

Felicidade Flores
* Por Risomar Fasanaro
Felicidade Flores... Pode alguém com um nome desse ser uma pessoa comum? Pode não. E Felicidade não era.
A mãe era evangélica e Felicidade, já com 38 anos, mentia para a mãe que também era crente. Não era. Todas as religiões que teve a oportunidade de ouvir falar, a mineira de Grão Mogol lá colocou seu pezinho 33.
Nenhuma dificuldade a impedia de ir ver de perto do que se tratava, o que ali se cultuava.
Trem, ônibus, e até carona em carro de boi. Nada impedia Felicidade. O que não podia era ficar alheia às novas ou velhas crenças, aos novos ou antigos ídolos.
E entre uma e outra nova descoberta, saía toda tarde para percorrer as benzedeiras da cidade. Com ela, levava o sobrinho.
Em um daquelas tardes Felicidade estava com muita dor de cabeça, e lá foram os dois à casa de Gertrudes, uma vizinha que recebia o Pai Oboré, caboclo da Umbanda. Quem sabe ela pudesse curar aquela dor.
O caboclo incorporou na médium e disse à Felicidade que junto dela estava uma Pomba Gira. Felicidade ouviu e não chegou a se passar nem um minuto, e já começou a dar gargalhadas altas, a rodar e a levantar a saia. Depois, pediu champagne, bebeu, e num passe de mágica “voltou”, olhou firme pro caboclo, pegou o sobrinho pela mão e foram embora sem se despedir.
No caminho, ela vira-se pro garoto e diz:
- Quer saber de uma coisa, Zeu? Eu num confio em dona Gertudres. Ela não estava com nada, com espírito nenhum. Estava era me enganando. Eu não tenho Pomba-Gira coisa nenhuma. Vamos em dona Justina, que se eu tiver ela vai me confirmar.
Chegaram à casa de dona Justina e ela contou o que se passara na casa da vizinha. A dor de cabeça continuava.
Dona Justina fez algumas preces e incorporou o caboclo Ubiratan, que dirigiu-se à Flores e disse:
- Felicidade, você não tem Pomba-Gira nenhuma. Você tem é o povo das águas. É Yemanjá, é Sereia, é Oxum, é Janaína...
Ela piscou pro sobrinho:
- Não tô te dizendo Zeu, que dona Gertrudes tinha me enganado?
Foi aí que a Sereia se apoderou de Flores. Ela começou a rolar no chão, a fechar os olhos e a gemer: hummmmm....hhãem, huuuummm...uuuuiiii....
.
Dona Justina foi buscar uma jarra d’água com alfazema, e rezando jogou sobre Felicidade. Quando terminou o benzimento tia e sobrinho foram embora.
Já na rua, Felicidade virou-se pro sobrinho:
-Meu filho, eu ainda não acredito em nenhuma delas. Minha dor de cabeça num passou. Vamos pra casa de Dinorah, que aquela sim, vai dizer a verdade.
Cansado, o menino percorria as ruas poeirentas de Grão Mogol. Não discutia com a tia, em silêncio a seguia como um cão fiel.
Lá chegando, ela contou sobre a dor de cabeça, e sobre a ida à casa de dona Gertrudes, de dona Justina, mas que a dor não tinha passado.
E Dinorá falou:
- Felicidade, você num tem Pomba Gira nem povo das águas... Agora você está é com espírito de criança. Você tem um Erê muito forte...
Não chegou a terminar a frase e Felicidade já se arrastava pelo chão pedindo doce, guaraná, falando como criança, brincando e se sujando toda no chão.
O sobrinho esperando, cansado de tanta peregrinação comia os doces que a entidade lhe oferecia. Depois de algum tempo, ela se levantou, e como se nada houvesse acontecido, pegou a mão do pequeno, se despediu e dali saíram.
- Melhorou tia?
- Não Zeu, esse povo todo tá me enganando. A dor tá mais forte ainda...
Já era noite, e o menino cansado de tanta peregrinação.
Em casa, Felicidade resolveu contar à mãe o que havia acontecido.
- Cês são é besta, tem nada disso não. Tem é que orar, ler a Bíblia, ir pra igreja...
Felicidade dizia a todos que não fumava, mas descobriram um maço de cigarros na bolsa dela. Dizia que não gostava de espiritismo, mas era só ficar sozinha em algum cômodo da casa com o sobrinho que o pegava pela mão e o girava, girava, enquanto dizia:
- Gira caboclinho, gira...Gira caboclinho...
