quarta-feira, 17 de novembro de 2010




Dicionário da crueldade

* Por Mara Narciso

Urdir reações contra a maldade humana, ou melhor, a desumana perversidade é um exercício mental exaustivo. Os malfeitos chegam sem interrupção, e ainda assim não se é informado de boa parte dos acontecimentos, mesmo com câmeras e celulares em todo lugar. A malvadez humana é tão infinita quanto a própria estupidez.
A dominação de um grupo ou pessoa por outro grupo ou pessoa é uma constante. Se há dois indivíduos, um quer dominar o outro, impondo a mudança do seu pensamento, sua moral, suas atitudes, sua maneira de ser, e até de falar.
O mais forte, ou aquele que pensa ser o mais forte, o que pode mais, quer a pulso oprimir o outro, fazer valer a sua vontade. Caso ambos morem na mesma casa, a vontade dessa pessoa dominadora tenta prevalecer como a certa, a melhor, a única, a verdadeira. Coisas desimportantes parecem incomodar e de fato importunam um ou os dois elementos dessa dupla, que não se tolera.
A mulher é quem reclama mais, de seus homens sujos, brutos, que insultam, mudam o canal da TV para irritar, não cumprem obrigações, traem, entram e saem sem falar, voltam de madrugada quebrando tudo, ou nem voltam. Tudo e nada são motivos para agressão verbal e física.
Mulheres violentas gritam com seus maridos ou namorados, os agridem fisicamente e arrebentam objetos na cabeça deles. Os homens, mais fortes 30%, podem sucumbir às ameaças, e por vergonha não contam nada, mesmo que tenham de ir ao Pronto Socorro com alguma parte quebrada.
Também existem amigos que se utilizam da dominação. Impõem ao fraco o seu gosto, obrigam a torcer pelo seu time, a ir à sua igreja e a votar no seu candidato. Tanto há quem goste de mandar e impor, quanto tem quem aceite se submeter, e dobre os joelhos para o opressor.
Quando o oprimido idoso é pai ou mãe que não consegue mais viver só, fica preso em casa, no abandono, mas seu benefício é recolhido, e empréstimos são feitos em seu nome. A inabilidade do velho irrita os descendentes, que os punem com maus-tratos. São humilhados, ficam sem banho, e alguns passam fome e sede. Os agressores começam com ameaças que vão se intensificando para berros e surras. A TV mostra a prova em vídeo: leva pancada de filhos, netos, ou desconhecidos, supostos cuidadores. Têm os cabelos puxados, a cabeça jogada contra a parede, a pele arrancada, os dedos retorcidos, os ossos quebrados.
A criança é tão vulnerável quanto o idoso, ainda mais quando não pode falar. Vemos meninos aterrorizados, espancados, torturados, moídos, sangrando, sofrendo nas mãos de loucos, parentes ou não. O rol de torpezas não termina.
Um adulto se junta com outros dois para arrancar as unhas e dentes, cortar a língua com alicate, amarrar as mãos para o alto com arame, ou ainda fazer a criança comer as próprias fezes ou o vômito, dia após dia, por meses. Apertam o pescoço, arremetem contra a cama ou o chão, ou então jogam pela janela. Virou lugar-comum pais torturar filhos pequenos, numa crueldade que visa vingar-se do ex-cônjuge, e quando perdem o controle da tortura e matam, armam uma cena cinematográfica para escapar.
Não é preciso ligar a TV nos canais de sangue para ver crueldade requintada, onde o supliciado sangra até morrer. Cenas dantescas como o pai que aperta o pescoço do filho de dois meses e quebra a clavícula da vítima. O aluno de enfermagem fratura os dois braços da orientadora com uma cadeira. O quase médico metralha a platéia do cinema. Uma mulher é submetida à inseminação e espera resultar numa gravidez, mas em seu sono anestésico é estuprada pelo médico.
Matar os pais por dinheiro virou moda. Ou sequenciar crimes para acobertar o primeiro. Ou ainda, o homem descartado mata, desaparece com o corpo, o jogando no lago, ou o outro corta a ex-namorada em pedaços e os joga aos cães. Ex-maridos ou ex-namorados não aguentam a rejeição. Quando dispensados, se vingam: matam e violam o cadáver.
Pais mantêm filhas em cárcere privado para o seu deleite sexual, por décadas, gerando muitos filhos-netos, e ainda casais que enterram crianças, filhas suas, no jardim. A mãe congelou os filhos, outra vendeu a recém-nascida na estrada para comprar um carro. Sem falar na prostituição infantil e na pedofilia, no incesto paterno e materno. O elenco de iniquidades é interminável.
Estamos aprendendo alguma coisa com o desfile dessas infâmias? Ou somos expectadores atônitos e incapazes de uma ação? A vilania de quem deveria proteger, assusta, e não queremos ficar surdos a essa barbárie. Aos criminosos a lei!

* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

5 comentários:

  1. Texto contundente, eivado de ira santa. Foto chocante. Bravo, Dra. Mara.

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  2. O que mais me assusta é a maneira como
    a maioria das pessoas lidam com a crueldade.
    Enquanto ela for alheia o que se vê são
    meros expectadores.
    Só dói quando acontece com um de nós?
    Ótimo texto Mara.
    Abraços

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  3. Texto verdadeiro, Mara. O caso é revoltante!
    Parabéns.
    Abraços do,
    José Calvino
    RecifeOlinda

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  4. Que mundo o nosso, Mara. A perversidade humana não tem limites, mas prefiro acreditar que um dia o amor poderá superar tudo isso. Só não sei quando...Parabéns! Abraços!

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  5. Quase ao final do texto comecei a listar os casos mais chocantes que me vieram espontaneamente. E foram tantos que me foi impossível dizer ao menos uma frase dos mais recentes. Estamos ilhados.
    Obrigada gente , pelos comentários!

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