Ivanovitch, 1964
* Por Urariano Mota
Ivanovitch era um dos seis filhos de seu Joaquim-da-carne-de-porco. Seu Joaquim, simpatizante do velho Partidão, havia posto nos filhos nomes russos, porque na época a Rússia era a pátria da revolução. Lembro que da sua casa feia, sem janelas, com fachada de pobre ponto comercial, vinha um cheiro de torresmo. Lembro do cheiro abusivo, enjoado, repugnante que dava aquela coisa gorda e farta, só ela e mais nada.
Naqueles anos, um rapaz de futuro, naquele cheiro ativo de toucinho torrado, era um rapaz que gostava de ler, de perguntar, de argumentar. De futuro também era Ivanovitch. Dos seis filhos de seu Joaquim ele era o mais brilhante: gostava de matemática, de química, de física, de política, de filosofia, de romance, lia como um animal que tem fome de letras. E sempre a sorrir.
Por que as pessoas que levam a vida a gargalhar tendem a terminá-la com amargura ou violência? Por que os indivíduos sombrios não são os que enfiam o cano na boca e estouram os próprios miolos? Não, o trágico quer os plenos, cheios de coração. Pois assim como o câncer, que dizem se alimentar da saúde vigorosa, o golpe militar comeu o cérebro do meu amigo. E ele que era diurno, solar, tornou-se febril e noturno, naquele fim de tarde.
Cadê Ivan? – eu perguntei, quando voltei da padaria, no primeiro de abril de 64.
– Cadê Ivan? – perguntei, porque eu queria conversar com ele sobre os últimos acontecimentos. Eu queria que ele me explicasse os tanques na rua, se Arraes ainda era governo, se os comunistas haviam perdido a batalha.
– Cadê Ivan?
- Vem ver o teu amigo, a sua mãe me disse. Veja como ele está.
E sua mãe me conduziu até o quarto, que era uma divisória de tabique sem porta, como um quarto de estúdio de cinema. Então ela se pôs a chamá-lo, a lhe dizer que eu estava ali, como se eu tivesse o dom de fazê-lo voltar à realidade, a realidade que ela não sabia ser o pesadelo que começava. Chamava-o “Ivan”, para torná-lo ao Ivanovitch de 31 de março, ao rapaz que era a esperança daquela família de seu Joaquim-da-carne-de-porco. Ao que ele respondia:
- As cobrinhas estão subindo em mim. Mãe, me tira essas cobrinhas.
Não era mais Ivanovitch. O de antes era um jovem que passava o dia todo a estudar, todos os dias. Entre uma fórmula e outra me recebia na única mesa da casa. E passava a contar anedotas, a contar casos de meninos suburbanos, espertos, anárquicos, galhofeiros. E sorria, e ria, e gargalhava, porque ao contar ele era público e personagem, e de tanto narrar histórias de meninos moleques deixava na gente a impressão de ser um deles. E contava a rir, a soltar altíssimas gargalhadas o caso que depois foi a sua perdição:
- Na greve dos estudantes de Direito, eu fui lá para prestar solidariedade aos colegas. Eu estava só no meio da massa, assistindo à manifestação. Aí chegou o fotógrafo da revista O Cruzeiro. Quando ele apontou o flash, eu me joguei na frente dos estudantes. Olha aqui a foto.
E mostrava uma página em que ele aparecia de braços abertos, destacado, em queda, como um jogador de futebol em uma brilhante jogada, em voo sobre as palavras de ordem viva Cuba, yankees go home, reforma agrária na lei ou na marra. Sorrindo em queda livre o meu amigo, na página da revista O Cruzeiro.
Por isso ele gargalhava, por sair em edição nacional, por força do seu espírito moleque. Por isso ele me diz agora em 1º. de abril de 1964:
- Tem umas cobrinhas... Eles vêm me pegar!
Sei agora que naquele delírio ele não perdera de todo a lógica. Será que enlouquecemos assim, num diálogo entre a desrazão e a razão? Ivanovitch diminuía o tamanho das cobras para ter milhares delas subindo-lhe pelas costas. Meu amigo delirava e, para ele, para mim, como um último consolo, perdia a razão, mas não perdia a inteligência.
Muitos anos depois eu revi Ivanovitch. Ele estava mais largo, obeso, imenso, com os gestos lentos de um drogado. No rosto, sem acusar reação, havia só olhos apagados, distantes, que não me reconheceram. Ele passou ao largo de mim como um hipopótamo sem sombra, como um elefante sem orelhas, sem tromba, sem presas passaria, só a grande massa de carne. Então eu soube que para ele a barbárie havia vencido.
Parabéns, gorilas, parabéns, golpistas. A família de Ivan até hoje conta que ele enlouqueceu em 31 de março. Esquecem que foi em um 1º. de abril. Não sei se isso faria o meu amigo dar uma gargalhada ampla, grande, do tamanho do futuro e do seu coração de antes.
• Escritor e jornalista
* Por Urariano Mota
Ivanovitch era um dos seis filhos de seu Joaquim-da-carne-de-porco. Seu Joaquim, simpatizante do velho Partidão, havia posto nos filhos nomes russos, porque na época a Rússia era a pátria da revolução. Lembro que da sua casa feia, sem janelas, com fachada de pobre ponto comercial, vinha um cheiro de torresmo. Lembro do cheiro abusivo, enjoado, repugnante que dava aquela coisa gorda e farta, só ela e mais nada.
