Código de silêncio
* Por Sergio Vilas Boas
Suspeitei desde sempre que o velho português não seria capaz de abandonar o carro à beira de uma via expressa, atravessá-la driblando buzinações, pulando sobre guardrails, chegar a pé até o aeroporto sem passagem comprada, comprar uma para o próximo vôo, não dando a mínima para onde, e partir deixando objetos, números e uma secretária singular, quarenta anos mais jovem. Que imaginação!
Sinmar serviu Áureo Figo durante 25 anos, dia a dia. As primeiras rotinas dela tinham uma seqüência premeditada. Às oito da manhã abria a porta do apartamento, preparava o primeiro café, consultava os bilhetes de instruções presos com alfinetes no quadro de cortiça, dispunha a mesa (não podia se esquecer de passar antes na confeitaria e trazer “dois croissants crocantes”) e tomava providências domésticas diversas.
O ritual matinal se completava com a imagem de Áureo em pé na cozinha, enfiado em pantufas e pijamas, com a fisionomia aparvalhada de quem acordou de um pulo e ainda não sabe onde está exatamente. A esta hora, ele costumava queixar-se de algum equívoco impossível de Sinmar, tão dedicada e leal, ter cometido. Ela não podia ouvi-lo resmungar, claro, mas sentia resvalarem nas paredes as ondas sonoras do rouco bom dia de seu “homem mais-que-perfeito”.
O cotidiano dos dois podia ser resumido assim: “óculos enfiados em silêncios”. Os óculos permitiam a ela visualizar além dos gestos e das formas; e o silêncio era o que assinalava a presença de Áureo em seu apartamento imenso, mobiliado com bastante reserva. Os dois habitaram um universo no qual era conveniente desaparecer. Bastava permitirem-se o desencontro para que um jamais trombasse com o outro. Temperamentos fugidios. Juntos e sós, enfim.
Áureo era carrancudo, não fazia no passo adequado o que precisava ser feito. E foi dando amplos poderes para Sinmar. Delegou-lhe até tarefas íntimas, como manipular suas dentaduras uma vez por semana com um químico branqueador. Ela testemunhou a decadência do sorumbático cronista nascido em Lisboa, enquanto estudava, de soslaio, suas perfeições tortuosas e suas integridades imperfeitas.
Áureo detestava datas comemorativas, o que não significa que repudiasse as repetições radicalmente. (Encontrei em seus guardados extensas coleções de chaveiros, bonés, selos postais e calendários antigos de mulheres de calcinhas e seios evidentes). O maior defeito do portuga, ao que parece, era desviar-se do essencial como ninguém: levava comédias a sério, dramas na brincadeira, tomava os próprios desajeitos como incidentes triviais e os thrillers eletrizantes como sessões de ioga.
Era o tipo de autista que, por incrível que pareça, deplora o desperdício; perturbava Sinmar com uma ladainha sem fim sobre reutilização de sacolas plásticas de supermercados. Chegou a criar planilhas para facilitar os ajustes das despesas com as elevações culminantes de preços. Ela, por sua vez, dominou estatísticas complexas a fim de compensar suas limitações de sentidos. Em suma, reciclavam tudo, menos o excêntrico relacionamento que mantinham.
O falecido não era o misógino que Sinmar pintou. (Sabem, a gente não descobre que temos uma vida singular. Na verdade, a gente descobre que outras pessoas tiveram – ou têm – uma vida muito diferente da nossa. É o único modo de comprovarmos a unidade cósmica que representamos. Um arquiteto pode construir a própria casa, um escritor pode fazer a própria psicanálise, surdos podem falar, alunos ensinam, espertinhos dançam, criminosos toleram, amantes falham, perdedores vencem, egocêntricos comovem-se).
Mas só Sinmar seria capaz de imitar a rubrica aloprada de Áureo Figo. E assim ela o manteve vivo em forma de números, códigos e senhas por vinte meses. Respondeu correspondências, e-mails e telefonemas com uma linguagem que – impressionante! – era a dele. Lavou, passou, cozinhou e reportou-se aos interessados no sumiço do velho como se ele tivesse apenas resolvido dar uma esticada em suas férias eternas.
Enganamo-nos todos. Efigênio, gerente da padaria próxima, onde Sinmar comprava os tais croissants crocantes, fanático leitor de crônicas, tinha Áureo Figo como um dos maiores jornalistas em atividade. A coluna dominical “Áureos tempos”, no Diário de Notícias, era então um sucesso. “O estilo dele parecia inimitável”, disse-me Efigênio, estupefato, em uma de nossas esclarecedoras conversas sobre o que um sujeito pode se tornar depois de morto.
