Sopro
* Por
Eduardo Oliveira Freire
Quando
começou a ouvir algo que não entendia, descobriu que era vazia. Aos
poucos, definira formas e significados a partir dos sons que
adentravam no fundo do armário.. Não queria ser mais subjugada. Aos
poucos a palavra transformava seu corpo artificial em carne e osso.
“Sofia,
meu nome”, disse de repente. Saiu do armário e se olhou no
espelho. Era uma mulher nua. Pegou uma blusa e uma bermuda esperou
seu “dono”, lendo alguns contos de um livro jogado na cama. Via
aquelas letras embaralhadas nas páginas, formando-se em palavras,
frases e orações. Apaixonou-se pela literatura e adorava
ouvir o “ possuidor” ler em voz alta, ela começou a nascer a
partir daí. Havia uma citação que espelhava o que sentia: "A
palavra é meu domínio sobre o mundo." Clarice
Lispector
Ouviu
o barulho na porta, respirou fundo. Já sabia o que diria.
Antônio
não comprou uma boneca inflável porque se sentia triste ou sozinho.
Queria dar um tempo nas relações amorosas, pois tudo se tornava
chato e tinha preguiça de cultivar relacionamentos. Com o utensilio
erótico, extravasa todos seus fetiches sem vergonha.
Ao
abrir a porta, assustou-se com uma mulher vestida com sua roupa. Quis
chamar a polícia, mas ela pediu para que a escutasse. No início,
Antônio se sentiu em um romance absurdo e non sense: como uma boneca
inflável se tornou uma mulher tão independente e cheia de
vontades? Sofia disse para ele que desejava conhecer o mundo,
ler vários livros e que precisava de ajuda. Antônio respondeu que
era impossível e a mandou ir embora do apartamento.
A
mulher não arredava o pé. Então Antônio ameaçou novamente chamar
a polícia. Sofia argumentou que se fizesse isso, relataria à
polícia que ele a abusou por muito tempo, tornando-a escrava sexual.
Antônio resolveu cooperar.
Sofia
era inocente, pensava que respirar e ser de carne e osso bastava para
ser viva. Entretanto, descobriu que no mundo dos Homens precisava de
documentos que provassem
sua existência. Sem RG, CPF e Titulo de Eleitor ela não existia,
como muitos por aí. Antônio tentava explicar que, antes de tudo,
precisava ter uma Certidão de Nascimento. Como não tinha pais e
nenhum outro parente, teriam que procurar a justiça. Enquanto isso,
Sofia queira ler junto com Antônio e ele, a princípio meio a
contragosto, levou-a para a oficina literária que participava. Sofia
descobriu que ser mulher de verdade tinha alguns convenientes. Sofria
com a menstruação, percebeu que quando não tomava banho fedia.
Além de odiar fazer cocô e xixi. Todavia, concluiu a que a vida é
feita de momentos bons e ruins e que são importantes para
existência.
Realmente
nesta história não houve amor à primeira vista, pelo contrário,
Sofia e Antônio se detestavam, apesar de gostarem dos mesmos livros
e lugares. Toleravam-se. Mas, com o passar das estações, surgiu
certa amizade. Cada vez mais queriam ficar juntos.
Familiares
e amigos diziam que ele estava maluco de ficar com uma moça que foi
boneca inflável. Antônio nem ligava e Sofia aos poucos descobriu
que ele era um homem gentil e não um egocêntrico que só desejava
saber de si. Aprenderam muitas coisas juntas e até o sexo foi
um aprendizado. Andavam em todos os recantos da cidade e curtiam cada
momento juntos nos cafés e bares. Seguiam a risca o refrão da
música:
“Pedes-me
um momento
Agarras as palavras
Escondes-te no tempo
Porque o tempo tem asas
Levas a cidade
Solta me o cabelo
Perdes-te comigo
Porque o mundo é o momento”( Pedro Abrunhosa)]
Agarras as palavras
Escondes-te no tempo
Porque o tempo tem asas
Levas a cidade
Solta me o cabelo
Perdes-te comigo
Porque o mundo é o momento”( Pedro Abrunhosa)]
Sofia
conseguiu finalmente ser registrada e ter documentos para poder
trabalhar. Antônio, sempre ao seu lado, estava feliz com suas
conquistas. Todavia, começaram a entender que se tornavam mais
amigos do que um casal. A relação estava morna em demasia. Mesmo
tristes, resolveram se separar, para viverem outros amores.
Experimentaram
vários amores, paixões, divórcios e tiveram muitos filhos, mas a
amizade continuava entre dois. Quando envelheceram, decidiram morar
juntos.
Anos
mais tarde, familiares os encontraram um ao lado do outro. Antônio
já velho e inerte na cama e Sofia, uma boneca inflável vazia.
*
Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural
e aspirante a escritor - http://cronicas-ideias.blogspot.com.br/
Ao pó retornarás.
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