Jovem repórter pergunta por filosofia
* Por Urariano Mota
Como a entrevista não foi publicada, estou livre para divulgar a troca de emails entre mim e uma jovem repórter. Copio e colo, sem comentários.
“Agradeço a atenção.
Comecemos, então, por essa onda de, digamos, popularização da filosofia:
televisão, café filosófico, casa do saber, volta da disciplina às escolas.
Acho que podemos começar a conversão, não é? Mais uma vez, obrigado pela
atenção.
1. Como o senhor vê esse processo? É de fato uma tentativa de popularização,
é uma necessidade ou estão tratando qualquer tipo de reflexão como
filosofia?
- Você me faz perguntas que moram em lugar além da minha competência. Mas na medida da minha (in)capacidade, respondo: a filosofia ainda não está popularizada, mesmo nessa ‘onda’, uma palavra bem própria. Televisão, Café Filosófico, Casa do Saber (Daslu do Viver, se bem entendo). Ainda que possuam ‘formatos’, conteúdos diferentes, isso ainda não é filosofia, e muito menos a sua popularização. Até onde me lembro, e olhe que não sou tão jovem assim, o movimento dessa onda vem dos livros de autoajuda, de fórmulas de convivência (de aceitação do status do mundo), e atinge o que todo executivo, aspirante a executivo, burocratas dizem a respeito de qualquer concepção: ‘A ideia, a filosofia é...’ . Isso é uma outra filosofia. Trata-se de uma dignificação do vulgar. Sim, ‘aceitamos o que o mundo é, aceitamos como o mundo se apresenta’, esses cursos insinuam, e tratam de palestras, dolce far niente, que ninguém é de ferro. Pelo que sei, pelo que lembro, pois lembrar a experiência é um saber, a filosofia esteve popularizada entre os jovens, entre os estudantes, nos anos de militância contra a ditadura militar. Duvida? Veja como se expressam, como expõem suas ideias os sobreviventes da época. Todos, quase todos discutiam Sartre, Lukács, Marx, Hegel, para viver – o que não era bem um viver bem. Muitos desses jovens filósofos foram assassinados.
2. O que é filosofia, afinal?
- Olhe, eu poderia responder a essa pergunta com uma consulta a dicionários, ou a esta moderna enciclopédia que chamamos de Google. Mas não seria honesto responder a uma indagação direta com uma transcrição malandra. Então eu lhe respondo como a sinto: para mim, filosofia é a mais alta reflexão sobre o mundo. Ela responde a dúvidas de especialistas, até mesmo sem o conhecimento dos especialistas. No começo do século XX, a Física, diziam os mais doutos físicos, estava no fim, porque se havia descoberto a partícula última do átomo. Foi preciso que um pensador, um filósofo, de nome Lenin, repusesse as coisas nos seguintes termos: ‘Pesquisem, pesquisem mais. A realidade é inesgotável’. E se viu depois o quanto ele estava e está certo. Eu não diria que a filosofia é o conhecimento mais universal, porque sei que nesse campo infinito fala mais alto a literatura. Mas como, se a filosofia é a mais alta reflexão sobre o mundo? – É que a literatura é o próprio mundo, reconstruído, é o homem que fala para o homem, do mundo radicalmente humano. Daí que Molière nasceu hoje, agora, e não no século XVII.
3. Toda reflexão é filosofia?
- Acredito que essa pergunta foi respondida antes.
4. É possível ampliar o ensino da filosofia, levá-la à periferia, por
exemplo, ou num país de ensino precário filosofar é elitista?
- A filosofia é tão elitista quanto saber ler. É tão elitista quanto saber pintar. E pessoas do povo leem, pintam e nos ensinam, todos os dias. É claro que é possível levar a filosofia ao mundo periférico – que precisa mais desse conhecimento poderoso que os frequentadores da Casa do Saber. Para o mundo excluído, é uma questão de sobrevivência – pensar, refletir, organizar o mundo, organizar-se, propor e discutir alternativas ou superação. Mas não a partir de currículos burros, de grades curriculares estúpidas, que, insatisfeitas de matarem o prazer da leitura, do gozo que é conhecer português, matemática, avançam sobre a filosofia. Meninos pobres gostam de aprender, quando encontram meninos pobres crescidos que lhes ensinem. Se não lhe pesar, veja por favor “Histórias para adolescentes pobres” em http://www.novacultura.de/0502literatrip.html
5. Por que é importante ampliar o acesso ao aprendizado da filosofia? Para
que serve a filosofia?
- Acredito que Marx já respondeu sobre isso. A filosofia serve para transformar o mundo.
