Eros e Tanatos
“A vida é, afinal, luta renhida entre Eros e Tanatos. O padecimento do corpo é um berro de Eros, contra as vilanias de Tanatos”. O autor dessa lúcida constatação foi o psicanalista, excelente escritor e poeta mineiro Hélio Pellegrino (casado com a não menos excelente escritora Lya Luft) em deliciosa crônica publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 26 de junho de 1983, intitulada “Apologia da dor de dente”. Aliás, exaltar qualidades e criatividade em textos desse homem de extrema lucidez chega a ser redundante. Nunca li nada dele a que pudesse fazer a mínima restrição. Exagero meu? Longe disso.
Vejam o que escritores infinitamente mais ilustres, mourejados e melhores do que eu escreveram a seu respeito (conforme nota que consta do livro “Figuras do Brasil. 80 autores em 80 anos de Folha”). Mário de Andrade, por exemplo, escreveu que Pellegrino foi “um dos homens mais vivos da sua geração, um ‘vulcão caótico’”. Otto Lara Resende, por seu turno, classificou-o de “o Maiakovski de batina”. Poderia citar outros tantos autores, com apreciações do mesmo teor, ou ate mais bombásticas, mas não o farei para não cansar o leitor. Até porque, estas reflexões não são, propriamente, sobre Hélio Pellegrino, que morreu em 23 de março de 1988, no Rio de Janeiro, pouco mais de dois meses depois de completar 64 anos de idade. São sobre vida e morte. E sobre os dois instintos básicos do homem, em permanente conflito, o de preservação (simbolizado por Eros, o deus do amor) e o de destruição (representado pelo implacável Tanatos).
Aliás, este é o título do livro que estou escrevendo, em que relaciono três dezenas de escritores, que exaltaram com alma e entusiasmo a vida, mas que... cometeram suicídio, por várias razões. Alguns o fizeram por descobrir que eram portadores de doenças incuráveis, outros por desgosto amoroso, outros por não conseguirem se livrar do álcool e das drogas, outros ainda num acesso de insânia. E os motivos são bastante variáveis. Todos, contudo, deixaram que na “luta renhida entre Eros e Tanatos”, o segundo triunfasse. Não foi, óbvio, o caso de Pellegrino.
A seu respeito, reproduzo mais um trecho da nota do livro comemorativo aos 80 anos da Folha de S. Paulo que citei acima, que informa: “Com Otto Lara, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino formava o grupo dos ‘Quatro Mineiros’ – amigos toda a vida. No romance ‘O Encontro Marcado’ de Sabino, ele é o personagem Mauro Lombardi”. Creio que não preciso apresentar mais nenhuma justificativa para ter esse escritor entre os meus preferidos. Isso sem falar no fato que foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, ao qual estou vinculado sentimentalmente (posto que não seja seu membro).
Por se tratar de um tema amplo e complexo, voltarei, certamente, a ele, e espero que com maior objetividade do que hoje. Pergunto, porém, a vocês (e a todo o momento faço esse mesmo questionamento a mim próprio): O que é a vida? O que é a morte? Por que nascermos, se um dia iremos morrer? Não se trata de uma incoerência, de um desperdício da natureza? Estou me aproximando de sete décadas de vida e ainda não consegui compreender todo esse processo de construção e destruição e, sobretudo, essa contradição de levar anos aprendendo a viver e, quando se supõe que se sabe... Está na hora de partir. Tanto a vida, quanto a morte, portanto, são insondáveis mistérios. Mais misterioso ainda, para mim, é saber que em determinadas circunstâncias Tanatos leva a melhor sobre Eros e algumas pessoas abreviam o fim com as próprias mãos. Que desencanto, que sofrimento psicológico, que desespero é este que leva tanta gente a se destruir?!
A vida é muito mais do que meros conjuntos de aminoácidos combinando para formar proteínas componentes de células, tecidos, órgãos, estruturas completas etc. Extrapola a questão biológica e entra em uma dimensão muito mais misteriosa, nebulosa e sutil, que os filósofos costumam denominar de “metafísica” e os religiosos de “espiritual”. Há, de fato, algo impalpável que anatomista algum consegue detectar e dissecar que nos comanda e caracteriza. Há uma essência que nenhum cientista, por mais perito que seja, jamais conseguiu isolar, separar ou mesmo descrever com precisão, posto que é imaterial.
