terça-feira, 23 de novembro de 2010




Encantado

* Por Risomar Fasanaro

Encantado. Nenhum outro nome seria mais adequado àquela cidadezinha perdida no meio do mato. Um lugarejo distante no interior do Piauí. Mas isso eu só percebi muito tempo depois.
Recém formado, fui contratado para projetar e dirigir a construção de uma ponte sobre o rio que cortava o lugarejo.
Estranhamente não fora contratado pela prefeitura, mas sim por seu Matoso, o homem mais rico de Encantado, o dono de um engenho de açúcar. Logo fiquei sabendo por quê.
É que a ponte ligaria o engenho dele ao restante do lugar, e isso facilitaria o transporte de açúcar, rapadura, além de facilitar o acesso dos trabalhadores. Sem a ponte, a ida até o engenho levava mais de uma hora de carro; e isso vinha prejudicando os seus contatos comerciais.
Cheguei à boca da noite e fui diretamente falar com seu Matoso, e foi ali que a vi pela primeira vez.
Não parecia uma mulher, mas uma visão de nuvem, tal a suavidade de sua pessoa, do seu andar que mais parecia um vôo com um longo vestido branco de cambraia e rendas. Leve, fino, esvoaçante. Era Helena. Nossos olhos apenas se cruzaram e ela desapareceu no interior da casa. Uma visão de relance, contudo, nunca a esqueci, e hoje, escrevendo sobre aquela noite, é como se a tivesse aqui, diante de mim, com aqueles imensos e tristes olhos negros.
Pensei que fosse filha dele, tão jovem era, mas logo depois seu Matoso me informava que se casara recentemente com ela, mas andava preocupado porque a moça andava doente e nenhum médico descobria o que era.
Seu Matoso acertou comigo o prazo de entrega do projeto e da construção da ponte, o preço, falou sobre a equipe que trabalharia comigo e só.
Chamou uma das criadas para me encaminhar até o quarto onde ficaria durante o tempo que ali permanecesse.
Muito falante, Ritinha foi logo me contando sobre a doença da patroinha, como ela a chamava. Disse que seu Matoso enviuvara havia um ano, e que logo depois se casara com Helena, e que agora a moça emagrecera mais de dez quilos em um mês e pra ela aquilo era mandinga. Que se o patrão deixasse, ela levava a moça a um terreiro e acabava com aquela demanda. São muitos segredos nessa casa, moço, muitos segredos...
Percorrendo o longo corredor que nos levava até o quarto, senti vontade de perguntar que segredos eram aqueles, mas não achei conveniente; preferi me manter em silêncio, ouvindo o que a moça dizia.
A casa era uma construção do século XVIII que seu Matoso herdara do pai. Uma casa muito antiga, e ali, não sei se movido pelo que ouvia, ou pela arquitetura, a decoração colonial, senti que os mistérios moravam naquelas paredes, e que todos eles se dissolviam dentro da noite.
O calor era infernal, e demorei a dormir. Abri a janela e o cheiro de manjericão invadiu o quarto.
Aos poucos fui sabendo um pouco sobre o mal que acometia Helena. Ela era sobrinha do seu Matoso, e logo depois da morte da tia, ele a pedira em casamento, e a moça aceitou.
Mas um mês depois Helena começou a perder as cores, sobreveio a magreza, o fastio. Dormia sem parar, um sono estranho que a interrompia no meio de qualquer atividade.
Depois, passou a desmaiar. Ela dizia que antes do desmaio lhe aparecia uma moça negra, muito bonita, vestida de amarelo e dourado, com um espelho na mão, que dizia ter um segredo para lhe contar, mas que ela sentia tanto medo daquela moça, que perdia os sentidos.
Havia meses que Helena estava doente, e seu Matoso consultara os melhores médicos da capital, mas nada adiantara.
Para alegrar a mulher, ele mandara buscar a irmã, tia de Helena, para ver se ela melhorava.
Corália, a tia, levou a moça aos benzedores do lugarejo, mas não adiantou nada.
-Isso não se resolve com benzimento. Carece mesmo é de um pai-de-santo, dizia Ritinha. Mas a tia, muito católica, não aceitava, e seu Matoso proibiu qualquer tentativa de se recorrer a espiritismo, para tratar a mulher.
-O que ela diz, filha? Perguntava a tia.
-Ela diz que quer me contar um segredo.
-E por que você não pergunta que segredo é esse?
Porque fico com tanto medo que minha vista escurece e não vejo mais nada.
Eu saía toda manhã para a construção e só via Helena no café da manhã, mal trocávamos algumas palavras, mas aquela mulher, cercada de mistério, mexia comigo.
A ponte já estava quase concluída, mas eu procurava retardar a finalização, para poder conviver mais com ela.
