Em alguma parte uma corola
* Por Luiz Carlos Monteiro
“Uma corola” é o poema que contém internamente o título do livro de Ferreira Gullar, Em alguma parte alguma (Rio, José Olympio, 2010). Tanto faz que essa corola esteja (ou esteve) em São Luís do Maranhão ou na Rússia, no Rio de Janeiro ou em Santiago do Chile. E se, opostamente, não está nos lugares demasiado conhecidos do poeta, pelo menos esplende, fulge em alguma parte alguma da vida. Conforme a interpretação que se dê, pode-se pensá-la como cota de lirismo poético fornecida pelas musas ou esperança com serenidade nos propósitos revolucionários de mudança social. Porque o percurso de Gullar envolve tudo isso, e mais: o testemunho da deterioração do jogo ético mais sensato, justo e solidário em favor da rapina e da corrupção, o sofrimento pessoal e familiar na experiência do exílio involuntário que deu lugar à escrita de um longo poema, o Poema sujo (1976), que abalou as estruturas da poesia brasileira. Ninguém ainda havia escrito daquela maneira desabrida, irrefreável, direta e irreverente por aqui.
Não será difícil ao leitor de poesia apreender a fala reinventada de Gullar no seu novo livro, no ano em que completa 80 anos de idade e recebe, merecidamente, o cobiçado Prêmio Camões. A sua trajetória existencial, com fortes entradas no político, sempre se associou à poesia e à arte, e vice-versa. A capacidade de pensar os movimentos literários e artísticos do século 20 e depois, situa largamente os feitos do ensaísta e do crítico, do teatrólogo e do neovanguardista. E também do militante destemido e explícito, em alguns momentos clandestino, que trabalhou uma poesia de luta e indignação contra a opressão e a tortura, as perseguições e injustiças sociais, em livros como Dentro da noite veloz (1975) e Na vertigem do dia (1980).
Mesmo que certo público se tenha acostumado à voz coletiva do poema, nunca deixa de haver a dicção individual do poeta Gullar. E esta dicção já produz há bastante tempo uma fala reconhecível pelos que o leem. O ritmo, a força e a agilidade de seu verso facilitam a empatia de numerosos leitores, magnetizados e presos até o término de cada poema lido como experiencial real e sensível.
Nas partes II e III do livro, assuntos e preocupações antigas de Gullar se insurgem com mais força nos poemas que se referem a artes plásticas e a indagações cósmicas. A pintura e a escultura saltam dos ensaios e se abrigam na poesia. A pera que apresenta uma falsa figuração da vida na pintura, dura mais que a sua versão verdadeira e natural de fruta. Quando o corpo do morto que não pode ser revivido pela arte, resta ao artista Siron apenas “imprimir as marcas da morte ausente/ e vil/ no leito de concreto/ metáfora brutal/ da vida que explodiu”.
O imponderável do cosmos sofre comparações, buscas e explicações que ficam geralmente no plano obscuro das especulações, das respostas não encontradas. Contudo, Gullar fala de ciência e universo sem resquícios de pedantismo positivista, evitando a superficialidade, o esvaziamento e a racionalização tópica de uma temática ou assunto no poema. Estabelece fluxos dialéticos entre o perfume do jasmim e a podridão de bananas e peras, a pequenez da mosca, do gato e do homem frente à amplidão cósmica, a dimensão ínfima da terra em relação a qualquer estrela, a escala crescente que vai do planeta à galáxia.
O tom geral é de desordenamento da linguagem e indagação constante, recriação em torno do mesmo e do conhecido, com imagens captadas de escritos anteriores em visões pedestres e aéreas, palavras distribuídas espacialmente entre travessões e parênteses. Observa-se a intrusão de questionamentos sobre a escrita e a consciência a instigar a consciência de si e do mundo, a escrita que não se quer totalizante nem mercadológica, apesar do “suposto prestígio literário”, como nos poemas “Nem aí...” e “Off price”.