Para mim, a palavra “viver” justifica, plenamente, sua condição de verbo. Caracteriza “ação” e não apenas uma e única, mas inúmeras, em quantidade quase infinita. Já morrer... não faz sentido. A menos que a pessoa se suicide, ninguém “age” para morrer. Esse colapso absoluto e completo, às vezes repentino, não raro fulminante, mas via de regra lento em demasia, atinge-nos sempre à nossa revelia. Sinto, hoje, a mesmíssima perplexidade que senti pela primeira vez que vi um animal morto. Era, por coincidência, meu cãozinho de estimação. Eu tinha apenas quatro anos e não acreditava que nunca mais poderia brincar com aquele animalzinho dócil e amável ao qual me apegara tanto.
Quando, pela primeira vez, perdi um parente (uma tia e eu estava, então, com oito anos de idade), entendi que esse era o fim de todo o mundo. Desde então, e até hoje, nunca compreendi o por quê. Houve tempos em que cheguei a achar que não morreria nunca, que a morte era para os fracos e os tristes, ou seja, para os que não amavam a vida. Ainda hoje, tenho tentação de pensar dessa maneira.
A palavra “viver” traz, implícita, dezenas de outros verbos vinculados, como amar, sofrer, sorrir, chorar, lutar, vencer e tantos e tantos outros. E morrer? Quais verbos se lhe associam? Apodrecer? Se decompor? Desaparecer? Sei lá! Há, todavia, não sei por que cargas d’água (é outra coisa que jamais consegui entender) pessoas que virtualmente não vivem, mas se limitam a “existir”, o que é bem diferente. Fogem dos sentimentos, economizam ações e se julgam merecedoras apenas de vantagens e de proteção, sem que façam nada para justificar esse suposto merecimento. Estas, mesmo que não saibam, estão perdendo a batalha para Tanatos. Tento ajudá-las, quando posso, mas...
Boa leitura.
O Editor.
“A vida é, afinal, luta renhida entre Eros e Tanatos. O padecimento do corpo é um berro de Eros, contra as vilanias de Tanatos”. O autor dessa lúcida constatação foi o psicanalista, excelente escritor e poeta mineiro Hélio Pellegrino (casado com a não menos excelente escritora Lya Luft) em deliciosa crônica publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 26 de junho de 1983, intitulada “Apologia da dor de dente”. Aliás, exaltar qualidades e criatividade em textos desse homem de extrema lucidez chega a ser redundante. Nunca li nada dele a que pudesse fazer a mínima restrição. Exagero meu? Longe disso.
Vejam o que escritores infinitamente mais ilustres, mourejados e melhores do que eu escreveram a seu respeito (conforme nota que consta do livro “Figuras do Brasil. 80 autores em 80 anos de Folha”). Mário de Andrade, por exemplo, escreveu que Pellegrino foi “um dos homens mais vivos da sua geração, um ‘vulcão caótico’”. Otto Lara Resende, por seu turno, classificou-o de “o Maiakovski de batina”. Poderia citar outros tantos autores, com apreciações do mesmo teor, ou ate mais bombásticas, mas não o farei para não cansar o leitor. Até porque, estas reflexões não são, propriamente, sobre Hélio Pellegrino, que morreu em 23 de março de 1988, no Rio de Janeiro, pouco mais de dois meses depois de completar 64 anos de idade. São sobre vida e morte. E sobre os dois instintos básicos do homem, em permanente conflito, o de preservação (simbolizado por Eros, o deus do amor) e o de destruição (representado pelo implacável Tanatos).
Aliás, este é o título do livro que estou escrevendo, em que relaciono três dezenas de escritores, que exaltaram com alma e entusiasmo a vida, mas que... cometeram suicídio, por várias razões. Alguns o fizeram por descobrir que eram portadores de doenças incuráveis, outros por desgosto amoroso, outros por não conseguirem se livrar do álcool e das drogas, outros ainda num acesso de insânia. E os motivos são bastante variáveis. Todos, contudo, deixaram que na “luta renhida entre Eros e Tanatos”, o segundo triunfasse. Não foi, óbvio, o caso de Pellegrino.