Submeti um conjunto considerável de textos de Áureo Figo a um especialista para que os analisasse minuciosamente, do ponto de vista do estilo e dos dados biográficos que havíamos remontado. Encontramos uma crônica que começava com a seguinte frase: “Ninguém perde dinheiro ou poder subestimando a inteligência das pessoas”. O português era magnífico colecionador de frases provocativas, embora esta tenha sido escrita por ninguém menos que... Sinmar.
Então lemos e relemos textos que acreditávamos ser de autoria do portuga. Com uma lupa mental levantamos seus blefes intelectuais, repetições, morais entranhadas, citações sem crédito, lembranças truncadas, saudosismos baratos e ficcionismos pseudoliterários. Escavamos pegadas de sua trajetória errática no mundo e as confrontamos com suas crônicas interrogantes. Confirmaram-se minhas suspeitas. (Acredito, sinceramente, sem pretensão, que em breve os investigadores policiais substituirão os cientistas, os psicólogos e os jornalistas na tarefa inglória de desvendar a natureza humana).
Único da equipe a dominar a linguagem dos sinais, visitei Sinmar na cela do 8º Distrito anteontem. Ela voltou a jurar que não consumiu com o corpo e com a mente de sua “paixão mais-que-secreta”. Para ela, as evidências que arquivamos não passam de artefatos poéticos. Incrível. Uma criatura meiga, terrivelmente silenciosa e míope condicionar seu futuro ao pesadelo diário de ficar imaginando os movimentos labiais de uma multidão furiosa disposta a linchá-la.
Ah, Sinmar, senti engulhos ao saber que você quis abocanhar sozinha a grana do portuga. Por que descumpriu nossos acordos tácitos? Por que violou nossos códigos de silêncio? Por que sacar da conta do velho toda a generosa confiança que depositei em você? E esse absurdo de querer alterar o testamento antes do combinado! Você era uma surda-muda acima de qualquer suspeita. Afobada, isto sim, foste muito afobada, e ferraste com teu futuro.
A primeira medida que tomamos: dar um jeito de fazer o corpo de Áureo Figo reaparecer nessa vastidão de lacunas que é o mundo. Agora, Sinmar, não temos outra alternativa senão indiciá-la por estelionato, falsidade ideológica e homicídio. Você pode continuar se achando imaculada. Não a culpo. Há um medonho contingente de intocáveis sobre a Terra, e outro de celebridades e subcelebridades cujas vidas, cá entre nós, jamais deviam ser invejadas. Ou o bolo inteiro é nosso ou não é um bolo.
* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
* Por Sergio Vilas Boas
Suspeitei desde sempre que o velho português não seria capaz de abandonar o carro à beira de uma via expressa, atravessá-la driblando buzinações, pulando sobre guardrails, chegar a pé até o aeroporto sem passagem comprada, comprar uma para o próximo vôo, não dando a mínima para onde, e partir deixando objetos, números e uma secretária singular, quarenta anos mais jovem. Que imaginação!
Sinmar serviu Áureo Figo durante 25 anos, dia a dia. As primeiras rotinas dela tinham uma seqüência premeditada. Às oito da manhã abria a porta do apartamento, preparava o primeiro café, consultava os bilhetes de instruções presos com alfinetes no quadro de cortiça, dispunha a mesa (não podia se esquecer de passar antes na confeitaria e trazer “dois croissants crocantes”) e tomava providências domésticas diversas.
O ritual matinal se completava com a imagem de Áureo em pé na cozinha, enfiado em pantufas e pijamas, com a fisionomia aparvalhada de quem acordou de um pulo e ainda não sabe onde está exatamente. A esta hora, ele costumava queixar-se de algum equívoco impossível de Sinmar, tão dedicada e leal, ter cometido. Ela não podia ouvi-lo resmungar, claro, mas sentia resvalarem nas paredes as ondas sonoras do rouco bom dia de seu “homem mais-que-perfeito”.
O cotidiano dos dois podia ser resumido assim: “óculos enfiados em silêncios”. Os óculos permitiam a ela visualizar além dos gestos e das formas; e o silêncio era o que assinalava a presença de Áureo em seu apartamento imenso, mobiliado com bastante reserva. Os dois habitaram um universo no qual era conveniente desaparecer. Bastava permitirem-se o desencontro para que um jamais trombasse com o outro. Temperamentos fugidios. Juntos e sós, enfim.
Áureo era carrancudo, não fazia no passo adequado o que precisava ser feito. E foi dando amplos poderes para Sinmar. Delegou-lhe até tarefas íntimas, como manipular suas dentaduras uma vez por semana com um químico branqueador. Ela testemunhou a decadência do sorumbático cronista nascido em Lisboa, enquanto estudava, de soslaio, suas perfeições tortuosas e suas integridades imperfeitas.