É constatada a precariedade do “não dito” como algo que foi “dito”, revelando o impasse do poeta diante do que se ocultou no tempo e não veio à fala, do que não se conseguiu transformar em palavra. Situações, vivências, sensações, distâncias mostram-se às vezes inalcançáveis à sua verve pela impossibilidade de se dizer tudo, de esgotar o possível da fala, independentemente de fôlego poético e vontade individual. Ao ser instaurado um "branco", um vazio se associa e limita-se com as circunstâncias externas de concepção e consecução do poema, entravando a disposição criativa. Tal frustração momentânea não logra impedir o desempenho posterior da poesia, facilitando a recepção e a realização de outros poemas que o redimem frente àquela incapacidade provocada pela “desordem” de ficar “o não dito” pelo “dito”, como no poema de abertura, “Fica o não dito pelo dito”.
A desmemória involuntária de Santiago do Chile e a perquirição metafísica da morte em Rilke completam este ciclo de poemas. Voltar a Santiago não traz mais a experiência algo romântica do exílio, a saída do país envolta em precaução, mistério e clandestinidade. A cidade e o tempo não são mais os mesmos, e as lembranças do passado recente cedem lugar à visada de uma outra capital chilena sem Allende nem impulsos de revolução, mais urbanizada, globalizada e impessoal. O longo poema sobre Rilke flagra o corpo do poeta a se debater ante a proximidade da morte, a solidão indescritível de quem reluta em abandonar o mundo e a vida: “Assim se acaba um homem/ que sem resposta iluminou/ o indecifrável processo da vida/ e em cuja carne sabores e rumores se convertiam/ em fala, clarão vocabular,/ a acessibilidade do indizível.”
Entre desordem e razão, aparência e profundidade, estrutura e sentido, Gullar pensa o poema por dentro e por fora. Reafirma conexões que vão do racional ao delirante, da matéria à sensação, da linguagem poética à vida prática. E sem temer paradoxos, dicotomias e contradições, compõe os elementos estéticos gerais e vitais de sua poesia em permanente e saudável confronto consigo mesmo e com o mundo externo.
* Por Luiz Carlos Monteiro
“Uma corola” é o poema que contém internamente o título do livro de Ferreira Gullar, Em alguma parte alguma (Rio, José Olympio, 2010). Tanto faz que essa corola esteja (ou esteve) em São Luís do Maranhão ou na Rússia, no Rio de Janeiro ou em Santiago do Chile. E se, opostamente, não está nos lugares demasiado conhecidos do poeta, pelo menos esplende, fulge em alguma parte alguma da vida. Conforme a interpretação que se dê, pode-se pensá-la como cota de lirismo poético fornecida pelas musas ou esperança com serenidade nos propósitos revolucionários de mudança social. Porque o percurso de Gullar envolve tudo isso, e mais: o testemunho da deterioração do jogo ético mais sensato, justo e solidário em favor da rapina e da corrupção, o sofrimento pessoal e familiar na experiência do exílio involuntário que deu lugar à escrita de um longo poema, o Poema sujo (1976), que abalou as estruturas da poesia brasileira. Ninguém ainda havia escrito daquela maneira desabrida, irrefreável, direta e irreverente por aqui.
Não será difícil ao leitor de poesia apreender a fala reinventada de Gullar no seu novo livro, no ano em que completa 80 anos de idade e recebe, merecidamente, o cobiçado Prêmio Camões. A sua trajetória existencial, com fortes entradas no político, sempre se associou à poesia e à arte, e vice-versa. A capacidade de pensar os movimentos literários e artísticos do século 20 e depois, situa largamente os feitos do ensaísta e do crítico, do teatrólogo e do neovanguardista. E também do militante destemido e explícito, em alguns momentos clandestino, que trabalhou uma poesia de luta e indignação contra a opressão e a tortura, as perseguições e injustiças sociais, em livros como Dentro da noite veloz (1975) e Na vertigem do dia (1980).
Mesmo que certo público se tenha acostumado à voz coletiva do poema, nunca deixa de haver a dicção individual do poeta Gullar. E esta dicção já produz há bastante tempo uma fala reconhecível pelos que o leem. O ritmo, a força e a agilidade de seu verso facilitam a empatia de numerosos leitores, magnetizados e presos até o término de cada poema lido como experiencial real e sensível.