A seu respeito, reproduzo mais um trecho da nota do livro comemorativo aos 80 anos da Folha de S. Paulo que citei acima, que informa: “Com Otto Lara, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino formava o grupo dos ‘Quatro Mineiros’ – amigos toda a vida. No romance ‘O Encontro Marcado’ de Sabino, ele é o personagem Mauro Lombardi”. Creio que não preciso apresentar mais nenhuma justificativa para ter esse escritor entre os meus preferidos. Isso sem falar no fato que foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, ao qual estou vinculado sentimentalmente (posto que não seja seu membro).
Por se tratar de um tema amplo e complexo, voltarei, certamente, a ele, e espero que com maior objetividade do que hoje. Pergunto, porém, a vocês (e a todo o momento faço esse mesmo questionamento a mim próprio): O que é a vida? O que é a morte? Por que nascermos, se um dia iremos morrer? Não se trata de uma incoerência, de um desperdício da natureza? Estou me aproximando de sete décadas de vida e ainda não consegui compreender todo esse processo de construção e destruição e, sobretudo, essa contradição de levar anos aprendendo a viver e, quando se supõe que se sabe... Está na hora de partir. Tanto a vida, quanto a morte, portanto, são insondáveis mistérios. Mais misterioso ainda, para mim, é saber que em determinadas circunstâncias Tanatos leva a melhor sobre Eros e algumas pessoas abreviam o fim com as próprias mãos. Que desencanto, que sofrimento psicológico, que desespero é este que leva tanta gente a se destruir?!
A vida é muito mais do que meros conjuntos de aminoácidos combinando para formar proteínas componentes de células, tecidos, órgãos, estruturas completas etc. Extrapola a questão biológica e entra em uma dimensão muito mais misteriosa, nebulosa e sutil, que os filósofos costumam denominar de “metafísica” e os religiosos de “espiritual”. Há, de fato, algo impalpável que anatomista algum consegue detectar e dissecar que nos comanda e caracteriza. Há uma essência que nenhum cientista, por mais perito que seja, jamais conseguiu isolar, separar ou mesmo descrever com precisão, posto que é imaterial.
Para mim, a palavra “viver” justifica, plenamente, sua condição de verbo. Caracteriza “ação” e não apenas uma e única, mas inúmeras, em quantidade quase infinita. Já morrer... não faz sentido. A menos que a pessoa se suicide, ninguém “age” para morrer. Esse colapso absoluto e completo, às vezes repentino, não raro fulminante, mas via de regra lento em demasia, atinge-nos sempre à nossa revelia. Sinto, hoje, a mesmíssima perplexidade que senti pela primeira vez que vi um animal morto. Era, por coincidência, meu cãozinho de estimação. Eu tinha apenas quatro anos e não acreditava que nunca mais poderia brincar com aquele animalzinho dócil e amável ao qual me apegara tanto.
Quando, pela primeira vez, perdi um parente (uma tia e eu estava, então, com oito anos de idade), entendi que esse era o fim de todo o mundo. Desde então, e até hoje, nunca compreendi o por quê. Houve tempos em que cheguei a achar que não morreria nunca, que a morte era para os fracos e os tristes, ou seja, para os que não amavam a vida. Ainda hoje, tenho tentação de pensar dessa maneira.
A palavra “viver” traz, implícita, dezenas de outros verbos vinculados, como amar, sofrer, sorrir, chorar, lutar, vencer e tantos e tantos outros. E morrer? Quais verbos se lhe associam? Apodrecer? Se decompor? Desaparecer? Sei lá! Há, todavia, não sei por que cargas d’água (é outra coisa que jamais consegui entender) pessoas que virtualmente não vivem, mas se limitam a “existir”, o que é bem diferente. Fogem dos sentimentos, economizam ações e se julgam merecedoras apenas de vantagens e de proteção, sem que façam nada para justificar esse suposto merecimento. Estas, mesmo que não saibam, estão perdendo a batalha para Tanatos. Tento ajudá-las, quando posso, mas...
Boa leitura.
O Editor.
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Viver para mim não se define, a gente se joga
ResponderExcluirmergulha ou fica estagnado vendo o tempo passar.
Já a morte...às vezes a vejo como uma opção para
quem já sa cansou ou desistiu...faz parte do mecanismo
apesar da maioria declinar dela.
beijos
Quando vamos ao cemitério, meu filho mostra toda sua carga dramática e racional ao se referir à morte como um momento de entrega do corpo aos vermes, e nada mais.
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