alô, é João. Tudo bem? Melhor cancelar o show no Carnegie Hall, não estou conseguindo ensaiar.
- (...)
- Não, não é barulho nem fumaça de cigarro. Também não é ácaro no tapete. É uma arrumadeira que me apareceu aqui, a mulher me desconcentra...
- (...)
- Tudo bem, vou tentar de novo. Mas já vai arrumando aí uma desculpa pro cancelamento.
- Se você disser que eu desafino, amor...
- Diz que o senhor é cantor, né. O porteiro que falou. Mas eu não lembro do senhor nem no “Raul Gil” e nem no “Ídolos”. Senhor fica assim de terno dentro de casa o dia todo, é? Ficava melhor com uns blazer listado, a camisa meio aberta assim no peito e um correntão de ouro saindo pra fora, aí sim ficava com o look nos trinques. O doutor não ia nem parar em casa, de tanto show que ia aparecer. Feira agropecuária, quermesse, comício...
- Saiba que isso em mim provoca imensa dor...
- Seu João, desculpa interromper, mas o senhor podia me emprestar o banquinho pra eu tirar o pó de cima do armário? É só um instantinho, já devolvo já.
- Pois há menos peixinhos a nadar no mar...
- Seu Gilberto, o senhor se incomoda de levantar um pouco os pé do tapete pra eu poder limpar?
- Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim...
- Alô, Bebel, essa arrumadeira... foi Miúcha que indicou, é? Pois eu digo que sua mãe guardou mágoa de mim, heim filha? Mais quinze minutos aqui com essa mulher e eu abandono a vida artística.
(...)
- Tá, um beijo pra você também.
- Olha, minha senhora, vamos combinar uma coisa. Eu dou agora o seu dinheiro, leva também um autógrafo meu e trata de pegar logo o rumo da sua maloca. Não precisa terminar o serviço. Tá bem assim?
- E eu vou fazer o que com o seu autógrafo? Eu nunca que vi o senhor, ainda se fosse do grupo Molejo, vá lá. O senhor tá se achando. Cresce e aparece, velho metido.
- Nem se aproxime com esta cera! Não tem que passar cera no assoalho, não. O surfactante aniônico da fórmula me aniquila o Lá Bemol e já me deixou afônico duas horas antes de um show no Budokan, em Tóquio. A alcanolamida, que é outra substância que exala da cera, fica em suspensão no ar e interfere na afinação do violão.
- Não há pai de santo baiano que segure o instrumento afinado. A senhora se afaste, antes que eu lavre um BO contra a sua pessoa.
- Bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim-bim... é só isso o meu baião, e não tem mais nada não...bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim...
- Pois é, ainda bem que o senhor avisa que não vai sair disso mesmo, né? Bim-bom, bim-bom, bim, bim, bim, podia ter uma segunda parte pra mudar um pouco essa lenga-lenga. Ô coisa chata, seu Giba.
- Giba é o diabo que te carregue. Some daqui, Dona.
- Dona Esmeraldina, sua criada. O senhor é que é muito do malcriado, Seu João. Quer dizer, Seu Gilberto.
- Tristeza não tem fim, felicidade sim... Tristeza não tem fim...
* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
- O pato...
- Seu João, o senhor tá cantando muito baixinho. A gente quase que nem escuta o que diz a letra da música.
- Vinha cantando alegremente, quem-quem...
- Posso fazer pro senhor um caldo forte de gengibre, canela, vinagre e limão. Não me custa nada, é tiro e queda pra deixar a garganta zero bala. Tem que cantar alto, que nem o seu xará João Mineiro, aquele que faz dupla com o Marciano.
- Quando o marreco sorridente pediu...
- Mas que coisa esquisita, parece que canta pra dentro. Enche o peito e solta o vozeirão, homem. Fica nesse nhem-nhem-nhem.
- Olha, se você não ficar quieta eu pego o violão e vou-me embora.
- Mas o senhor tá na sua casa, Seu João. Se alguém tem que ir embora sou eu, que comecei agora de arrumadeira aqui.
- Oi. Alô, é João. Tudo bem? Melhor cancelar o show no Carnegie Hall, não estou conseguindo ensaiar.
- (...)
- Não, não é barulho nem fumaça de cigarro. Também não é ácaro no tapete. É uma arrumadeira que me apareceu aqui, a mulher me desconcentra...
- (...)
- Tudo bem, vou tentar de novo. Mas já vai arrumando aí uma desculpa pro cancelamento.
- Se você disser que eu desafino, amor...
- Diz que o senhor é cantor, né. O porteiro que falou. Mas eu não lembro do senhor nem no “Raul Gil” e nem no “Ídolos”. Senhor fica assim de terno dentro de casa o dia todo, é? Ficava melhor com uns blazer listado, a camisa meio aberta assim no peito e um correntão de ouro saindo pra fora, aí sim ficava com o look nos trinques. O doutor não ia nem parar em casa, de tanto show que ia aparecer. Feira agropecuária, quermesse, comício...
- Saiba que isso em mim provoca imensa dor...
- Seu João, desculpa interromper, mas o senhor podia me emprestar o banquinho pra eu tirar o pó de cima do armário? É só um instantinho, já devolvo já.
- Pois há menos peixinhos a nadar no mar...
- Seu Gilberto, o senhor se incomoda de levantar um pouco os pé do tapete pra eu poder limpar?
- Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim...
- Alô, Bebel, essa arrumadeira... foi Miúcha que indicou, é? Pois eu digo que sua mãe guardou mágoa de mim, heim filha? Mais quinze minutos aqui com essa mulher e eu abandono a vida artística.
(...)
- Tá, um beijo pra você também.
- Olha, minha senhora, vamos combinar uma coisa. Eu dou agora o seu dinheiro, leva também um autógrafo meu e trata de pegar logo o rumo da sua maloca. Não precisa terminar o serviço. Tá bem assim?
- E eu vou fazer o que com o seu autógrafo? Eu nunca que vi o senhor, ainda se fosse do grupo Molejo, vá lá. O senhor tá se achando. Cresce e aparece, velho metido.
- Nem se aproxime com esta cera! Não tem que passar cera no assoalho, não. O surfactante aniônico da fórmula me aniquila o Lá Bemol e já me deixou afônico duas horas antes de um show no Budokan, em Tóquio. A alcanolamida, que é outra substância que exala da cera, fica em suspensão no ar e interfere na afinação do violão.
- Não há pai de santo baiano que segure o instrumento afinado. A senhora se afaste, antes que eu lavre um BO contra a sua pessoa.
- Bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim-bim... é só isso o meu baião, e não tem mais nada não...bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim...
- Pois é, ainda bem que o senhor avisa que não vai sair disso mesmo, né? Bim-bom, bim-bom, bim, bim, bim, podia ter uma segunda parte pra mudar um pouco essa lenga-lenga. Ô coisa chata, seu Giba.
- Giba é o diabo que te carregue. Some daqui, Dona.
- Dona Esmeraldina, sua criada. O senhor é que é muito do malcriado, Seu João. Quer dizer, Seu Gilberto.
- Tristeza não tem fim, felicidade sim... Tristeza não tem fim...
* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
Que delícia de diálogo, fico imaginando
ResponderExcluira cara de pudim do João Gilberto diante
da tão sincera arrumadeira.
Muito divertido!
Parabéns!
Abraços
É bem possível, considerando a fama de mau-humorado, que uma cena semelhante a esta tenha acontecido. No final, a ficção diverte e se aproxima da realidade. Eu e meus sorrisos difíceis, dei risada aqui. Obrigada Marcelo.
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