Nas partes II e III do livro, assuntos e preocupações antigas de Gullar se insurgem com mais força nos poemas que se referem a artes plásticas e a indagações cósmicas. A pintura e a escultura saltam dos ensaios e se abrigam na poesia. A pera que apresenta uma falsa figuração da vida na pintura, dura mais que a sua versão verdadeira e natural de fruta. Quando o corpo do morto que não pode ser revivido pela arte, resta ao artista Siron apenas “imprimir as marcas da morte ausente/ e vil/ no leito de concreto/ metáfora brutal/ da vida que explodiu”.
O imponderável do cosmos sofre comparações, buscas e explicações que ficam geralmente no plano obscuro das especulações, das respostas não encontradas. Contudo, Gullar fala de ciência e universo sem resquícios de pedantismo positivista, evitando a superficialidade, o esvaziamento e a racionalização tópica de uma temática ou assunto no poema. Estabelece fluxos dialéticos entre o perfume do jasmim e a podridão de bananas e peras, a pequenez da mosca, do gato e do homem frente à amplidão cósmica, a dimensão ínfima da terra em relação a qualquer estrela, a escala crescente que vai do planeta à galáxia.
O tom geral é de desordenamento da linguagem e indagação constante, recriação em torno do mesmo e do conhecido, com imagens captadas de escritos anteriores em visões pedestres e aéreas, palavras distribuídas espacialmente entre travessões e parênteses. Observa-se a intrusão de questionamentos sobre a escrita e a consciência a instigar a consciência de si e do mundo, a escrita que não se quer totalizante nem mercadológica, apesar do “suposto prestígio literário”, como nos poemas “Nem aí...” e “Off price”.
É constatada a precariedade do “não dito” como algo que foi “dito”, revelando o impasse do poeta diante do que se ocultou no tempo e não veio à fala, do que não se conseguiu transformar em palavra. Situações, vivências, sensações, distâncias mostram-se às vezes inalcançáveis à sua verve pela impossibilidade de se dizer tudo, de esgotar o possível da fala, independentemente de fôlego poético e vontade individual. Ao ser instaurado um "branco", um vazio se associa e limita-se com as circunstâncias externas de concepção e consecução do poema, entravando a disposição criativa. Tal frustração momentânea não logra impedir o desempenho posterior da poesia, facilitando a recepção e a realização de outros poemas que o redimem frente àquela incapacidade provocada pela “desordem” de ficar “o não dito” pelo “dito”, como no poema de abertura, “Fica o não dito pelo dito”.
A desmemória involuntária de Santiago do Chile e a perquirição metafísica da morte em Rilke completam este ciclo de poemas. Voltar a Santiago não traz mais a experiência algo romântica do exílio, a saída do país envolta em precaução, mistério e clandestinidade. A cidade e o tempo não são mais os mesmos, e as lembranças do passado recente cedem lugar à visada de uma outra capital chilena sem Allende nem impulsos de revolução, mais urbanizada, globalizada e impessoal. O longo poema sobre Rilke flagra o corpo do poeta a se debater ante a proximidade da morte, a solidão indescritível de quem reluta em abandonar o mundo e a vida: “Assim se acaba um homem/ que sem resposta iluminou/ o indecifrável processo da vida/ e em cuja carne sabores e rumores se convertiam/ em fala, clarão vocabular,/ a acessibilidade do indizível.”
Entre desordem e razão, aparência e profundidade, estrutura e sentido, Gullar pensa o poema por dentro e por fora. Reafirma conexões que vão do racional ao delirante, da matéria à sensação, da linguagem poética à vida prática. E sem temer paradoxos, dicotomias e contradições, compõe os elementos estéticos gerais e vitais de sua poesia em permanente e saudável confronto consigo mesmo e com o mundo externo.
* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com
Trocando em miúdos:
ResponderExcluirGullar é uma leitura
imperdível.
Abraços