sábado, 23 de outubro de 2010




Maré da Oxford Street



* Por Virginia Woolf

Lá nas docas vêem-se as coisas em sua crueza, seu volume, sua enormidade. Aqui, em Oxford Street, elas se mostram refinadas e transformadas. Os enormes barris de tabaco úmido foram enrolados em inúmeros cigarros bem feitos envoltos em papel prateado. Os corpulentos fardos de lã estão tecidos em forma de finos coletes e meias macias. A gordura da lã espessa da ovelha tornou-se creme perfumado para peles delicadas. E os que compram e os que vendem sofreram a mesma mudança citadina. Lépida, amaneirada, em casacos pretos, em vestidos de cetim, a forma humana adaptou-se tanto quanto o produto animal. Em vez de transportar e içar, ela abre destramente gavetas, desenrola seda nos balcões, mede e corta com fitas métricas e tesouras.
Não é preciso dizer que Oxford Street não é a rua mais distinta de Londres. Sabe-se que os moralistas apontam um dedo de escárnio aos que compram ali, e eles têm apoio dos dândis. A moda tem nichos secretos próximos a Hannover Square, nos arredores de Bond Street, para onde recua discretamente a fim de realizar seus ritos mais sublimes. Em Oxford Street, há pechinchas demais, liquidações demais, artigos demais remarcados para um shilling e 11 pence quando ainda na semana passada custavam dois shillings e seis pence. A compra e a venda são espalhafatosas e estridentes. Mas enquanto se perambula na direção do poente – pois entre as luzes artificiais, montes de seda e ônibus faiscantes, um pôr-do-sol perpétuo parece pairar sobre Marble Arch —, o espalhafato e colorido vulgar da grande maré da Oxford Street têm seu fascínio. É como o leito de seixos de um rio cujas pedras são eternamente lavadas por uma corrente translúcida. Tudo brilha e cintila. 0 primeiro dia da primavera faz surgir carrinhos de mão cheios de tulipas, violetas, narcisos em camadas brilhantes. Os frágeis dirigíveis redemoinham vagamente através da corrente do tráfego. Numa esquina, mágicos andrajosos fazem pedaços de papel colorido expandir-se dentro de copos de vidro em rígidas florestas com uma vegetação de tonalidades esplêndidas — um subaquático jardim de flores. Em outra, tartarugas descansam sobre a relva. As mais lentas e contemplativas das criaturas exibem suas atividades suaves em 30 ou 60 centímetros de calçada, ciumentamente protegidas dos pés que passam. Infere-se que o desejo do homem pela tartaruga, como o desejo da mariposa pela estrela, é um elemento constante da natureza humana. Entretanto, ver uma mulher parar e acrescentar uma tartaruga a seu monte de pacotes talvez seja a visão mais rua que olhos humanos podem divisar.
Levando-se tudo em conta — os leilões, os carrinhos de mão, os modismos, o brilho — não se pode dizer que Oxford Street tenha uma personalidade refinada. É um solo de procriação, uma usina de sensações. Da calçada parecem brotar horríveis tragédias; os divórcios de atrizes, os suicídios de milionários ocorrem ali com uma freqüência desconhecida nas calçadas mais austeras das áreas residenciais. As notícias mudam mais rapidamente do que em qualquer outra parte de Londres. A multidão ondulante parece apagar a tinta dos cartazes, consumi-los mais e exigir suplementos frescos de segundas edições com mais rapidez do que em outra parte. A mente se torna uma lousa perpetuamente mutante na forma, nos sons e nos movimentos; e Oxford Street desenrola nela uma contínua fita de visões, sons e movimentos mutáveis. Os pacotes se chocam contra superfícies, batem; os ônibus roçam o meio-fio; o clangor de toda uma banda de metais a pleno vapor diminui até uma delicada réstia de som. Ônibus, caminhonetes, carros, carrinhos de mão passam como um rio, divididos em peças do quebra-cabeça de um quadro; o braço branco se ergue; o quebra-cabeça torna-se mais denso, coagula, para; o braço branco afunda e o quebra-cabeça escorre de novo, riscado de veios, torto, em balbúrdia, em perpétua corrida e desordem. As peças do quebra-cabeça nunca se ajustam, por mais que olhemos.