Áureo detestava datas comemorativas, o que não significa que repudiasse as repetições radicalmente. (Encontrei em seus guardados extensas coleções de chaveiros, bonés, selos postais e calendários antigos de mulheres de calcinhas e seios evidentes). O maior defeito do portuga, ao que parece, era desviar-se do essencial como ninguém: levava comédias a sério, dramas na brincadeira, tomava os próprios desajeitos como incidentes triviais e os thrillers eletrizantes como sessões de ioga.
Era o tipo de autista que, por incrível que pareça, deplora o desperdício; perturbava Sinmar com uma ladainha sem fim sobre reutilização de sacolas plásticas de supermercados. Chegou a criar planilhas para facilitar os ajustes das despesas com as elevações culminantes de preços. Ela, por sua vez, dominou estatísticas complexas a fim de compensar suas limitações de sentidos. Em suma, reciclavam tudo, menos o excêntrico relacionamento que mantinham.
O falecido não era o misógino que Sinmar pintou. (Sabem, a gente não descobre que temos uma vida singular. Na verdade, a gente descobre que outras pessoas tiveram – ou têm – uma vida muito diferente da nossa. É o único modo de comprovarmos a unidade cósmica que representamos. Um arquiteto pode construir a própria casa, um escritor pode fazer a própria psicanálise, surdos podem falar, alunos ensinam, espertinhos dançam, criminosos toleram, amantes falham, perdedores vencem, egocêntricos comovem-se).
Mas só Sinmar seria capaz de imitar a rubrica aloprada de Áureo Figo. E assim ela o manteve vivo em forma de números, códigos e senhas por vinte meses. Respondeu correspondências, e-mails e telefonemas com uma linguagem que – impressionante! – era a dele. Lavou, passou, cozinhou e reportou-se aos interessados no sumiço do velho como se ele tivesse apenas resolvido dar uma esticada em suas férias eternas.
Enganamo-nos todos. Efigênio, gerente da padaria próxima, onde Sinmar comprava os tais croissants crocantes, fanático leitor de crônicas, tinha Áureo Figo como um dos maiores jornalistas em atividade. A coluna dominical “Áureos tempos”, no Diário de Notícias, era então um sucesso. “O estilo dele parecia inimitável”, disse-me Efigênio, estupefato, em uma de nossas esclarecedoras conversas sobre o que um sujeito pode se tornar depois de morto.
Submeti um conjunto considerável de textos de Áureo Figo a um especialista para que os analisasse minuciosamente, do ponto de vista do estilo e dos dados biográficos que havíamos remontado. Encontramos uma crônica que começava com a seguinte frase: “Ninguém perde dinheiro ou poder subestimando a inteligência das pessoas”. O português era magnífico colecionador de frases provocativas, embora esta tenha sido escrita por ninguém menos que... Sinmar.
Então lemos e relemos textos que acreditávamos ser de autoria do portuga. Com uma lupa mental levantamos seus blefes intelectuais, repetições, morais entranhadas, citações sem crédito, lembranças truncadas, saudosismos baratos e ficcionismos pseudoliterários. Escavamos pegadas de sua trajetória errática no mundo e as confrontamos com suas crônicas interrogantes. Confirmaram-se minhas suspeitas. (Acredito, sinceramente, sem pretensão, que em breve os investigadores policiais substituirão os cientistas, os psicólogos e os jornalistas na tarefa inglória de desvendar a natureza humana).
Único da equipe a dominar a linguagem dos sinais, visitei Sinmar na cela do 8º Distrito anteontem. Ela voltou a jurar que não consumiu com o corpo e com a mente de sua “paixão mais-que-secreta”. Para ela, as evidências que arquivamos não passam de artefatos poéticos. Incrível. Uma criatura meiga, terrivelmente silenciosa e míope condicionar seu futuro ao pesadelo diário de ficar imaginando os movimentos labiais de uma multidão furiosa disposta a linchá-la.
Ah, Sinmar, senti engulhos ao saber que você quis abocanhar sozinha a grana do portuga. Por que descumpriu nossos acordos tácitos? Por que violou nossos códigos de silêncio? Por que sacar da conta do velho toda a generosa confiança que depositei em você? E esse absurdo de querer alterar o testamento antes do combinado! Você era uma surda-muda acima de qualquer suspeita. Afobada, isto sim, foste muito afobada, e ferraste com teu futuro.
A primeira medida que tomamos: dar um jeito de fazer o corpo de Áureo Figo reaparecer nessa vastidão de lacunas que é o mundo. Agora, Sinmar, não temos outra alternativa senão indiciá-la por estelionato, falsidade ideológica e homicídio. Você pode continuar se achando imaculada. Não a culpo. Há um medonho contingente de intocáveis sobre a Terra, e outro de celebridades e subcelebridades cujas vidas, cá entre nós, jamais deviam ser invejadas. Ou o bolo inteiro é nosso ou não é um bolo.
* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
De tirar o fôlego do leitor.
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