Os anos se passaram, e um dia Zeu, já rapaz, encontra com Felicidade, e ela lhe conta:
- Tanto sacrifício, Zeu, fui a tanta gente e ninguém descobriu qual era meu santo, meu guia. Sozinha, Zeu, foi sozinha que descobri. Nos fundos de casa tinha uma plantação de mandioca. Um dia tentaram arrancar um pé e ninguém conseguia. Veio mãe, veio pai, veio Tinho, veio Zé de dona Carlota, e por mais força que fizessem, ninguém conseguia tirar a mandioca, a danada num saía... Foi quando eu fui, Zeu, resolvi ir lá e tentar. Quem sabe? Coloquei as mão no pé de mandioca e gritei: “Arranca Toco!” E num é que o pé de mandioca pulou pra fora do buraco?
E concluiu feliz:
- Num precisei de ninguém, Zeu, eu mesma descobri quem é meu guia!
- Qual tia?
- E num é Arranca Toco, menino?!
* Por Risomar Fasanaro
Felicidade Flores... Pode alguém com um nome desse ser uma pessoa comum? Pode não. E Felicidade não era.
A mãe era evangélica e Felicidade, já com 38 anos, mentia para a mãe que também era crente. Não era. Todas as religiões que teve a oportunidade de ouvir falar, a mineira de Grão Mogol lá colocou seu pezinho 33.
Nenhuma dificuldade a impedia de ir ver de perto do que se tratava, o que ali se cultuava.
Trem, ônibus, e até carona em carro de boi. Nada impedia Felicidade. O que não podia era ficar alheia às novas ou velhas crenças, aos novos ou antigos ídolos.
E entre uma e outra nova descoberta, saía toda tarde para percorrer as benzedeiras da cidade. Com ela, levava o sobrinho.
Em um daquelas tardes Felicidade estava com muita dor de cabeça, e lá foram os dois à casa de Gertrudes, uma vizinha que recebia o Pai Oboré, caboclo da Umbanda. Quem sabe ela pudesse curar aquela dor.
O caboclo incorporou na médium e disse à Felicidade que junto dela estava uma Pomba Gira. Felicidade ouviu e não chegou a se passar nem um minuto, e já começou a dar gargalhadas altas, a rodar e a levantar a saia. Depois, pediu champagne, bebeu, e num passe de mágica “voltou”, olhou firme pro caboclo, pegou o sobrinho pela mão e foram embora sem se despedir.
No caminho, ela vira-se pro garoto e diz:
- Quer saber de uma coisa, Zeu? Eu num confio em dona Gertudres. Ela não estava com nada, com espírito nenhum. Estava era me enganando. Eu não tenho Pomba-Gira coisa nenhuma. Vamos em dona Justina, que se eu tiver ela vai me confirmar.
Chegaram à casa de dona Justina e ela contou o que se passara na casa da vizinha. A dor de cabeça continuava.
Dona Justina fez algumas preces e incorporou o caboclo Ubiratan, que dirigiu-se à Flores e disse:
- Felicidade, você não tem Pomba-Gira nenhuma. Você tem é o povo das águas. É Yemanjá, é Sereia, é Oxum, é Janaína...
Ela piscou pro sobrinho:
- Não tô te dizendo Zeu, que dona Gertrudes tinha me enganado?
Foi aí que a Sereia se apoderou de Flores. Ela começou a rolar no chão, a fechar os olhos e a gemer: hummmmm....hhãem, huuuummm...uuuuiiii....
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Dona Justina foi buscar uma jarra d’água com alfazema, e rezando jogou sobre Felicidade. Quando terminou o benzimento tia e sobrinho foram embora.
Já na rua, Felicidade virou-se pro sobrinho:
-Meu filho, eu ainda não acredito em nenhuma delas. Minha dor de cabeça num passou. Vamos pra casa de Dinorah, que aquela sim, vai dizer a verdade.
Cansado, o menino percorria as ruas poeirentas de Grão Mogol. Não discutia com a tia, em silêncio a seguia como um cão fiel.
Lá chegando, ela contou sobre a dor de cabeça, e sobre a ida à casa de dona Gertrudes, de dona Justina, mas que a dor não tinha passado.