6. O que o senhor não gostou no quadro Ser ou Não Ser, do Fantástico?
- O “Ser ou não Ser”, que deveria se chamar o “Não ser filosofia”, retira o seu maior dano do fato de vender um fake, uma falsificação, uma miséria da filosofia como se fosse um pensar filosófico. O tempo dele era curto, curtíssimo, para a reflexão – qualquer reflexão. O quadro entrava no programa como uma notícia no Jornal Nacional – você chora por um desastre e no segundo seguinte sorri para o samba na avenida. E mais, não sei se por brevidade ou por incompreensão ou por incapacidade - vá lá, dramatúrgica – conceitos datados, visões superadas pela história, apareciam como um pensamento moderno, novíssimo. Conforme se publicou no La Insignia, no http://www.lainsignia.org/2005/septiembre/cul_029.htm, ‘A narração passa um sentido moderníssimo, universal, ao que já foi superado e morto muito antes.... Percebe-se claro uma vulgarização da filosofia, do vulgarizar que vai além ou aquém do tornar público. Há uma vulgarização de fazer o vulgar mesmo, do tornar pequeno, reles, mesquinho’.
7. O que o senhor acha de iniciativas como a Casa do Saber, instalada no Rio
e em SP, que oferece cursos com figuras do ´pensamento` nacional,
a preços bem salgados?
- A indigência intelectual da elite quer ilustração, perdão, devo dizer, quer o status de ser ilustrada. Assim como compram quadros de arte por metro quadrado, assim como compram vinhos para os quais não têm história ou educação, assim como compram o último porsche, querem se mostrar ilustrados, falar, ou melhor, corrijo, querem mencionar o nome de Sócrates entre um importado e outro. O público da Casa é um bom negócio, em resumo. Os cursos, as palestras, devem servir como uma isca para compor um cadastro vip. Isso é um assunto para a fiscalização da Receita Federal.
8. O senhor se considera escritor, poeta e filósofo?
- Eu sou escritor, e não quero ser outra coisa. Este é o meu fim e o meu começo. Agora, nada do que é humano deve ser estranho a um escritor. E a filosofia é demasiadamente humana”.
* Escritor e jornalista
* Por Urariano Mota
Como a entrevista não foi publicada, estou livre para divulgar a troca de emails entre mim e uma jovem repórter. Copio e colo, sem comentários.
“Agradeço a atenção.
Comecemos, então, por essa onda de, digamos, popularização da filosofia:
televisão, café filosófico, casa do saber, volta da disciplina às escolas.
Acho que podemos começar a conversão, não é? Mais uma vez, obrigado pela
atenção.
1. Como o senhor vê esse processo? É de fato uma tentativa de popularização,
é uma necessidade ou estão tratando qualquer tipo de reflexão como
filosofia?
- Você me faz perguntas que moram em lugar além da minha competência. Mas na medida da minha (in)capacidade, respondo: a filosofia ainda não está popularizada, mesmo nessa ‘onda’, uma palavra bem própria. Televisão, Café Filosófico, Casa do Saber (Daslu do Viver, se bem entendo). Ainda que possuam ‘formatos’, conteúdos diferentes, isso ainda não é filosofia, e muito menos a sua popularização. Até onde me lembro, e olhe que não sou tão jovem assim, o movimento dessa onda vem dos livros de autoajuda, de fórmulas de convivência (de aceitação do status do mundo), e atinge o que todo executivo, aspirante a executivo, burocratas dizem a respeito de qualquer concepção: ‘A ideia, a filosofia é...’ . Isso é uma outra filosofia. Trata-se de uma dignificação do vulgar. Sim, ‘aceitamos o que o mundo é, aceitamos como o mundo se apresenta’, esses cursos insinuam, e tratam de palestras, dolce far niente, que ninguém é de ferro. Pelo que sei, pelo que lembro, pois lembrar a experiência é um saber, a filosofia esteve popularizada entre os jovens, entre os estudantes, nos anos de militância contra a ditadura militar. Duvida? Veja como se expressam, como expõem suas ideias os sobreviventes da época. Todos, quase todos discutiam Sartre, Lukács, Marx, Hegel, para viver – o que não era bem um viver bem. Muitos desses jovens filósofos foram assassinados.