Nas margens desse rio de rodas em movimento nossos modernos aristocratas construíram palácios, exatamente como outrora os duques de Somerset e Northumberland, os condes de Dorset e Salisbury margeando o Strand com suas majestosas mansões. As diferentes casas das grandes firmas testemunham a coragem, a iniciativa e a audácia de seus criadores da mesma forma que as grandes casas de Cavendish e Percy atestam tais qualidades em algum condado distante. Dos nossos mercadores descenderão os Cavendish e os Percy do futuro. Na verdade, os grão senhores da Oxford Street são tão magnânimos quanto qualquer duque ou conde que espalhasse ouro ou distribuísse pães aos pobres em seus portões. Apenas sua generosidade tem uma forma diferente; tem a maneira da excitação, da exibição, do entretenimento, de janelas iluminadas à noite, de bandeiras tremulando de dia. Eles nos dão as últimas notícias por nada. A música flui livre de suas salas de banquete. Não é preciso gastar mais de um shilling e 11 pence para desfrutar todo o abrigo que altos e arejados salões fornecem; e a macia lanugem dos carpetes, o luxo de elevadores e o fulgor dos tecidos, tapetes e prataria. Percy e Cavendish não poderiam dar mais. Tais presentes, é claro, têm um objetivo: atrair oshilling e 11 pence de nossos bolsos tão naturalmente quanto possível; mas os Percy e os Cavendish também não eram generosos sem a esperança de algum retorno, fosse a dedicatória de um poeta ou o voto de um fazendeiro. E tanto os velhos lordes quanto os novos deram uma contribuição considerável ao embelezamento e ao entretenimento da vida humana.
Contudo, não se pode negar que esses palácios da Oxford Street são moradias frágeis — mais pátios do que locais de habitação. Tem-se consciência de que se anda numa faixa de bosque sobre vigas de aço, e que a parede externa, apesar de toda a rebuscada ornamentação de pedra, só tem a espessura suficiente para suportar a força do vento. Um vigoroso cutucão com a ponta de um guarda-chuva pode muito bem infligir um dano irreparável ao tecido. Muitos chalés do campo construídos para abrigar lavradores ou moleiros no reino de Elizabeth I estarão ainda de pé quando tais palácios desmoronarem em poeira. As paredes do velho chalé, com suas vigas de carvalho e suas camadas de tijolos honestos solidamente cimentados uns nos outros, ainda oferecem uma robusta resistência às perfurações e buracos que tentam introduzir ali as modernas bênçãos da eletricidade. Mas em qualquer dia da semana pode-se ver Oxford Street desaparecendo na pancadinha da picareta de um trabalhador enquanto ele se equilibra perigosamente num pináculo empoeirado derrubando paredes e fachadas tão levemente como se fossem feitas de cartolina amarela e cubos de açúcar.
E mais uma vez os moralistas escarnecem. Pois essa finura, essa pedra de papel e tijolos de pó refletem, dizem eles, a leviandade, a ostentação, a urgência e a irresponsabilidade de nossa época. No entanto, mesmo assim parecem tão equivocados em seu escárnio como se pedíssemos ao lírio que fosse forjado em bronze, ou à margarida que se abrisse em pétalas de imperecível esmalte. o encanto da Londres moderna é ser construída não para durar, é ser construída para passar. Sua fragilidade, sua transparência, seus ornamentos de estuque colorido causam um prazer diferente e atingem um objetivo diferente do desejado e tentado pelos velhos construtores e seus patronos — a nobreza da Inglaterra. Seu orgulho exigiu a ilusão da permanência. O nosso, pelo contrário, parece deleitar-se em provar que podemos tornar a pedra e o tijolo tão transitórios quanto nossos próprios desejos. Não construímos para nossos descendentes, que podem viver nas nuvens ou na terra, mas para nós mesmos e nossas necessidades. Derrubamos e reconstruímos enquanto esperamos ser derrubados e reconstruídos. É um impulso provocador da criação e da fertilidade. A descoberta é estimulada e a invenção fica em alerta.