E Dinorá falou:
- Felicidade, você num tem Pomba Gira nem povo das águas... Agora você está é com espírito de criança. Você tem um Erê muito forte...
Não chegou a terminar a frase e Felicidade já se arrastava pelo chão pedindo doce, guaraná, falando como criança, brincando e se sujando toda no chão.
O sobrinho esperando, cansado de tanta peregrinação comia os doces que a entidade lhe oferecia. Depois de algum tempo, ela se levantou, e como se nada houvesse acontecido, pegou a mão do pequeno, se despediu e dali saíram.
- Melhorou tia?
- Não Zeu, esse povo todo tá me enganando. A dor tá mais forte ainda...
Já era noite, e o menino cansado de tanta peregrinação.
Em casa, Felicidade resolveu contar à mãe o que havia acontecido.
- Cês são é besta, tem nada disso não. Tem é que orar, ler a Bíblia, ir pra igreja...
Felicidade dizia a todos que não fumava, mas descobriram um maço de cigarros na bolsa dela. Dizia que não gostava de espiritismo, mas era só ficar sozinha em algum cômodo da casa com o sobrinho que o pegava pela mão e o girava, girava, enquanto dizia:
- Gira caboclinho, gira...Gira caboclinho...
Os anos se passaram, e um dia Zeu, já rapaz, encontra com Felicidade, e ela lhe conta:
- Tanto sacrifício, Zeu, fui a tanta gente e ninguém descobriu qual era meu santo, meu guia. Sozinha, Zeu, foi sozinha que descobri. Nos fundos de casa tinha uma plantação de mandioca. Um dia tentaram arrancar um pé e ninguém conseguia. Veio mãe, veio pai, veio Tinho, veio Zé de dona Carlota, e por mais força que fizessem, ninguém conseguia tirar a mandioca, a danada num saía... Foi quando eu fui, Zeu, resolvi ir lá e tentar. Quem sabe? Coloquei as mão no pé de mandioca e gritei: “Arranca Toco!” E num é que o pé de mandioca pulou pra fora do buraco?
E concluiu feliz:
- Num precisei de ninguém, Zeu, eu mesma descobri quem é meu guia!
- Qual tia?
- E num é Arranca Toco, menino?!
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Um texto que aborda de forma leve e divertida as inquietações de quem está a procura de respostas.
ResponderExcluirAbraços
Felicidade buscadora de si mesma! Irreverente! Amei! Beijos, Risomar!
ResponderExcluirObrigada, minhas queridas! Às vezes buscamos tanto nos outros, aquilo que só a gente é capaz de encontrar, não é?
ResponderExcluirBeijos
Texto engraçado, Risomar!
ResponderExcluirEsses babalorixás constituem um prato cheio para o olho crítico...
Findou a Felicidade se enganando, é para rir mesmo!
Beijos,
Cheia de curiosidade e de graça, sua Felcidade Flores, Risomar.Adorei ler! Parabéns e beijos.
ResponderExcluirPerseverante em sua busca, sua personagem encontrou uma resposta. Risomar, você trouxe uma tema escasso por aqui, e falou nele com a leveza e a inocência de Felicidade Flores.
ResponderExcluirRiso
ResponderExcluirAdorei seu texto. Aí vai a ´poesia que fiz para minha tia Felicidade Flkores
Bjs Eliseu Marino
Não comeu maconha/nem fumou bolinha/veio lá de Minas/pra adorar velório/ver que geltina/gruda feito cola/já roubou da mãe/ todos os tecidos/já furtou da irmã/ todos os talheres/já bateu em homem/já matou marido/reza na católica/vai na protestante/ferve o caldeirão/mas trabalha firme/em casa de família/lá no bar da esquina/ou na pastelaria/minha tia/minha pátria/minha guia
beijos e batons/Felicidade e Flores
ri, como precisava. bom, leve, fácil...gostei demais do texto, fiquei pensando num curta-metragem....pq as imagens saltitavam em minha frente. deve ser algum espírito cineasta!!!
ResponderExcluirObrigada a todos vocês. Linda poesia, Eliseu. Espero ter sido fiel à memória de sua tia.
ResponderExcluirObrigada Calvino, Evelyne, Mara pela generosidade sempre.
Aliene, que interessante, também pensei em um curta-metragem. Se quiser fazer, está aí...
Beijos a todos
Risomar