sábado, 20 de maio de 2017

Laboratório


* Por Laís de Castro


Esse laboratório nunca me deu uma notícia ruim. Sentada aqui, fico pensando no tanto de gente que entrou aqui sã e saiu com câncer de esôfago. Uma merda, câncer de esôfago. Pensa bem: o cara chega ao laboratório com a esperança lá em cima, bem acima do que ela deveria mesmo ser e sai de lá morto. Ou meio morto, já que lhe sobram alguns meses de vida. Esse assunto é pesadão, sabia que a barra ia pesar se eu começasse a falar de laboratório. Assim, assado.

Estou cheia de vir aqui. Vim tanto, que fiquei amiga das recepcionistas, uma até tirou xerox do Boletim de Ocorrência de uma batida que uma besta deu no meu carro e que eu precisava levar pra oficina desamassar, estas coisas. Falei besta, mas não é um carro tipo besta. É uma mulher tipo besta, porque veio com um carrão importado pra cima de mim, que merda, mas a moça do laboratório foi superbacana porque tirou a xerox que eu precisava. Assim, fiz 719 exames de sangue, 127 tomografias e mais 38 raios-X e mais o caramba, para ver o que é que me dava uma dor de cabeça insistente, massacrante, destrutível.

Quando chegava dona dor de cabeça, não tinha mais pra ninguém. Era ela chegando, tomando conta de tudo e eu num mau-humor mesclado de tristeza, de profunda tristeza, começando todos os dias com aquelas teorias de que sem saúde nada vale, nada importa e é verdade mesmo, embora seja um discurso sem-vergonha, meio dado ao careta, eu comecei a fazer.
Uma merda, câncer de esôfago.

A dor de cabeça chega todos os dias à uma da tarde em ponto, momento em que devo ingerir, instruída por minha própria receita, o primeiro analgésico. O segundo é engolido, com um guaraná antartica diet sem gelo, eu gosto de refrigerante sem gelo e ninguém tem nada a ver com isso, exatamente às 14h, quando meus olhos começam a ficar sensíveis à luz e a fechar, tamanho o ataque desta barbárie. O terceiro tiro contra a dor, agora bem mais forte que os dois primeiros, é detonado em torno das 16h e começa, então, a surgir algum efeito concreto. Dor é concreto ou abstrato? Sinta uma, regularmente, todos os dias, crônica, selvagem, senhora do seu destino e depois me responda. Dor é um dos piores substantivos concretos que o ser humano já classificou como abstrato.

Câncer de esôfago é bem pior. É uma merda.

A gente pára na porta do laboratório e o cara fala: veio fazer ou buscar? Fazer o quê? Buscar o quê? Ele já sabe, óbvio, que a palavra exame não precisa ser recitada. Veio fazer e-xa-me ou buscar e-xa-me? Pra que ficar gastando seu precioso tempo e seu aurífero latim com excessos? Nada disso, o cara tem mais o que fazer, estacionar na rua do lado mais de trezentos carros pela manhã e depois ficar lá mastigando um palito entre as dentes a tarde inteira que ninguém faz exame à tarde, porque todos têm mais o que realizar, vim buscar, pode deixar o carro aí mesmo. Se eu fosse fazer ele levaria para a rua do lado.

Pode, por favor, tirar a roupa e se deitar aí nessa maca. Pode fazer o favor de tirar a roupa da cintura para cima e deitar-se com a cabeça entre aqueles dois ferros da máquina, estou com medo que essa máquina me transforme em cinzas tal o tamanho e a parafernália. Sabe aquelas máquinas de seriados antigos que simplesmente nos desmanchavam e a gente desaparecia? Estou com medo. Por favor, estique o braço esquerdo, e apóie aqui, não me lembro o nome do troço que a gente apóia o braço pra fazer exame de sangue. E haja radioatividade sobre o bom o e velho corpo, e haja um montão de gel, para passar aquela incrível maquininha que vê tudo o que a gente tem por dentro, na ultrassonografia abdominal, genital, pescoçal, tudo. O cara pega uma espécie de scanner manual e vai passando e repetindo, aqui é o baço, aqui é a vesícula, está lindo o seu útero, o tal do endométrio está fininho, para sua idade (não fala provecta, resiste à vontade) vai bem, obrigado. Obrigada digo eu, que cheguei aqui morrendo de medo e agora tenho a fantástica notícia de que meu endométrio é fininho. Pela cara dele essa é uma boa notícia, ninguém me falaria assim, na lata, sobre um câncer de esôfago.

A enfermeira sanguinária amarra uma borracha apertada no meu antebraço, desgraçada, vai amarrar na sua mãe, nem liga, fica me apertando com a ponta do indicador, fecha a mão, dona, que é para a veia vir melhor, espeta aquela agulha descartável e vai tirando um montão de ampolas, à vácuo, chiquérrima, chega, está pensando que eu sou banco de sangue, droga, insensível. Não sou. A outra vem e acerta minha cabeça na máquina com a delicadeza de um dog alemão, calma, insignificância gorda, cuidado. A médica me mede inteira através de um vidro, como se já olhasse para o além, mas eu sou mais eu, me levanto e vou embora, fingindo uma coragem inatingível, de verdade apavorada, depois de obedecer a todos os trâmites do exame é claro. Depois daquela história do abdome, fico dezoito minutos tirando gel da barriga e da alma, me deixam ali toda melecada, um gel gelado, cheirando a álcool.

Esse laboratório é o máximo. Tem um chocolate quentinho e maravilhoso que dá a sensação de colo materno, depois que a gente faz todos os exames. Tem um café com leite que parece a mão firme paterna para atravessar a rua. O melhor dele é esse chocolate quente que tem na saída do exame de sangue, tenho que ir de madrugada em jejum, é ruim. Mas o pior desse laboratório ainda não vi. E nem vou ver.

Depois de velha a gente sente medo, mas o café, aquecendo o estômago, acaba com todo e qualquer pavor que a tecnologia cheia de lasers azuis e vermelhos possa criar. Por enquanto, senhoras e senhores, estou desfrutando o café e o chocolate. Não tenho câncer de esôfago, aquele que é uma merda. Esse laboratório não faria a maldade de me dar uma notícia ruim.


* Jornalista, com 3 prêmios Abril. Trabalhou, ainda, na Editora Três (sob Luís Carta), na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.


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