O ônibus para Trancoso
* Por Urda Alice Klueger
Em 1500 Cabral descobriu o Brasil, no lugar privilegiado chamado Porto Seguro – trinta e poucos anos depois vieram para aquele lugar uns poucos portugueses, e fundaram lá quatro arraiais: Porto Seguro, Santa Cruz de Cabrália, Arraial D’Ajuda e Trancoso.
Quase nada aconteceu nesses arraiais de 1530 a 1972 – sem estradas, com um navio passando lá uma vez por mês, as populações locais puderam manter um estilo de vida à moda de 1500, sem se darem conta de quanto mudava o mundo.
Em 1972, porém, construiu-se uma estrada asfaltada, ligando a BR 101 a Porto Seguro, e chegaram lá os hippies, e depois os turistas, cada vez mais turistas, e faz uns quatro anos que fez-se lá um grande aeroporto, e os turistas tomaram conta daquele paraíso de vez. Eu fui uma assídua freqüentadora da região até que o turismo em massa tirou a maior atração dela: uma atmosfera única, um dos últimos santuários do mundo onde sobrevivia a filosofia hippie. Isso acabou, Porto Seguro e seus arraiais são, agora, apenas mais algumas praias.
Mas vamos falar dos velhos tempos, do Arraial de Trancoso. Trancoso dista 24 km de Porto Seguro, e a estrada para se chegar lá é tão ruim, mas tão ruim, que se levava bem umas duas horas de ônibus para cobrir aqueles escassos 24 km. Falo no passado porque já faz alguns anos que não vou lá, e podem ter construído novas estradas.
Trancoso era o meu lugar preferido no mundo. O arraial ainda conserva a sua forma de quadrado, demarcado em 1530 e pouco, e a vida, lá, corria com uma beatitude e uma paz que a ente não acreditava que ainda pudesse existir. Ir passar o dia em Trancoso, esperar a luz da tarde em Trancoso ao pôr-do-sol, deitar na mesma grama, perto dos cavalos, e ficar sem fazer nada, era o programa mais maravilhoso de todos, para mim.
Para se chegar a Trancoso, tinha-se que pegar o ônibus de Trancoso, e é dele que quero falar. Lata velha é um elogio para o ônibus de Trancoso – velhíssimos ônibus caindo aos pedaços cobriam os 24 km que nos levavam ao paraíso, e tudo acontecia neles. Um deles, mesmo, só tinha bancos na frente – na parte detrás, no chão, tinha um pneu de trator, onde os turistas do mundo inteiro sentavam-se e ficam se segurando pela estrada péssima, e viajar sentado naquele pneu de trator já descongelava as pessoas, já criava uma cumplicidade que fatalmente acabava em amizade – era ótimo aquele desconforto.
Tudo acontecia no ônibus de Trancoso. Lembro de uma vez, em que uma mulher nativa, bêbada que não se agüentava em pé, pegou o ônibus de volta de Trancoso já noite fechada. Ela sabia que teria que saltar no caminho, mas não lembrava mais onde era a sua casa. O que fez o motorista?Ficou parando a cada das esparsas casas que havia no caminho, buzinando e perguntando:
– Esta mulher é daqui? – até que achou a casa certa e entregou a bebum.
Na outra volta de Trancoso, também noite fechada, um anativado loiro (anativado era toda uma classe de pessoas que viviam lá – eram os turistas que tinham vindo para as férias e não tinha mais ido embora) começou a pedir ao motorista que parasse. Havia urgência na sua voz que pedia alto, e o motorista parou. Que fez o anativado? Desceu os degraus do ônibus, parou no último e, com todo o mundo a observá-lo, na maior tranqüilidade, fez xixi na noite lá de fora e, na maior naturalidade, voltou ao seu lugar e a viagem prosseguiu.
A minha história preferida do ônibus de Trancoso é a de uma mulher chique, diretora de um hospital em São Paulo, que fora para Porto Seguro a mando médico, com stress. Estávamos na mesma pousada e ficamos amigas, mas o stress dela era brabo e estava custando a melhorar. Um dia, fomos juntas a Trancoso, e ela curtiu lá, mas não curtiu muito – o stress continuava. No ônibus de volta, porém, ele passou. A senhora chique, cheia de anéis caros, estava sentada, e no corredor, de pé, havia um pescador bêbado. Ele tinha uma cesta cheia de peixes, e numa das curvas do caminho, ele desequilibrou-se e acabou derramando toda a cesta de peixes sobre a diretora do hospital de São Paulo. Era para chorar, mas rimos tanto, mas tanto, que, quando saiu do ônibus, a senhora tinha deixado o stress para trás. Com certeza, em São Paulo, não teria conseguido terapia tão rápida e eficiente.
Estas são só algumas historias do ônibus de Trancoso. Quantas mais teria para contar!
