quarta-feira, 27 de outubro de 2010




A gente não quer só...

* Por Mara Narciso

As escolhas vão se alternando na conformidade da moda. É tão natural comer pizza e sanduíche como pratos de resistência, que crianças e jovens não querem saber de outra coisa.
Um adulto que nunca viu e nem comeu arroz com pequi, por ser comida de sabor intenso, dificilmente apreciará o prato durante a experimentação. Depois, quem sabe?
O senhor João Paculdino, patrão e grande amigo do meu avô Petronilho Narciso, era homem de refinados gostos. Exerceu influência no então jovem funcionário, o qual na década de 1930 aprendeu a dirigir, e algum tempo depois, teve sua geladeira e telefone no primeiro lote desses bens em Montes Claros. Quando aconteceram os casamentos das suas filhas, que eram seis, as festas foram sofisticadas para o local e a época, com champanhe francês, uísque escocês, bombons finos e frutas vindas do sul.
Não raro, alguém de gosto simples torce o nariz para comidinhas finas e requintadas, especialmente se são bichinhos ou plantinhas desconhecidas, tostadas, nadando em um molho espumante estranho e em porções minúsculas. Quem se habilita? Após umas poucas tentativas, e em casos de sabores delicados, já na primeira vez, curiosamente, alguns podem pedir e recomendar a nova iguaria. Acabam por ajustar as papilas gustativas para o que consideraram bom. Surge daí mais um fino gosto.
Também na música acontece coisa semelhante. Os ouvidos precisam de treino para gostar das variações de sons, ritmos, pausas e velocidades das melodias mais complexas. A música altera o ambiente, as pessoas e os comportamentos. O som alto enlouquece multidões, que cantam e dançam, intensifica a fé, firma convicções políticas e leva a idolatria.
Missões militares se valeram de marchas cadenciadas associadas a um hino encorajador. Esta combinação afasta o racional e o medo, e o grito de guerra leva a tropa a enfrentar o inimigo de forma destemida.
Uma batida musical simples, com melodia que utiliza três acordes, um refrão banal repetido, tem os quesitos necessários para fazer sucesso, caso haja um marketing que não poupe incentivos financeiros. Os estilos musicais separam as classes sociais em castas, com poucas surpresas. Um tipo mais complexo de música pode ser apreciado a qualquer tempo, mas quando o contato se inicia cedo, é mais fácil a pessoa se enamorar dele. Os desenhos animados com música clássica são uma tentativa de fazer essa aproximação precoce.
No fundo, o gostar ou não gostar de sabores e músicas vai do conhecer, do reconhecer, do acostumar, e de ver tal hábito valorizado no meio em que se vive. Os comerciais têm alto poder persuasivo, mas os desejos de consumo se iniciam no espírito de imitação e inveja. Quando é preciso escolher entre uma coisa e outra, os publicitários sabem a influencia do ambiente nas coisas simples, até mesmo no saber apreciar e comer saladas e frutas.
Falar das interferências no gosto palatável e musical não é ideia boa e muito menos original. Não precisa dizer em quem vota e nem o que lê e vê, mas, diga o que come e o que ouve, e já se saberá o suficiente sobre você. As pessoas, mais do que nunca, são o que comem, e principalmente comem e ouvem o que são.

* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

6 comentários:

  1. Mas acredito que ainda há muitos
    que possam nos surpreender...é o que
    espero!
    Abração.

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  2. Comidas, músicas, o gosto que se tem e o que se apura - com as vivências e com o tempo. Belo e verdadeiro texto, Dra. Mara. Um abraço.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Será ?
    Tenho cá minhas dúvidas.
    Toda regra tem exceção.
    Em todo caso, pensarei sobre.....risos.

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  5. Nubia, certamente teremos algumas suspresas, mas se alguém só almoça pão com ovo e gostar de Bach, vai virar reportagem.
    Marcelo, vamos a cada dia ficando mais exigente e apurando mais o nosso gosto. Diante de coisas realmente finas e caras, meu filho diz em tom de deboche: " Não é para o nosso bico".
    Celamar, há exceções sim, mas os hábitos musicais e do paladar dizem bastante sobre a pessoa.
    Obrigada gente, pelos comentários.

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  6. Mara
    Lembrei de tanta coisa de que não gostava e passei a gostar...Caqui, por ex., odiei a primeira vez que comi, e hoje adoro.
    E isso acontece com algumas músicas também. A primeira vez que ouvi "Sabiá",do Chico e do Tom me foi indiferente. Hoje choro todas as vezes que a escuto.
    O ser humano é muito estranho. Mais que os pratos, mais que as canções. Amei seu texto.
    Beijos

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