2. O que é filosofia, afinal?
- Olhe, eu poderia responder a essa pergunta com uma consulta a dicionários, ou a esta moderna enciclopédia que chamamos de Google. Mas não seria honesto responder a uma indagação direta com uma transcrição malandra. Então eu lhe respondo como a sinto: para mim, filosofia é a mais alta reflexão sobre o mundo. Ela responde a dúvidas de especialistas, até mesmo sem o conhecimento dos especialistas. No começo do século XX, a Física, diziam os mais doutos físicos, estava no fim, porque se havia descoberto a partícula última do átomo. Foi preciso que um pensador, um filósofo, de nome Lenin, repusesse as coisas nos seguintes termos: ‘Pesquisem, pesquisem mais. A realidade é inesgotável’. E se viu depois o quanto ele estava e está certo. Eu não diria que a filosofia é o conhecimento mais universal, porque sei que nesse campo infinito fala mais alto a literatura. Mas como, se a filosofia é a mais alta reflexão sobre o mundo? – É que a literatura é o próprio mundo, reconstruído, é o homem que fala para o homem, do mundo radicalmente humano. Daí que Molière nasceu hoje, agora, e não no século XVII.
3. Toda reflexão é filosofia?
- Acredito que essa pergunta foi respondida antes.
4. É possível ampliar o ensino da filosofia, levá-la à periferia, por
exemplo, ou num país de ensino precário filosofar é elitista?
- A filosofia é tão elitista quanto saber ler. É tão elitista quanto saber pintar. E pessoas do povo leem, pintam e nos ensinam, todos os dias. É claro que é possível levar a filosofia ao mundo periférico – que precisa mais desse conhecimento poderoso que os frequentadores da Casa do Saber. Para o mundo excluído, é uma questão de sobrevivência – pensar, refletir, organizar o mundo, organizar-se, propor e discutir alternativas ou superação. Mas não a partir de currículos burros, de grades curriculares estúpidas, que, insatisfeitas de matarem o prazer da leitura, do gozo que é conhecer português, matemática, avançam sobre a filosofia. Meninos pobres gostam de aprender, quando encontram meninos pobres crescidos que lhes ensinem. Se não lhe pesar, veja por favor “Histórias para adolescentes pobres” em http://www.novacultura.de/0502literatrip.html
5. Por que é importante ampliar o acesso ao aprendizado da filosofia? Para
que serve a filosofia?
- Acredito que Marx já respondeu sobre isso. A filosofia serve para transformar o mundo.
6. O que o senhor não gostou no quadro Ser ou Não Ser, do Fantástico?
- O “Ser ou não Ser”, que deveria se chamar o “Não ser filosofia”, retira o seu maior dano do fato de vender um fake, uma falsificação, uma miséria da filosofia como se fosse um pensar filosófico. O tempo dele era curto, curtíssimo, para a reflexão – qualquer reflexão. O quadro entrava no programa como uma notícia no Jornal Nacional – você chora por um desastre e no segundo seguinte sorri para o samba na avenida. E mais, não sei se por brevidade ou por incompreensão ou por incapacidade - vá lá, dramatúrgica – conceitos datados, visões superadas pela história, apareciam como um pensamento moderno, novíssimo. Conforme se publicou no La Insignia, no http://www.lainsignia.org/2005/septiembre/cul_029.htm, ‘A narração passa um sentido moderníssimo, universal, ao que já foi superado e morto muito antes.... Percebe-se claro uma vulgarização da filosofia, do vulgarizar que vai além ou aquém do tornar público. Há uma vulgarização de fazer o vulgar mesmo, do tornar pequeno, reles, mesquinho’.
7. O que o senhor acha de iniciativas como a Casa do Saber, instalada no Rio
e em SP, que oferece cursos com figuras do ´pensamento` nacional,
a preços bem salgados?
- A indigência intelectual da elite quer ilustração, perdão, devo dizer, quer o status de ser ilustrada. Assim como compram quadros de arte por metro quadrado, assim como compram vinhos para os quais não têm história ou educação, assim como compram o último porsche, querem se mostrar ilustrados, falar, ou melhor, corrijo, querem mencionar o nome de Sócrates entre um importado e outro. O público da Casa é um bom negócio, em resumo. Os cursos, as palestras, devem servir como uma isca para compor um cadastro vip. Isso é um assunto para a fiscalização da Receita Federal.
8. O senhor se considera escritor, poeta e filósofo?
- Eu sou escritor, e não quero ser outra coisa. Este é o meu fim e o meu começo. Agora, nada do que é humano deve ser estranho a um escritor. E a filosofia é demasiadamente humana”.
* Escritor e jornalista
Urariano, ao ver essa pantomina indecente da
ResponderExcluircampanha eleitoral, das falcatruas de colarinho
branco e de ver a impunidade se alastrando feito erva daninha...para quê essa gente quer filosofar?
Adorei sua entrevista. Pena que não foi publicada.
Abraços