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
* Por Urda Alice Klueger
Em 1500 Cabral descobriu o Brasil, no lugar privilegiado chamado Porto Seguro – trinta e poucos anos depois vieram para aquele lugar uns poucos portugueses, e fundaram lá quatro arraiais: Porto Seguro, Santa Cruz de Cabrália, Arraial D’Ajuda e Trancoso.
Quase nada aconteceu nesses arraiais de 1530 a 1972 – sem estradas, com um navio passando lá uma vez por mês, as populações locais puderam manter um estilo de vida à moda de 1500, sem se darem conta de quanto mudava o mundo.
Em 1972, porém, construiu-se uma estrada asfaltada, ligando a BR 101 a Porto Seguro, e chegaram lá os hippies, e depois os turistas, cada vez mais turistas, e faz uns quatro anos que fez-se lá um grande aeroporto, e os turistas tomaram conta daquele paraíso de vez. Eu fui uma assídua freqüentadora da região até que o turismo em massa tirou a maior atração dela: uma atmosfera única, um dos últimos santuários do mundo onde sobrevivia a filosofia hippie. Isso acabou, Porto Seguro e seus arraiais são, agora, apenas mais algumas praias.
Mas vamos falar dos velhos tempos, do Arraial de Trancoso. Trancoso dista 24 km de Porto Seguro, e a estrada para se chegar lá é tão ruim, mas tão ruim, que se levava bem umas duas horas de ônibus para cobrir aqueles escassos 24 km. Falo no passado porque já faz alguns anos que não vou lá, e podem ter construído novas estradas.
Trancoso era o meu lugar preferido no mundo. O arraial ainda conserva a sua forma de quadrado, demarcado em 1530 e pouco, e a vida, lá, corria com uma beatitude e uma paz que a ente não acreditava que ainda pudesse existir. Ir passar o dia em Trancoso, esperar a luz da tarde em Trancoso ao pôr-do-sol, deitar na mesma grama, perto dos cavalos, e ficar sem fazer nada, era o programa mais maravilhoso de todos, para mim.
Para se chegar a Trancoso, tinha-se que pegar o ônibus de Trancoso, e é dele que quero falar. Lata velha é um elogio para o ônibus de Trancoso – velhíssimos ônibus caindo aos pedaços cobriam os 24 km que nos levavam ao paraíso, e tudo acontecia neles. Um deles, mesmo, só tinha bancos na frente – na parte detrás, no chão, tinha um pneu de trator, onde os turistas do mundo inteiro sentavam-se e ficam se segurando pela estrada péssima, e viajar sentado naquele pneu de trator já descongelava as pessoas, já criava uma cumplicidade que fatalmente acabava em amizade – era ótimo aquele desconforto.
Tudo acontecia no ônibus de Trancoso. Lembro de uma vez, em que uma mulher nativa, bêbada que não se agüentava em pé, pegou o ônibus de volta de Trancoso já noite fechada. Ela sabia que teria que saltar no caminho, mas não lembrava mais onde era a sua casa. O que fez o motorista?Ficou parando a cada das esparsas casas que havia no caminho, buzinando e perguntando:
– Esta mulher é daqui? – até que achou a casa certa e entregou a bebum.
Na outra volta de Trancoso, também noite fechada, um anativado loiro (anativado era toda uma classe de pessoas que viviam lá – eram os turistas que tinham vindo para as férias e não tinha mais ido embora) começou a pedir ao motorista que parasse. Havia urgência na sua voz que pedia alto, e o motorista parou. Que fez o anativado? Desceu os degraus do ônibus, parou no último e, com todo o mundo a observá-lo, na maior tranqüilidade, fez xixi na noite lá de fora e, na maior naturalidade, voltou ao seu lugar e a viagem prosseguiu.
A minha história preferida do ônibus de Trancoso é a de uma mulher chique, diretora de um hospital em São Paulo, que fora para Porto Seguro a mando médico, com stress. Estávamos na mesma pousada e ficamos amigas, mas o stress dela era brabo e estava custando a melhorar. Um dia, fomos juntas a Trancoso, e ela curtiu lá, mas não curtiu muito – o stress continuava. No ônibus de volta, porém, ele passou. A senhora chique, cheia de anéis caros, estava sentada, e no corredor, de pé, havia um pescador bêbado. Ele tinha uma cesta cheia de peixes, e numa das curvas do caminho, ele desequilibrou-se e acabou derramando toda a cesta de peixes sobre a diretora do hospital de São Paulo. Era para chorar, mas rimos tanto, mas tanto, que, quando saiu do ônibus, a senhora tinha deixado o stress para trás. Com certeza, em São Paulo, não teria conseguido terapia tão rápida e eficiente.
Estas são só algumas historias do ônibus de Trancoso. Quantas mais teria para contar!
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
Também quero ir para Trancoso daquele tempo, mas nas estradas de hoje. De fato, a falta de conforto aproxima os circunstantes. Viajar de ônibus tem essa peculiaridade. Terapia eficaz está em Trancoso. Disso ninguém duvida.
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