Os palácios de Oxford Street ignoram o que parecia bom para os gregos, para o elisabetano, para o nobre do século XVIII; estão absolutamente conscientes de que, se não conseguirem planejar uma arquitetura que exiba o estojo de maquilagem, a túnica de Paris, as meias baratas e o jarro de sais de banho com perfeição, seus palácios, mansões, automóveis e as pequenas vilas em Croydon e Surbiton — onde seus auxiliares moram, não tão mal afinal de contas, com gramofone, rádio e dinheiro para gastar nos cinemas — tudo isso será varrido pela ruína. Em conseqüência disso, esticam a pedra de um modo fantástico; amassam e amalgamam numa alucinada confusão os estilos da Grécia, Egito, Itália, América; e, atrevidamente, buscam um ar de prodigalidade e opulência, esforçando-se para convencer a multidão de que ali, uma incessante beleza, sempre fresca, sempre nova, muito barata e ao alcance de todos, borbulha de um poço inexaurível a cada dia da semana. A mera idéia da idade, da solidez, da permanência através dos séculos é detestável para Oxford Street.
Assim, se o moralista decide dar o passeio vespertino ao longo dessa via, precisa sintonizar sua personalidade a fim de captar com ela algumas vozes esquisitas e incongruentes. Acima da algazarra da caminhonete e do ônibus, podemos ouvi-las gritando. Deus sabe, diz o homem que vende tartarugas, que meu braço dói; minha chance de vender uma tartaruga é pequena; mas coragem!, pode aparecer um comprador; minha cama esta noite depende disso; portanto preciso continuar, tão lentamente quanto a polícia permitir, transportando tartarugas pela Oxford Street da aurora ao crepúsculo. É verdade, diz o grande comerciante, não estou pensando em educar as massas para um mais alto padrão de sensibilidade estética. Fico esgotado de pensar como posso exibir meus bens com o mínimo de desperdício e o máximo de eficácia. Dragões verdes no alto das colunas coríntias podem ajudar; vamos tentar. Admito, diz a mulher de classe média, que me retardo, olho, barganho, deprecio e reviro cesta após cesta de sobras hora a hora. Meus olhos cintilam de modo inconveniente, eu sei, e agarro e cutuco com uma desagradável cobiça. Mas meu marido é escriturário num banco; tenho apenas 15 libras por ano para me vestir; então, venho aqui para me retardar e passar o tempo e olhar, se puder, até que ponto estão bem vestidas minhas vizinhas. Sou uma ladra, diz uma senhora dessa profissão, e mulher de vida fácil também. Mas é preciso muita coragem para roubar uma bolsa de um balcão quando a cliente não está olhando; e depois de tudo, pode-se encontrar na bolsa apenas óculos e velhas passagens de ônibus. Bem, vamos lá!
Mil dessas vozes estão sempre gritando pela Oxford Street. Todas tensas, todas reais, todas urradas por seus donos pela pressão de ganhar a vida, encontrar um leito, manter-se de alguma forma à tona na superfície descuidada e sem remorso da rua. E mesmo um moralista, que imaginamos ser alguém com bom saldo no banco, já que pode passar a tarde sonhando; mesmo um moralista reconhecerá que essa rua espalhafatosa, alvoroçada e vulgar lembra-nos que a vida é uma luta; que toda construção é perecível; que toda exibição é vaidade. Donde podemos concluir - pelo menos até que algum astuto lojista adote a idéia e abra celas para pensadores solitários forradas de pelúcia verde, com vaga-lumes automáticos e um punhado de mariposas genuínas para induzir o pensamento e a reflexão — será inútil tentar chegar a uma conclusão em Oxford Street.


• Adeline Virginia Stephen Woolf nasceu em Londres, Inglaterra, em 1882. Seu pai, crítico literário, foi quem a educou. Em 1912, casou-se com Leonard Woolf e fundou a casa editorial Hogarth Press, que lançou, além da própria escritora, T.S.Elliot, Forster e K. Mansfield. Foi a primeira editora a publicar a obra de Freud em inglês. Seu primeiro livro, “A viagem”, foi publicado em 1915. Depois vieram “Noite e dia”, “Mrs. Dalloway”, “O quarto de Jacob”, “Ao farol”, “As ondas”, “Orlando” e “Um teto todo seu”. Suicidou-se em março de 1941.

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