quarta-feira, 20 de outubro de 2010







Blefar faz parte do jogo

* Por Mara Narciso

Há quem goste de vida metódica, sem imprevistos, com tudo no seu tempo e lugar e do mesmo jeito ano após ano. Em Montes Claros, a pessoa que se comporta assim é dita sistemática, ou melhor, tem um sistema imutável de vida. E ainda lucra com isso, pois alardeia sua intolerância e assim consegue ser temida e angariar vantagens, não sendo contrariada. Boa parte de quem a cerca, corre para servi-la, no tempo dela e nunca no dos outros. Cabe mais ao homem, considerado bravo, e a mulher que age dessa forma recebe a pecha de voluntariosa.

Outro tipo de gente é aquele imprevisível, e justo por isso é admirado, respeitado, podendo explodir de uma hora para outra, seja com bom ou mau humor. Atrai a atenção, porque muda de comportamento e usa essa característica para deixar quem o cerca em permanente suspense.

Há quem se dedique a enganar o outro com promessas vãs, em busca de algum benefício imediato. Pode ou não haver prejuízo ao iludido. Jogando conversa fora, é fácil prometer sonhos como um imóvel, um carro de luxo, uma viagem especial de navio, presentes caros que nunca chegam, e até casamento com a vítima do jogo sedutor. Depois as promessas murcham, e quem ouviu os mirabolantes planos se cansa das mentiras. Nem só a mulher é ingênua a tal ponto. O do gênero masculino também gosta de ouvir sereias.

Se de um lado há o detentor de poder econômico e social, há do outro o crédulo que se encanta com um sorriso seguido de promessa. Quando vê chegarem migalhas no lugar de banquetes e restos no lugar de presentes, não quer se emendar e espera mudança no parceiro. Muda sim, para pior.

Dentro das falsidades humanas há aquele que esconde uma situação ruim, com o objetivo de iludir. Enganar o outro, como maneira de ser e de viver, move um bocado de gente. Saber-se enganado, e ainda assim manter a situação, é uma maneira patológica de existir. Muitos gostam.

Pode-se jogar pôquer na faculdade apostando balas de hortelã ou cigarros, quando se é jovem, e se espera o professor. Nessa brincadeira é possível fingir que se tem boas cartas para ganhar o jogo e amealhar as balas ou os cigarros do colega. No filme “Golpe de Mestre”, sobre o jogo de pôquer, a maestria é configurada no momento em que o fingimento surpreende a platéia, que vê sangue e se convence que o mocinho trapaceiro morreu, mas este sorri, e tirando uma bala de falso sangue da boca, se levanta dentro do seu impecável terno branco. O blefe é o principal argumento desse filme.

A falsidade não fica só nas promessas boas, mas também nas más. Há as ameaças veladas, que se cumprem, e as ameaças gritadas que não passam de palavrório sem consequência. O mais comum é ver acontecer ruindades não anunciadas. As muito alardeadas costumam não passar de tempestades verbais.

Pessoas que não deixam clara a intenção de suicídio acabam por executá-lo. Outras dizem querer morrer, mas na hora que vem uma doença, o instinto de sobrevivência aflora, e corre para os recursos salvadores. A senhora multiqueixosa ameaçava os filhos de forma velada, de que morrer seria um ótimo remédio; isso quando sadia. Depois veio a suspeita de algo grave, o exame normal foi um alívio para todos, inclusive para ela, que descobriu ter passado anos mentindo.

Momentos de tristeza e isolamento mostram pessoas entediadas pedindo para dormir e não mais acordar. Mas quando vem uma dor forte, de origem suspeita, mas ainda indefinida, procura o remédio e usa os recursos para não partir antes da hora. A vontade de morrer revela-se um embuste. Não há vontade coisa nenhuma, só o discurso como meio de angariar atenção ou piedade.

Nesse tipo de blefe, não se cumpre o que se diz, e não se escreve o que se promete. Diante de um mal, primeiro salvem a religião e a medicina, depois achem um jeito de controlar a doença: uma saída bem humana.

* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

7 comentários:

  1. Mas veja só que variada galeria de tipos blefantes. E quem não tem um parente ou conhecido onde cada uma das carapuças citadas se encaixa perfeitamente?...
    Muito bom texto, Dra. Mara. Um beijo pra você.

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  2. quando ouço falar em gente sistemática- eu mesmo sou assim vc sabe, só me vem à cabeça o joão gilberto que comeu diariamente o mesmo PF do barzinho da esquina por 15 anos e nunca reclamou do tempero
    nós dois vivemos esses blefes aí citados diariamente, né verdade, mãe? são mt poucos aqueles que conseguem chegar às vias de fato e acabar pra valer com a própria vida

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  3. Uma ótima observação sobre o comportamento humano, Mara. Esses tipos são encontrados em toda parte. Acredito que atrás de cada um existe uma dor. Há os que escancaram, há os que disfarçam, há os que ignoram e há os que batem, gritam , mentem e espancam o outro para aliviar a dor. Beijos e parabéns.

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  4. Há pessoas para todos os gostos e uma variedade
    de personalidades.
    Os que subjugam e os que se deixam subjugar.
    Os que encantam apenas com um sorriso e os que
    esperam por ele...
    Dentro de cada ser humano uma mar de conflitos
    dúvidas, tangos e tragédias...
    Cada um tentando não se afogar em suas próprias
    ilusões.
    Abraços

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  5. Mara

    Muitas vezes enquanto um é enganado pelas promessas falsas, o outro já está planejando um outro caminho, bem diferente daquele que fingiu contruir com o iludido, não é?
    dorei sua crÔnica.
    Beijos

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  6. Gostei muito dos comentários que ampliaram a minha visão de blefe. Para mim, blefar é muito mais do que mentir. Há toda uma teatralidade em busca do convencimento pleno e indiscutível. Essas importantes colocações nos levam a pensar na autenticidade do nosso dia a dia. Obrigada pela interação.

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  7. Mara, interessantes as observações de nossos colegas.
    Também conheço tipos assim, quase todos citados em seu belo texto. Parabéns e abraços!

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