Um dia, depois de tanto insistir, Ritinha convenceu Corália a ir com a moça a um terreiro bem distante dali, onde havia um pai de santo que segundo ela, curava todo mundo. Foram. Escondidas de seu Matoso as três saíram logo após o almoço em direção ao terreiro.
Helena e Corália entraram no terreiro um pouco receosas. Nunca tinham visto um local como aquele. Um altar com inúmeras estatuetas de orixás e várias oferendas com frutas, flores, velas...Cinco moças vestidas com trajes africanos ladeavam o pai de santo que as recebeu.
Pai Dindo jogou os búzios, e disse:
-Aqui quem está respondendo seu jogo é Oxum. Você é filha de Oxum. É ela essa moça de amarelo e dourado. Quando ela aparecer, pergunte o que ela quer.
As moças ao ouvirem o nome de Oxum começaram a cantar, formando um círculo em volta de Helena:
“Sinda os barqeiros de Sinda
Sinda que navega no mar
Sinda de minha mãe Oxum
Ora iei ieu
Sinda do meu pai Oxalá
Epá bá bá...”
O pai de santo se concentrou e recebeu um caboclo, que pondo a mão sobre a cabeça da moça disse:
- Não estou autorizado a dizer o que é. Só Oxum vai lhe contar que segredo é esse. Mas ela só pode dizer lá na sua casa. Oxum protege suas filhas, não deixa que nenhum mal lhes aconteça. Confie em sua mãe, minha filha. Vocês têm de reunir toda a família e rezar um terço todas as noites. Oxum vai aparecer, e quando isso acontecer, você terá de perguntar a ela qual é o segredo.
No caminho de volta, a tia confortava a moça:
-Não tenha medo, Helena, pergunte à moça o que ela quer lhe contar. É o único jeito de você se curar, minha filha. Pode ser alguém que morreu sem cumprir alguma promessa, e enquanto você não perguntar, ela não vai sair de perto de você. Pode ficar assim a vida toda. Você definha, definha, até morrer.
-Vou ficar ao seu lado, filha, vou segurar suas mãos durante todo o terço, não precisa ter medo. Vamos estar ali, Ritinha e eu.
Eu estava na varanda quando as três chegaram, antes de seu Matoso voltar. Ritinha me contou tudo como fora, o medo das duas mulheres, reproduziu a cantiga para eu ouvir, e disse o que o pai de santo mandara fazer. Quem sabe ela percebia meu interesse em Helena? Não sei.
Eu estava lá na noite em que tudo aconteceu. A família se reuniu para rezar o terço. Era a última noite que passava naquela casa. A ponte estava concluída e no dia seguinte eu partiria.
Sou ateu, mas o encantamento que aquela mulher produzira em mim desde a primeira vez que a vira, fazia com que participasse daquela toda de orações.
Vi quando Helena que estava sentada à minha frente, ficou pálida, suando muito, e de repente desvencilhou-se das mãos da tia e de Ritinha, e saiu correndo em direção à porta dos fundos da casa.
Na sala o maior silêncio. Ninguém se mexia. Depois de uns vinte minutos ouvimos um baque. Corremos até os fundos e vimos a moça estendida no chão com um ramo de alecrim verdinho, orvalhado nas mãos.
Apressei-me a socorrê-la. Era a minha chance de tê-la perto de mim. A única.
Ritinha foi buscar álcool, esfregaram nas mãos dela e Helena voltou a si. Levantou-se bruscamente, encarou o marido com expressão que não entendi se de raiva ou de desprezo, e retirou-se para o quarto. Lá se trancou e por mais que se tentasse, não abriu a porta, não atendeu a ninguém.
No dia seguinte bem cedo, antes que alguém acordasse Helena partiu. Não deixou um bilhete, uma carta, me disse Ritinha.
O que foi feito do seu Matoso e daquela família não sei porque saí naquele mesmo dia em que ela se foi.
E por mais que durante todos esses anos eu tentasse encontrá-la, nunca mais a vi. Mas é como se ela estivesse aqui, à minha frente. Jamais me esqueci daquela mulher que saíra só com a roupa do corpo, deixando atrás de si apenas o mistério.


* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

4 comentários:

  1. E pelo jeito eu também...
    Promete um dia me contar o segredo?
    Adorei!
    Beijos

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  2. Coisas do além, nas quais até os mais céticos preferem respeitar.

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  3. Obrigada, amigas queridas, pelos comentários. Se nem sempre tenho escrito é porque meu computador está com problemas, mas tenho lido praticamente todos textos do Blog. A lentidão da máquina é que está demais e dificulta a postagem.
    Beijos

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