Naqueles anos, um rapaz de futuro, naquele cheiro ativo de toucinho torrado, era um rapaz que gostava de ler, de perguntar, de argumentar. De futuro também era Ivanovitch. Dos seis filhos de seu Joaquim ele era o mais brilhante: gostava de matemática, de química, de física, de política, de filosofia, de romance, lia como um animal que tem fome de letras. E sempre a sorrir.
Por que as pessoas que levam a vida a gargalhar tendem a terminá-la com amargura ou violência? Por que os indivíduos sombrios não são os que enfiam o cano na boca e estouram os próprios miolos? Não, o trágico quer os plenos, cheios de coração. Pois assim como o câncer, que dizem se alimentar da saúde vigorosa, o golpe militar comeu o cérebro do meu amigo. E ele que era diurno, solar, tornou-se febril e noturno, naquele fim de tarde.
Cadê Ivan? – eu perguntei, quando voltei da padaria, no primeiro de abril de 64.
– Cadê Ivan? – perguntei, porque eu queria conversar com ele sobre os últimos acontecimentos. Eu queria que ele me explicasse os tanques na rua, se Arraes ainda era governo, se os comunistas haviam perdido a batalha.
– Cadê Ivan?
- Vem ver o teu amigo, a sua mãe me disse. Veja como ele está.
E sua mãe me conduziu até o quarto, que era uma divisória de tabique sem porta, como um quarto de estúdio de cinema. Então ela se pôs a chamá-lo, a lhe dizer que eu estava ali, como se eu tivesse o dom de fazê-lo voltar à realidade, a realidade que ela não sabia ser o pesadelo que começava. Chamava-o “Ivan”, para torná-lo ao Ivanovitch de 31 de março, ao rapaz que era a esperança daquela família de seu Joaquim-da-carne-de-porco. Ao que ele respondia:
- As cobrinhas estão subindo em mim. Mãe, me tira essas cobrinhas.
Não era mais Ivanovitch. O de antes era um jovem que passava o dia todo a estudar, todos os dias. Entre uma fórmula e outra me recebia na única mesa da casa. E passava a contar anedotas, a contar casos de meninos suburbanos, espertos, anárquicos, galhofeiros. E sorria, e ria, e gargalhava, porque ao contar ele era público e personagem, e de tanto narrar histórias de meninos moleques deixava na gente a impressão de ser um deles. E contava a rir, a soltar altíssimas gargalhadas o caso que depois foi a sua perdição:
- Na greve dos estudantes de Direito, eu fui lá para prestar solidariedade aos colegas. Eu estava só no meio da massa, assistindo à manifestação. Aí chegou o fotógrafo da revista O Cruzeiro. Quando ele apontou o flash, eu me joguei na frente dos estudantes. Olha aqui a foto.
E mostrava uma página em que ele aparecia de braços abertos, destacado, em queda, como um jogador de futebol em uma brilhante jogada, em voo sobre as palavras de ordem viva Cuba, yankees go home, reforma agrária na lei ou na marra. Sorrindo em queda livre o meu amigo, na página da revista O Cruzeiro.
Por isso ele gargalhava, por sair em edição nacional, por força do seu espírito moleque. Por isso ele me diz agora em 1º. de abril de 1964:
- Tem umas cobrinhas... Eles vêm me pegar!
Sei agora que naquele delírio ele não perdera de todo a lógica. Será que enlouquecemos assim, num diálogo entre a desrazão e a razão? Ivanovitch diminuía o tamanho das cobras para ter milhares delas subindo-lhe pelas costas. Meu amigo delirava e, para ele, para mim, como um último consolo, perdia a razão, mas não perdia a inteligência.
Muitos anos depois eu revi Ivanovitch. Ele estava mais largo, obeso, imenso, com os gestos lentos de um drogado. No rosto, sem acusar reação, havia só olhos apagados, distantes, que não me reconheceram. Ele passou ao largo de mim como um hipopótamo sem sombra, como um elefante sem orelhas, sem tromba, sem presas passaria, só a grande massa de carne. Então eu soube que para ele a barbárie havia vencido.
Parabéns, gorilas, parabéns, golpistas. A família de Ivan até hoje conta que ele enlouqueceu em 31 de março. Esquecem que foi em um 1º. de abril. Não sei se isso faria o meu amigo dar uma gargalhada ampla, grande, do tamanho do futuro e do seu coração de antes.
• Escritor e jornalista
Castradores...furtaram sonhos, liberdade.
ResponderExcluirOnde até almas ganharam rédeas.
Abraços
Imaginem essa virulência na atual campanha política! Muitos ainda querem a volta dos militares. Só mesmo quem não lê e não conhece a história. E ainda dizem que o povo sabe votar. Eu, hein?!
ResponderExcluirAbraços patrióticos
Não apenas ele enlouqueceu com as crueldades da ditadura. Sei de outras vítimas que também encontraram na perda do senso um caminho para sobreviver. Grande pena.
ResponderExcluirCaros amigos
ResponderExcluirEstamos com Dilma para que esse pesadelo não retorne.
O pior é que a eralidade é infinitamente mais cruel que o relato: a semana passada recebi, na fila do caixa do supermercado, a notícia de que Ivan falecera há um ano. Sem a consciência.